Caucutá

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A capital do Raj Britânico estava em seu apogeu no ano de 1880. Fábricas surgiam por todos os lados, principalmente de tecidos, e linhas de telégrafo eram instaladas na cidade. No bairro mais nobre, moradas dos burocratas ingleses, Edward Smith andava de um lado para o outro na sua casa. Uma das mais simples da vizinhança, porém muito superior a grande parte das moradas dos indianos.

O professor de línguas, formado em Oxford, tinha pele branca, cabelos escuros e olhos verdes. Morava na Índia há mais de dez anos, quando recém-formado e recém-casado foi convidado para morar do outro lado do mundo como tradutor funcionário da Coroa Britânica. Para o jovem desempregado, sonhador e com uma esposa para sustentar, parecia o emprego dos sonhos. Salário fixo para viver uma aventura num lugar exótico.

Porém, cinco anos depois a aventura virou um pesadelo. Voltava de trem com sua esposa Jocelin de uma visita ao Taj Mahal. Era muito longe, mas desde que chegaram ao país sonhavam com a viagem. O trem foi parado por indianos que haviam colocado bombas nos trilhos. Durante a madrugada o trem parou, dezenas de ladrões entraram nas cabines roubando tudo que viam pela frente. Edward com uma arma na mão apontava para a porta da cabine, mas não teve reação rápida contra os três outros homens armados com facões e espadas. Logo foi atingido na barriga com terrível corte e sua esposa foi puxada pelos cabelos para fora. Enquanto ouvia os gritos dela ao longe tentava respirar, mas não conseguia.

Acordou dias depois num hospital da capital recebendo a notícia de que havia encontrado o corpo de Jocelin assim como de outras mulheres, inglesas e indianas das mais altas castas, que estavam no trem. O governador-geral abriu uma investigação e jurou prender e executar todos participantes do massacre, porém, após cinco anos pouco conseguiu avançar e o caso se tornou mais um dos tantos pontos de tensão entre os colonizadores e nativos.

Edward ainda tinha dúvidas de voltar à Londres, e o governador insistiu que ele continuasse já que era o único que conseguia traduzir algumas línguas como o oriá e tibetano. Os outros tradutores pouco sabiam além do hindu, que era a língua mais falada entre os indianos. Depois de cinco anos o governador não estava mais conseguindo encontrar argumentos para o tradutor ficar na Índia. O salário havia diminuído por cortes orçamentais feitos pela coroa, e nada o prendia àquele lugar.

Naquela tarde de junho, início das chuvas das monções, Edward pensava no que faria. Pensava se não era a hora de voltar para casa, mas um Marajá lhe fez uma oferta irrecusável. Se aceitasse o trabalho, voltaria para Londres rico, e conseguiria refazer sua vida sem o dinheiro da sua família. O que seria mais um ano de sacrifício para quem já estava ali há dez anos? Porém, cinco anos havia se passado desde a morte de Jocelin e sua memória ainda o assombrava. Lembra-se dela em tudo que via. Até havia se mudado de casa, mas era em vão. Ela ainda estava muito viva em seus pensamentos.

Havia conseguido algo muito difícil na aristocracia britânica, um casamento por amor. Mesmo com toda dificuldade do seu pai aceitar que ele se casasse com uma moça de dote. E ele sendo um poeta, juntos passariam fome. Mesmo assim conseguiram casar com ajuda do pai dele que o conseguiu o emprego na Índia. Não ganharia dinheiro com poemas, mas estaria próximo das letras de qualquer forma.

Edward se serviu um pouco de whisky e sentou-se em uma das poltronas da sala olhando a chuva lá fora. Releu a proposta feita por escrito pelo Marajá de Varanasi. Havia ido à cidade apenas uma vez. Era sagrada para os hindus e budistas. Muito diferente das modernas Caucutá ou Bombain.

Teria que ensinar inglês para a esposa dele e havia a proposta de pagamento para um ano de aulas. O governador-geral que o indicou para o serviço. Disse ao Marajá que Edward era honrado e não tinha família, poderia se mudar para a palácio de Varanasi sem problemas por, pelo menos, um ano.

Sabia que voltar para Londres sem nenhuma reserva seria um desastre para ele, seria humilhado de todas as formas. Era melhor aceitar. Um ano, em um ano iria embora daquele lugar para nunca mais voltar. Tomou mais algumas doses de whisky e foi dormir.

No outro dia enviou uma carta ao governador-geral aceitando o trabalho. Logo recebeu um pedido para que fosse ao palácio ainda aquela tarde para uma reunião antes de ir à Varanasi.

Edward colocou sua casaca e cartola, e foi de carruagem até o palácio. A chuva não dava trégua e as ruas estavam cheias de buracos e lama. Nas monções os britânicos evitavam sair de suas casas. Por isso sabia que aquela reunião devia ser importante. Ele chegou ao palácio e logo seguiu pelos elegantes corredores da recente construção em estilo vitoriano. Foi direto ao escritório do governador, passando pelos dois guardas que o conheciam, que estavam parados na porta. Eram indianos e usavam turbantes amarelos.

— Caro Edward! Fiquei tão feliz com sua resposta. Por favor, sente-se — pediu o homem de meia-idade, de olhos azul, cabelos e barba loiras.

— O senhor sabe o quanto eu quero voltar para casa, mas não posso abrir mão de um dinheiro desses — disse Edward se sentando.

— É uma grande oportunidade, mas tenho uma missão para o senhor.

— Missão?

— Tememos que Varanasi esteja querendo se rebelar. O senhor irá nos informar sobre absolutamente tudo que ver no palácio. Ganhe a confiança do Marajá.

— Eu não sou um espião, George. Sou apenas um escritor e tradutor— disse Edward nervoso.

— O senhor é cidadão britânico e deve obediência a coroa.

— Então não quero mais o trabalho. — Edward se levantou.

— Só estou pedindo que faça um diário. Apenas isso do que você está vendo ou conversando.

— O senhor falou em ganhar a confiança do Marajá.

— Edward, eu o tenho em grande estima. É um homem honrado leal à Inglaterra. Apenas vá dar suas aulas de inglês a uma bela rainha e me escrava sobre o que está vendo.

— E como acha que não lerão o que eu enviar para fora? Não sou inocente. Sei que estarei numa prisão por um ano. Numa luxuosa prisão, mas ainda uma prisão.

— E será muito bem pago por isso. Quanto às cartas, daremos um jeito. Vá e depois de um tempo entramos em contato. Podemos marcar um local, não sei. Vá se organize. O senhor é muito inteligente, sei que conseguirá pensar em uma forma.

— E não vou aceitar. Não sou um espião.

— Se o senhor não aceitar, será preso por traição. Edward, aqui não é a Inglaterra. Tenho poderes aqui que a Rainha não tem na Inglaterra.

— Eu não acredito que está fazendo isto comigo. Pensei que me tinha como um amigo — disse Edward decepcionado.

— E eu tenho, mas são tempos desesperados. Não aguentaremos outra rebelião como a de 57. Dessa vez não teríamos força para sufocá-los. Por favor Edward, é um pequeno favor ao seu país.

— Já que não tenho escolha... — disse Edward voltando a se sentar.

— Ótimo — sorriu o governador-geral.— Se puder ganhar a confiança da Rainha, é uma bela mulher...

— Vou fingir que não me disse isso.

— Você está há quanto tempo sem se deitar com uma mulher?— perguntou George Evans, mas teve silêncio em reposta.— Está bem. Faça suas malas, amanhã de meio dia uma carruagem irá buscá-lo na porta de sua casa.

A escolha das DeusasWhere stories live. Discover now