Prólogo

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Ano de 2017...

Eu não escutava os sons das coisas e pessoas ao meu redor. Nem mesmo os murmúrios que eu achei que seriam destacáveis e afiados como uma adaga. A funerária parecia menor a cada momento, às pessoas pareciam mais próximas a cada minuto e eu não pensava em nada especial, eu não pensava, definitivamente. Apenas, talvez, no que a falta de som estava fazendo com a minha garganta, tenho certeza de que estão ligadas de alguma forma. Eu estava sufocando lentamente naquele banco de madeira onde eu me encontrava, diante aquele caixão de cor caramelo. Às pessoas choravam e eu não conseguia respirar. Meu pai também não, mas ele disfarçava bem, ele precisava de ar, mas disfarçava muito bem. Eu necessitava de ar, eu necessitava a cada minuto mais que passava, até que me vi ansiando por ar em um frenético ataque de pânico.

Vejam só, aos 15 anos, a pobre garota perdeu a mãe e não conseguia lidar com a presença de várias pessoas no funeral. Não conseguia lidar com nada. Afinal, ela aos poucos foi desaprendendo como se respirava desde que a mãe fora diagnosticada com Alzheimer em uma idade que isso não deveria acontecer, seu funeral foi o ápice. Apesar de que essa garota teve que aprender muitas coisas para se manter viva até este dia e uma delas é que ter o amor do pai novamente, estava fora de questão.

Emily Dan-i, eu, saí correndo daquele lugar abafado. Eu sabia que não poderia fugir daquela realidade em que estava presa, mas eu também sabia que precisava respirar e, pelo menos, dali, eu poderia fugir. Corri e atravessei as portas. Desci às escadas e parei na calçada me apoiando nos joelhos, curvando meu corpo cansado. Mas quando finalmente estava ao ar livre, percebi que meu problema de falta de ar, na realidade, não tinha nada a ver com as várias pessoas que se encontravam no funeral de minha mãe. Agora, além de não poder respirar eu ofegava como se meus pulmões fossem explodir. Entretanto, escutar era viável novamente. Eu ouvia o som do inverno rigoroso que chegava e das folhas sendo arrastadas pelo vento forte, o frio subiu de uma vez em meu corpo.

Quando finalmente abri os olhos, me deparei com um par de sapatos sociais na cor preta, emitindo um certo brilho comum. Pelo visto, não estava escutando tão bem já que não ouvi o dono destes sapatos se aproximando. Levantei os olhos por aquele corpo desconhecido. Era a figura de um professor, pelo menos, me parecia um, mas ele tinha uma cara jovial, um rosto liso e usava terno preto, então duvidei se realmente era (não por causa do terno, claro). Ele ajeitou seus óculos com delicadeza e me fitou friamente.

-Você é Dan-i? Emily Dan-i? - perguntou com a voz que se esforçava para parecer suave. Talvez, ele não costume lidar com adolescentes. Professor de Faculdade?

Eu me desapoiei dos joelhos, por algum motivo que eu ainda não sei, passei a mão em minha saia preta escolar como se quisesse limpá-la e aquietei minha respiração que foi se normalizando. Meus olhos secos e conturbados, encararam aquele rosto pretensioso e sombrio. Eu afirmei que sim com a cabeça, atenta aquele homem de 1, 85 m, o que era uns 25 centímetros mais alto que eu. Ele colocou as mãos nos bolsos da calça e se aproximou. Depois que seus olhos castanhos e meio esverdeados estavam me analisando, ele agarrou meu pulso me fazendo dar um passo a frente, encarou minha mão pálida e pequena que se abriu. Assustei-me, mas continuei imóvel, ele não parecia ser alguém estranho ou perigoso, só um pouco brusco.

-Suas mãos não parecem com as dela. - ele afirmou soltando meu pulso com a gentileza que não demonstrara no primeiro momento.

Depois disso, ele tirou seu cachecol marrom-escuro e o pôs em mim, meu pescoço ficou totalmente embalado e meu resto, coberto até a boca. Era um cachecol grande. Eu não sabia como reagir àquela situação. Eu não sabia quem era aquela pessoa de atitudes inusitadas e olhar gentil, mas, ao mesmo tempo, frio. Se minha mãe o conhecia eu não teria como confirmar. Eu só sei que após vê-lo cruzar a rua e sumir na esquina, meu coração ainda não havia se acalmado e o rubor em minha face não sumira. Apertei seu cachecol contra meu peito e percebi que desde que minha mãe havia adoecido, aquele foi o primeiro cuidado que ganhei de alguém.

E então, abri o livro sobre você naquele dia, mas nunca pensei que fosse acontecer novamente.

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Ano de 2018...

Estávamos no começo de um rigoroso inverno, que logo se dissipou com a chegada de um novo ano. Mas eu entrei para o ensino médio só para descobrir que o inverno dentro de mim nunca acabara e talvez nunca fosse acabar. Entrei naquele novo ambiente, a sala, e me sentei na última cadeira da fileira ao lado da parede. Um garoto de olhos claros não parava de me encarar ao meu lado, mas não me virei para ele em nenhum momento. Uma garota de cabelos loiros que sentou à minha frente, sorriu para mim e disse oi, mas eu apenas contraí meus lábios em uma tentativa envergonhada de sorrir. Todos os alunos que faziam um barulho constante, se acalmaram ao som da porta se abrindo. Meus olhos que até então não saem da janela, de um modo displicente, voltaram-se para o primeiro professor que encontraríamos em nosso primeiro dia de aula. Ele levantou os olhos ao encarar à todos, fazendo descaso de mim, mas eu sabia que jamais poderia esquecer aquela presença e aquele olhar pretensioso e foi assim que a minha história começou, foi assim que mais uma vez, eu abri o livro sobre você.

O Que Há Nas Entrelinhas?Where stories live. Discover now