Todas as Coisas que Eu Não Od...

By emeemys

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[VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS 2021 na categoria YOUNG ADULT] Tem poucas coisas que Eva Aquário não odeia no mund... More

1 - não são nem sete da manhã
2 - pacto matemático inquebrável
3 - romances sáficos e onde habitam
4 - batatas gratinadas e azeitonas
5 - atração
6 - acordo de paz
7 - bobos idiotas
8 - sobrenomes de signo
9 - condomínio falsa escócia
10 - a nova cláusula
11 - vestidos cor de pêssego
12 - ótimos julgadores de caráter
13 - você gosta de azeitonas?
14 - lanchonete limonada
15 - malditos beijos de mina leão
16 - a toca da serpente
17 - quando plutão beija saturno
18 - irmandade
19 - sem acesso à internet
20 - talentos escondidos
21 - você sabe que eu gosto de garotas
22 - atos revolucionários
23 - ferrugem
24 - medidas drásticas
25 - estrelas cadentes
26 - perda total da dignidade
27 - a tradição do chocolate-quente
28 - você quer ir ao baile comigo?
29 - assassina de almôndegas
31 - todas as coisas que eu odeio em você
32 - trégua definitiva
33 - aquário-vinhedo
34 - mulheres poderosas usam terninho
35 - microfone aberto
36 - o alinhamento de saturno e júpiter
37 - pirulitos de coração
38 - o baile de formatura
39 - estrelas do rock
40 - garota de boafortuna
epílogo
bônus 1 - mina leão não beija garotas

30 - você não é saturno

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By emeemys

O ÔNIBUS ALUGADO pela escola tem poltronas confortáveis e um ar-condicionado decente, o que me possibilita usar um casaco às oito da manhã pela primeira vez em uns bons sete meses. Larguei minha mochila no assento ao lado do meu, uma mensagem clara de que não pretendo compartilhar meu lugar com ninguém durante toda a viagem, e busco meus fones de ouvido no bolso da frente.

Sem músicas sáficas dessa vez, ou muito menos músicas tristes que me deixam na fossa. Eu vou apelar pra, sei lá, um rock pesado, ou quem sabe um podcast bacana sobre um assunto qualquer. Porque eu não posso pensar em coisas que me deixam mal, não posso pensar no fato de que não tenho mais certeza de nada na minha vida, nem muito menos pensar em garotas que causam revoluções dentro de mim. É uma viagem de dois dias, longe de tudo e todo mundo, e a única coisa em que preciso me preocupar é em me dar bem na droga do Campeonato Estadual de Matemática.

Soube que vamos ficar num hotel bacana, com piscina e uma vista bonita para a praia de Alto-Mar. Soube também que, apesar de não podermos pegar nada do minibar, poderemos usufruir gratuitamente de um cardápio variado no restaurante do hotel. Sei que não faz muito o meu estilo, na verdade não faz nada o meu estilo, mas tô tentando pensar positivo, listar as coisas boas dessa viagem e tudo o mais. Não é algo fácil, mas, bem, estou me esforçando. Talvez se eu mudar minha forma de como sempre vejo as coisas, consiga mudar também todos os sentimentos que ando sentindo.

As palavras da mamãe não saem da minha cabeça há semanas. Me recusei a ver Mina Leão durante o restante das férias, até parei de mandar mensagens por um tempo. Claro que, quando era ela quem me mandava, me sentia obrigada a responder, mesmo tentando não prolongar nenhuma conversa. Mas aí as aulas voltaram, e todo o meu esforço foi por água abaixo. É muito difícil superar essa coisa quando a culpada de tudo está a centímetros de mim, dividindo a mesma classe, as vezes até o mesmo ônibus. Estou confusa pra caramba, e, cara, não sei como vou me concentrar na droga do campeonato se não tirar a porcaria das minhas preocupações da cabeça.

Inferno, inferno, inferno.

— São só algumas horas de viagem, crianças — comunica Rogério, poucos minutos depois de o ônibus dar partida. — Tentem descansar, está bem? Assim que chegarmos no hotel, já iremos nos preparar para conhecer o local da competição.

Quando ele se acomoda novamente no seu assento, ao lado da professora bonita do terceiro ano B, volto a aumentar o volume. Deito a cabeça na janela, assistindo os prédios de Boafortuna passarem depressa, enquanto tento por tudo que é mais sagrado calar os meus pensamentos irritantes e insistentes.

