A oportunidade

568 46 1
                                    


Sábado era dia de faxina e eu não estava nem um pouco a fim de lavar o banheiro. A desculpa para fugir do serviço? Entregar currículos! Minha mãe não fez nenhuma objeção e ainda me desejou sorte. Eu já tinha tentado de tudo: escritório de cobrança, empresas. Nada. E eu tinha que achar um emprego rapidinho, já que ia receber a última parcela do seguro-desemprego. O FGTS não deu para muita coisa, a não ser zerar umas dívidas.

Mas quem, em sã consciência, sai em um sábado de manhã para entregar currículos? Nenhum dos lugares que poderiam me contratar estava aberto aos sábados. E como eu não estava tendo muito sucesso nesses lugares, pensei em procurar no comércio. Passei em algumas lojas que eu achava mais bacanas de trabalhar. Nada. Quando o estômago roncou, decidi que era hora de voltar para casa e fui até o ponto pegar o ônibus. Já não bastava eu estar irritada por causa do cansaço e da fome, minha pasta cheia de currículos e certificados caiu, esparramando a papelada toda. Entre os certificados estavam o de cabeleireira, curso básico, que fiz faz dois anos. A ideia era aprender a fazer uma escova caprichada para ir às baladas. Até que deu certo, o cabelo estava sempre impecável, mas de que adiantava cabelo escovado e não ter dinheiro para as baladas? 

Quando consegui recolher tudo, levantei a cabeça e meus olhos encontraram um cartaz feito com folha branca escrito "contrata-se" do outro lado da rua. Um salão de beleza. Uma ideia absurda passou pela minha cabeça: que salão contrataria alguém com um curso básico de cabeleireira, que só sabia fazer escova? E ainda por cima em um sábado de manhã? Acho que a fome estava me fazendo delirar, porque eu atravessei a rua.

Rosa Fernandes — Salão de Beleza, estava escrito na placa da fachada da casa modesta de dois pisos. Tinha um muro baixo, portãozinho de ferro aberto. O salão funcionando no piso inferior. Empurrei a porta de vidro e dei de cara com uma recepção com um sofá de dois lugares ocupado por duas mulheres que mexiam no celular e uma, de pé, que reclamava dizendo que já havia passado do seu horário de ser atendida. Uma mulher de uns cinquenta e tantos anos, baixa, pele morena-clara e cabelos tingidos de vermelho saiu do fundo do salão secando as mãos no avental, e, assim que me viu, pediu desculpas dizendo que não havia mais nenhum horário disponível.

— Na verdade estou procurando emprego. Vi o cartaz. 

A mulher falava sem parar, insistindo que tinha horário marcado. 

 — Bruna, vem aqui, faz favor! — Chamou a mulher que tinha me atendido. 

Segurando uma escova de cabelos e com cara de poucos amigos, Bruna veio em nossa direção. Era alta, magra, de cabelos longos e loiríssimos, maquiagem impecável com cílios postiços, sobrancelhas perfeitamente desenhadas. Usava calça pantalona, blusa com um ombro à mostra, sandálias de salto alto e o avental preto com o nome do salão.

— O que foi, Rosa? — Perguntou Bruna com voz entediada. 

 — Falta muito? A cliente já está atrasada... 

— Ai, Rosa... não me apressa. Você sabe que eu estou fazendo o meu melhor. Hoje eu não tô bem, só vim porque a agenda estava cheia. 

Observando Bruna com atenção, percebi que era uma mulher trans. Rosa fez um gesto de "vai, vai" para ela e me chamou em seguida para um canto do salão, onde ficavam as estantes com xampus e outros produtos e discretamente me perguntou:

— Você sabe fazer escova? 

 — Sei — respondi sem nem pensar. 

Eu sabia? 

Então me dei conta do que é que eu tinha dito. Mas era tarde demais para voltar atrás. 

— Guarde suas coisas no armário. Você vai fazer escova naquela cliente. A cliente que reclamava. Ela queria me testar. 

— Qual seu nome? 

— Samanta. 

— Eu sou a Rosa, dona do salão.

E se dirigiu a um rapaz que atendia no fundo do salão. 

— Max, mostra pra Samanta onde fica o armário. 

No lavatório estava Max: alto, moreno. Um gato. Depois de me mostrar o armário e eu deixar minha bolsa e pasta, ele voltou e se posicionou no lavatório. 

— Rosa, pode mandar a cliente — disse ele.

