Liberdade

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Angela a narrar

Fiquei ali a olhar para ele, ouvindo o que ele dizia atentamente. As palavras dele iam sendo gravadas na minha cabeça, uma a uma, sendo depois processadas e descodificadas para formar uma mensagem completa e coerente.

Depois de dar uma gargalhada, acabei por lhe responder.

- Sim, acho que pertencemos a uma raça condenada...

Sorri ao ouvi-lo rir do meu comentário, vendo-o depois concordar com a cabeça.

~3 meses e 2 semanas depois~

Finalmente, o meu último de vida chegou. Sairemos de noite, para que o diretor do hospital não nos veja; a última coisa que quero hoje é que me façam perguntas. Amanhã, os médicos justificarão o meu desaparecimento ao diretor, dizendo que, num ato de desespero e depressão, consegui romper a barreira plástica que me protege do mundo exterior com a faca que tinha usado para comer e deixei que a vida se esvaísse do meu corpo. Quando perguntarem onde está o meu corpo para ser identificado pelos meus pais, dirão que já fui levada até eles. Os meus pais farão um funeral falso e assinarão a certidão de óbito para que seja oficial e, quando a minha altura chegar, enterrar-me-ão, secretamente, nas sombras da noite, com a ajuda do coveiro, e farão o luto.

Eu sei, ainda estou viva e bem viva e já tenho todo o processo da minha morte planeado. É um enorme paradoxo, tenho consciência disso, mas já fizemos demasiado até aqui, estou a arriscar a vida e carreira de todos os médicos deste hospital em fazer isto, é tarde de mais para voltar atrás agora. Além disso, eu já tenho 18 anos, logo, posso decidir se quero ou não continuar a ser tratada, certo? Eu estou bem mentalmente e já tomei a minha decisão.

O Justin e os médicos deixaram-me sozinha, apenas com os meus pensamentos, naquele quarto e o formigueiro na minha barriga aumentava à medida que o sol se punha e a escuridão invadia aquela divisão.

Estava sentada na minha cama, balançando os meus pés que ficavam suspensos a cerca de 10 centímetros do chão. Eu sei, sou mesmo baixinha.

Adiante, eu envergava umas calças de ganga pretas com alguns rasgões, uma camisola de malha branca, feita pela minha mãe de propósito para este grande dia e um blusão de ganga, que já chegou a ser o meu favorito, e ainda o é.

Dei por mim de cabeça baixa, com as mãos firmemente pousadas sobre os meus antigos lençóis, respirando profundamente à espera que me abrissem a porta para que eu pudesse finalmente sair deste maldito quarto e ver e sentir, pela primeira vez na minha vida, o mundo lá fora.

Se querem saber a minha modesta e sincera opinião, aquelas dúvidas que existiam na minha cabeça há uns meses atrás, ainda continuam comigo. À medida que a hora se aproxima, sinto-me cada vez mais hesitante. Quero dizer, eu tenho a certeza que quero isto, eu sempre quis isto, é o meu maior sonho, mas ainda tenho algum medo. Acho que é normal, certo? Acho que não me vão censurar se eu disser que temo a minha própria morte, que passei tantos meses a planear, não a morte em si, mas o que vem depois. Eu vou deixar tudo e todos para trás, incluindo o Justin, por quem eu me tenho vindo a apaixonar cada vez mais, mesmo que nunca tenha sentido, verdadeiramente, o seu toque. E eu sinto que ele sente o mesmo, mesmo que eu nunca lhe tenha tocado. Creio que isto se pode chamar um verdadeiro caso de amor verdadeiro. Meu deus, que lamechice!

Ri com os meus pensamentos e saltei da cama, andando de um lado para o outro enquanto esperava que as estrelas tomassem conta do céu noturno, o que me daria a deixa para as ver mais de perto.

No meio de todos estes pensamentos, ouvi a porta do quarto abrir-se e, instintivamente, olhei para lá, vendo a pessoa que eu mais queria ver naquele momento. O seu sorriso iluminou o espaço e os seus belos olhos castanhos apaziguaram o meu espirito, fazendo-me respirar fundo e sorrir-lhe de volta, vendo-o fechar a porta silenciosamente antes de dar alguns passos até mim.

- Estás pronta? – murmurou a pergunta, com voz rouca, como se, por alguma razão, ele tivesse ouvido toda aquela tagarelice mental sobre as dúvidas que tenho quanto ao que se vai passar esta noite. Olhei-o diretamente nos olhos e assenti rapidamente, tentando que ele não percebesse a minha hesitação. Vi-o analisar-me de alto a baixo, suspirando logo depois. – Angie, se tiveres dúvidas, podemos esperar mais umas semanas, ou até meses, não faz mal...