Um dia eles ainda vão me matar.

AS GAROTAS DE Alto-Mar são bonitas. Bonitas como as garotas de Boafortuna, mas ao mesmo tempo de um jeito diferente. Não sei explicar, não sei se é pelo bronzeado presente em quase todas elas, ou porque a maioria que vi estava com roupa de banho enquanto voltava da praia, mas sei lá. Acho que estou apaixonada pelas garotas dessa cidade.

Como Rogério deixou claro no caminho, Alto-Mar é uma cidade bem menor do que a nossa. Os prédios são menores e as ruas são mais estreitas, algumas ainda de paralelepípedos. E é tudo muito fofinho, eu acho, os edifícios coloridos e as pessoas animadas. Acho que eu gostaria de morar aqui.

— Ei, posso me sentar com você?

Tiro os olhos do meu prato e encontro uma garota ruiva parada perto de mim feito uma estátua. Ela não deve ser da cidade, já que também está aqui no hotel, e não espera que eu a responda antes de arrastar a cadeira e se sentar ao meu lado. O restaurante está realmente cheio e eu ocupo sozinha essa mesa de quatro lugares. Acho que ela preferiu arriscar e se sentar comigo do que com qualquer um dos grupos tagarelas que ocupam as outras mesas.

— Você tá aqui pelo campeonato, né? — ela pergunta, e eu aceno com a cabeça em resposta. — Massa! Meu nome é Júlia. E o seu?

— Eva — murmuro, tão baixo que nem mesmo eu consigo compreender. Tusso pra minha voz soar mais alta e repito: — Meu nome é Eva.

Júlia realmente não é de Alto-Mar, e sim de uma cidade interiorana qualquer que, segundo ela, fica perto da capital. A gente conversa durante todo o almoço — ela falando bem mais do que eu —, dividimos a porção absurda de batata-frita que ela pôs em seu prato e discutimos sobre o campeonato de amanhã. Acho fofinho o jeito como ela conta que não acredita que sua escola possa chegar ao pódio dessa vez, mesmo tendo ido parar na final no ano passado. Quero dizer, isso não é fofo, e sim a forma como ela fala. Sorrindo meio tímida, como se estivesse com vergonha.

— Acha que sua escola vai ganhar?

— Não sei. — Dou de ombros, cortando o último pedaço do frango no meu prato. — Acho que somos bons, mas não sei o nível das outras equipes.

— Bem, se a minha não ganhar, o que é o esperado — ela brinca, ainda sorrindo —, espero que a sua ganhe, Eva Aquário.

— Digo o mesmo.

Finalmente termino o meu almoço, mas não tenho coragem de me levantar e ir embora. Fico sem jeito de, sabe, só dizer tchau e me afastar.

— O que você acha de a gente ir tomar um sorvete? — ela convida, brincando com os seus talheres em cima do prato vazio.

— Sorvetes não estão inclusos no nosso cardápio gratuito — aviso, e Júlia sorri para mim como se eu tivesse dito algo que poderia muito bem ter saído da boca de uma criança. Acho que respondi exatamente o que ela queria.

— Não tem problema. Eu pago pra gente.

Devolvemos nossos pratos para o balcão do restaurante, e eu acompanho a garota até a área das sobremesas. Ainda tem muita gente almoçando, ocupando as muitas mesas no salão, então nós duas conseguimos passar despercebidas. Sei que posso levar um sermão se um dos professores me pegar aqui, numa área que eu nem deveria estar, mas vou ignorar isso. Não tenho como estar fazendo algo de errado se eu não for pega.

— De que sorvete você gosta?

— Tem alguma coisa de limão? — pergunto, encarando as opções atrás do vidro.

Júlia pede um sabor excêntrico — sorvete de ameixa com pistache — e me entrega a minha porção de sorvete simples de limão com calda de chocolate. Assim como eu, ela deve saber que não devemos sair do restaurante do hotel sem supervisão, mas pelo visto não parece se importar muito com isso. Conferimos juntas se não tem alguém de olho em nós e saímos do salão a passos acelerados.

Caímos na risada assim que alcançamos o corredor.

— Pra onde você quer ir, hein? — ela pergunta, enfiando a colherzinha de plástico na boca. — A gente pode ir pro telhado do hotel, ouvi dizer que tem uma vista bonita. Ou, sei lá, ir conversar no meu quarto.

Meu estômago revira por um segundo, mas o ignoro enquanto me concentro no sabor delicioso do meu sorvete.