Rosa me mostrou a cadeira onde eu atenderia a cliente e as gavetas onde estavam o secador e as escovas. Quando Max terminou de lavar os cabelos da mulher, ele a levou até a cadeira e então eu comecei. Estava tão nervosa que deixei a escova cair. Me atrapalhei com o secador. Acho que demorei mais que o normal para fazer uma escova.  

Mal a mulher saiu, outra ocupou a cadeira e eu só parei depois da terceira cliente, quando disse à Rosa que precisava comer alguma coisa ou iria desmaiar, pois não tinha almoçado. O almoço improvisado foi um pastel de carne, uma coxinha e uma lata de refrigerante que comprei na padaria e comi na cozinha, nos fundos do salão. Aproveitei a pausa para avisar minha mãe que chegaria mais tarde porque eu tinha conseguido emprego em um salão de beleza. Não dei muitos detalhes, mas acho que ela entendeu que eu tinha sido contratada para ser a recepcionista. 

 Além de Rosa, Bruna e Max, também trabalhava Luana, a manicure. Ela era chegada no lance esotérico porque no espaço em que ela atendia tinha estátua de buda, mandala, incenso e usava um colar com pingente de olho grego e, com mais de uma cliente, ela falou sobre tarô, I Ching e mapa astral. 

Quando terminei a última cliente, Luana já tinha ido embora, Rosa fechava o caixa e Max lavava toucas, pentes, potes, pincéis e conversava com Bruna. Aproveitei para olhar Max com mais atenção: o cabelo curto cacheado formando aneizinhos sedosos, a camiseta preta e o jeans escuro que ficavam perfeitos no corpo esguio. Max era o tipo discreto, enquanto Bruna era mais extravagante. Perdida nos meus devaneios, nem percebi que estava olhando demais para os dois, mas Bruna fez questão de fazer uma cara de "o que você está olhando?" e eu, para não perder a pose, disse que queria uma vassoura para varrer o salão.

Max me apontou o lugar onde a vassoura estava e enquanto eu ia em direção a ela, Bruna pegou do armário sua bolsa Louis Vuitton e uma chave de carro. Nem deu boa noite, simplesmente saiu acompanhada de Max. 

A cena devia ser patética: eu segurando uma vassoura enquanto olhava os dois saindo do salão. Foi Rosa quem me resgatou dos pensamentos e me trouxe à realidade. 

— Em quantos salões você já trabalhou? 

Eu ia dizer que em uns três. 

— Nenhum. 

Não sei o porquê, mas falei a verdade. Me arrependi, mas já era tarde. 

— Deu pra perceber. 

Eu queria morrer de tanta raiva. Custava ter mentido? Ela calculou minha comissão, mostrou o total e me entregou o dinheiro.

— Samanta, eu não costumo contratar funcionários sem experiência. Mas eu vou te dar uma chance. Como a Luana costuma dizer, acho que nosso santo bateu.  

Saí do salão às nove e meia da noite, com dinheiro no bolso e um emprego de cabeleireira. Não era exatamente o que eu procurava, mas ia servir. Aliás, nem sei quanto tempo iria aguentar, porque meus braços estavam dormentes, minhas pernas doendo e as costas me matando. E eu trabalhei só algumas horas! Decidi dispensar o ônibus. Me sentei no muro em frente ao salão e chamei um carro pelo aplicativo.

Do outro lado da rua vi Max saindo de um carro de vidros escuros e quando o vidro foi baixado, vi Bruna ao volante. Ele voltou, trocou mais algumas palavras com ela, atravessou a rua e passou por mim dizendo boa noite. Fechou a porta de grade, depois a de vidro, apagou as luzes. Só deixou acesa a que iluminava a placa. Quando olhei para a frente, o carro de Bruna já tinha ido embora e o meu carro tinha chegado.

Troquei poucas palavras com o motorista do aplicativo. Não sei, mas acho que ele estava tão cansado quanto eu. Foi até bom, porque eu passei a viagem toda pensando no Max e na Bruna. Não sei explicar, mas tinha alguma coisa estranha entre eles e que nada tinha a ver com o fato de não serem um casal tradicional. Conheço casais de vários tipos e gêneros e em todos rolava uma química entre as partes. Mas aqueles dois? Não sei. Pode ser que eles estivessem passando por um momento de crise. Acontece. Eu já tinha passado por momentos assim também. 

 

Miss Plus SizeWo Geschichten leben. Entdecke jetzt