seis

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Uma vez, quando era pequena, minha mãe leu a história do Peter Pan pra mim. Quando fui ficando mais velha, acabei levando pra vida alguns ensinamentos do livro, como um mantra mesmo.

   "Pensamentos bons te levam pra cima. Pensamentos ruins te levam pra baixo."

   E agora é no centro da Terra onde me sinto. Não por vontade própria, claro.

   Depois de praticamente ter voado até aqui (como a Wendy pelas chaminés do céu de Londres) apenas por descobrir que o P.H. ainda se importa de alguma forma comigo, sou forçada a voltar pra baixo pelo meu pai. Quase que na base do tapa.

    -Que horas são no seu celular, Cléo? – ele pergunta num tom ríspido conforme entro pela porta.

   Ainda estou tão eufórica e sem ar por causa da pedalada até aqui que a primeira coisa que faço é me sentar à mesa ao lado de meu irmão Samuel.

   -Humm... Duas e dez? –eu devolvo após pegar o telefone na mochila.

   -E que horas está marcando aquele relógio?- meu pai aponta para algo que parece mais um quadro na parede da sala de jantar.

    -Duas e dez.

   -Muito bem. Isso significa que o seu celular não está atrasado, o que não se pode dizer o mesmo de você.

   -Foi mal, pai. Mas é que a Priscilinha...

   -Calada! Eu não terminei. Você sabe perfeitamente o horário em que almoçamos nessa casa. Uma e dez. Nem um minuto a mais nem um minuto a menos. Seu irmão e eu já estávamos morrendo de fome e agora, por sua pura falta de responsabilidade, nós vamos ter que comer essa comida gelada. –grita ele, pegando a travessa de couve-flor gratinada e largando com raiva em cima da mesa.

   Dou um pulo.

   Não sugiro pedir à Marlene, nossa empregada, para esquentar o almoço no micro-ondas, nem dizer que eles poderiam ter começado a comer antes sem mim.

   Com minha madrasta trabalhando nesse momento, ou seja, sem ninguém pra vir em meu socorro, apenas fico calada ouvindo os resmungos de meu pai começando a dar garfadas furiosas em sua comida fria.

   Não é a toa que ele vive repetindo pra mim "Escolha suas batalhas, Cléo". Se tem algo em que o ditado popular acertou, é que algumas não valem a pena mesmo. Ainda mais as que são uma declarada causa perdida para o seu lado.

   Apesar de estar com fome, graças ao clima insuportável da mesa, como pouco para sair o mais rápido dali.

  Meu irmão Samuca já está almoçando pela segunda vez quando me levanto calada e pego a mochila para ir pro quarto.

   Ao abrir a porta tomo um susto. Meu armário está escancarado e todas as minhas roupas se encontram jogadas num montinho no chão.

   Uma fúria inunda meu corpo e já estou pronta pra voltar a sala e gritar com o Samuel, o acusando de ser um bebê e não um garoto de nove anos (pois só ele podia ter feito uma brincadeira idiota como aquela) quando meu pai aparece atrás de mim.

  -Quantas vezes eu te disse na semana passada pra arrumar a zona que estava o seu armário, Cléo?

   -N-não... lembro- murmuro com a cabeça baixa.

   -Sete! Se-te ve-zes! E você o arrumou como eu mandei?

  Só balanço a cabeça em negação.

  -Então agora acho que vai. Porque parece que só medidas drásticas fazem você sair dessa moleza e tomar alguma atitude. Ah, e não quero ver você aparecendo na sala antes das seis da tarde. Está ouvindo? É arrumar o armário e sentar pra estudar depois.

Mens@gensWhere stories live. Discover now