— Que tal irmos pra piscina? — sugiro, parando no meio do corredor. — Tem bastante gente por lá, então não vão desconfiar da gente. E não vai parecer que estamos fazendo algo de errado se encontrarem nós duas.

Ela sorri, erguendo as sobrancelhas por um segundo, tão rápido que quase não noto.

Algo de errado. Uhum, pra piscina, então.

Como eu imaginei, tem muita gente. Crianças berrando na água, adultos se bronzeando nas espreguiçadeiras, adolescentes nas mesas usando seus celulares. Pra mim não faz muito sentido ter tantas pessoas aqui essa hora da tarde, quando poderiam muito bem estar na praia, mas tudo bem. Terminamos nossos sorvetes e caminhamos juntas até uma das piscinas, tirando nossos chinelos e nos sentando na borda, molhando nossos pés.

— Você mora em Boafortuna, não é? — Assinto, meus olhos comprimidos por causa do sol forte. — Como é viver lá? Você gosta?

Faço uma careta. Acho que isso já responde.

— Não é ruim, eu só... não me sinto em casa por lá. Não ainda.

— Ah, sim. Entendi.

— Mas e você? Gosta da sua cidade?

— Eu nasci e cresci lá, então acho que preciso gostar? — Ela dá de ombros, torcendo o nariz de um jeito que a deixa ainda mais fofinha. — Sei lá, é a única realidade que eu conheço, então não sei se devo reclamar. Minha vida é legal, meus amigos são legais, mas... acho que eu iria embora se pudesse mesmo assim.

Assistimos um garoto pular na piscina, respingando um pouco de água em nós duas.

— E pra onde você iria?

— Pra um lugar onde ninguém me conhece, com certeza — ela responde de imediato, como se já tivesse essa resposta na ponta da língua há muito tempo. — É muito difícil ser você mesma em uma cidade onde todos sabem o seu nome, como se todo mundo te conhecesse melhor do que você mesma. E se você escolhe mudar... ou sei lá, ser honesta e se mostrar de verdade pela primeira vez, não adianta muita coisa. As pessoas sempre vão lembrar da sua versão anterior, e isso é uma droga.

Assinto em silêncio. Acho que eu nunca parei muito pra pensar sobre isso, na sorte que eu tive. Passei tanto tempo reclamando sobre como tudo tinha mudado que nem me dei conta em como isso foi bom. Tudo mudou quando fui pra Boafortuna, tive a chance de me reconstruir e, pela primeira vez, ser a Eva Aquário que eu sempre quis ser. Sem segredos, sem mentiras. Como eu não havia percebido que, em dezessete anos, os últimos meses foram os primeiros em que eu não precisei me esconder de ninguém?

— Eu moraria em Alto-Mar — ela continua, me fazendo voltar a atenção para ela. — Aqui parece ser um bom lugar pra recomeços.

— E tem muitas garotas bonitas — respondo, sem perceber.

Puta merda, Eva Aquário, qual é o seu problema?

Mas Júlia apenas ri, acenando em concordância em seguida. Ela brinca com os pés na água, sua pele exageradamente branca como a minha parecendo brilhar no sol.

— Não sei se você tá sabendo, mas vai ter uma festa secreta amanhã — avisa, levando a sua atenção para mim. — Quarto 308, lá pelas dez ou onze da noite. Uma coisa entre os alunos depois da competição, sabe? Você deveria ir.

Enquanto fala, ela leva os olhos até a minha boca. Perigo! Perigo! Perigo! É claro que percebi que algo estava rolando desde o almoço, eu não sou burra. Quem convida uma desconhecida pra tomar sorvete sem motivo algum? Meu coração está acelerado, e eu não sei onde estou com a cabeça quando abro a boca pra fazer a seguinte pergunta:

— Tá querendo uma desculpa pra me beijar, é?

— Talvez eu queira — Júlia confessa, levando uma das mãos até a lateral do meu rosto. Sinto um arrepio atrás da minha nuca quando ela aproxima o rosto do meu, devagar. — Mas vou deixar pra fazer isso na festa.

Ela se afasta, provocativa, tirando a palma da minha bochecha. Eu estava segurando minha respiração sem perceber, e Júlia dá uma risadinha quando nota isso. Estou tão tensa e confusa que não tenho reação alguma quando a garota me dá um beijo rápido na bochecha.