Antes que ele pudesse terminar o seu discurso, neguei com a cabeça freneticamente.

- Eu esperei por este dia toda a minha vida... - sussurrei, como se quisesse que isto ficasse apenas entre nós. Encostei as palmas das minhas mãos à barreira que nos separava, esperando que ele imitasse o meu gesto. Quando o fez, suspirei, sem nunca quebrar o contacto visual. – Nós já fizemos demasiado para desistir agora. Eu não posso voltar atrás com a minha palavra, não agora. – murmurei, vendo-o assentir pouco depois.

- Ok... Se é mesmo isto que queres... - olhou-me, analisando-me. Respirei fundo e assenti em resposta à pergunta implicita nos seus olhos. Suspirou baixo e sorriu, assentindo também. – Espera só mais um bocadinho, ok? Estamos só à espera que o diretor saia do hospital e depois, és uma mulher livre. – Estas palavras fizeram com que uma alegria, estranha e repentina, me atingisse, o que me fez assentir, concordando com ele, enquanto um sorriso gigante se formava nos meus lábios. – Até já. – sussurrou, 'beijando-me' depois, colocando os seus lábios contra a barreira, gesto ao qual eu respondi. É triste pensar que imaginar a sensação dos lábios dele em contacto com os meus é a única coisa que manteve esta paixão, quase doentia, que sentimos um pelo outro.

Depois de quebrar o nosso 'beijo', sorriu-me e saiu do meu quarto, quarto esse que ele tem habitado nestes últimos meses, abandonando-me apenas por algumas horas por semana para ir a casa tomar banho e buscar roupa lavada. Suspirei pesadamente, quando aquela impaciência insistente me atingiu novamente, e voltei a andar de um lado para o outro, esfregando as mãos lentamente e passando-as pelo meu cabelo. Quando os meus olhos pousaram na cama em que ele dormira há uma noite atrás, não pude evitar sorrir enquanto as memórias de há um mês atrás me atingiam.

~há 1 mês atrás~

- Angie, não faças isso! – implorou, enquanto eu segurava a ponta de uma faca estranhamente afiada contra o meu peito.

Isso mesmo, eu estou a tentar suicidar-me. Estou a entrar em desespero, eu não consigo aguentar isto até ao fim. Não sou capaz...

- Justin, sai daqui... - murmurei, estranhamente calma, respirando fundo.

Vi-o lamber os lábios e dar alguns passos lentos na minha direção, parando abruptamente quando ameacei que o faria ali mesmo, à frente dele.

- Angie, olha para mim... - pediu, sendo que obedeci pouco depois, com olhos cansados. – Eu sei que estás farta... - começou. – eu sei, eu entendo que estejas cansada, mas... - pareceu perder-se um pouco na linha de raciocinio antes de apontar para o calendário azul e branco, preenchido por grandes cruzes vermelhas, que eu tinha afixado na parede do meu quarto. – Olha... - respirei fundo, novamente, olhando para a direção que o seu comprido indicador apontava. – Falta pouco mais de um mês... - Voltou a olhar-me. – tu querias morrer na praia, à beira mar enquanto vias o pôr do sol, lembras-te? – não lhe respondi. – não aqui, neste hospital, onde viveste toda a vida. – Quando ele terminou esta frase, podia jurar que vi uma enorme poça de lágrimas formar-se debaixo do seu queixo bem definido. – Por favor, diz que te lembras... - implorou, súplica essa que eu respondi ao afrouxar a pressão da ponta da faca sobre a pele pálida do meu peito. – Aguenta, ok? Já está quase, e eu vou ficar contigo, até ao fim. Eu espero contigo, só te peço que aguentes, Angie, por favor... - Sussurrava.

~Atualmente~

Dei por mim a imaginar o que tinha acontecido se eu não o tivesse escutado, se tivesse feito pressão na faca e, pura e simplesmente, acabasse com tudo, quando a voz dele invadiu os meus ouvidos como uma melodia baixinha e gentil.

- Pronta? – olhei-o, voltando à realidade, e sorri, assentindo. – Ok, mete-te a postos, eles vão agora abrir a porta. – E com isto, saiu.

Respirei fundo e meti-me à frente da porta, vendo pelo vidro baço um médico aproximar-se da mesma e destrancando-a, abrindo-a depois, e foi quando a melhor sensação do mundo me atingiu: liberdade.


ParaísoWhere stories live. Discover now