A vejo se levantar, sem jeito de acompanhá-la. Digo que vou continuar aqui por mais um tempo, e ela se despede com mais um sorriso simpático.

Não sei o que acabou de acontecer, mas não consigo parar de sorrir. Enquanto assisto o garotinho dar mais um pulo na piscina, ensopando toda a minha roupa no processo, eu só consigo pensar em como Júlia estava certa.

Alto-Mar parece um bom lugar pra recomeços.

FICAMOS EM SEGUNDO lugar no Campeonato Estadual de Matemática. A equipe de Alto-Mar era muito boa e, mesmo a competição tendo sido bastante acirrada, eles acabaram levando o troféu. Mas, mesmo a gente não tendo ganhado, Rogério nunca esteve tão feliz. Acho que é a primeira vez em tempos que o Matemagos leva algum prêmio para a Escola de Boafortuna — mesmo esse sendo um bem pequeno —, e os professores ficaram tão empolgados que acabaram nos contagiando também. Tiramos várias fotos com o nosso troféu minúsculo e nossas medalhas de prata e ainda pedimos uma pizza na hora do jantar em comemoração, sorrindo feito bobos, como se tivéssemos mesmo ganhado em primeiro lugar.

Dissemos boa noite aos professores na maior cara de pau antes das nove da noite, mesmo sabendo que dormir cedo não estava nos nossos planos. Estamos animados demais pra dar o dia por encerrado, e continuamos sorrindo enquanto nos preparamos para a festa secreta.

— Tem certeza de que não quer ir, Bárbara? — pergunto de novo, Antônia e eu dividindo o espelho do nosso quarto de hotel.

Fiquei hospedada com as meninas da equipe, o que até que está sendo divertido. Passamos a última noite jogando partidas de Uno e assistindo programas de auditório na TV. Nós três concordamos que a melhor forma de nos preparar para o dia seguinte era descansando e tirando nossos pensamentos do campeonato.

Tá, talvez a gente tenha perdido por causa disso. Mas prefiro pensar que não.

— Não curto muito festas, vou ficar aqui lendo um pouco — Bárbara avisa, largada na cama já de pijama. — Mas se divirtam!

— Bem, não sei a Eva — diz Antônia, conferindo mais uma vez o seu vestido —, mas eu vou me acabar. Tô precisando de uma festa dessas faz tempo.

Sorrio, me encarando no espelho uma última vez. Estou usando uma roupa que até pouco tempo atrás eu descreveria como radical. Não que haja algo de errado em qualquer outra pessoa usar isso, mas eu nunca usaria. Insegurança e essas coisas. Mas estamos numa cidade litorânea que faz calor até mesmo durante a noite, sem falar que, claro, tô tentando parecer bonita pra uma garota especial.

Preciso lembrar de agradecer mamãe por ter posto isso na minha mala, mesmo comigo jurando que não ia usar.

A camisa de botão fica bonita quando a uso aberta, uma blusa justa e preta por dentro deixando minha barriga totalmente à mostra. O short jeans até que fica bem em mim, mostrando minhas poucas curvas que quase nunca são notáveis, mesmo que eu precise usar um cinto para me certificar de que ele não vai cair. Confiro meu cabelo uma última vez, fingindo que ele está bagunçado de um jeito proposital, e me certifico de que o batom quase preto não está borrado. Meu Deus, se Mina Leão pudesse me ver agora...

Não, não, não. Não vou pensar em Mina essa noite. Hoje é a minha folga, o meu dia livre de pensamentos conturbados e barulhentos e confusos, e eu não aceito pensar nessa garota até voltar para Boafortuna. Pois bem. O que importa é que estou bonita e tenho uma garota para impressionar.

Antônia e eu encontramos os meninos da equipe nos esperando no corredor, e seguimos até o quarto 308 tentando não fazer muito barulho. Os professores não podem nem sonhar com essa festa, o que torna as coisas ainda mais empolgantes.

Bato na porta, ironicamente um sinal de NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta. É a própria Júlia que atende, nos recebendo com um copo de cerveja na mão e o seu sorriso simpático de sempre.

— Fiquem à vontade — ela pede, fechando a porta assim que entramos. Alguém volta a ligar a música, e de repente o quarto está tomado por uma pop eletrônico genérico. — Só não façam muito barulho, tá? Senão a gente se fode.

Meus amigos se espalham pelo quarto, esse bem maior do que o que estou hospedada. Júlia põe sua mão livre nas minhas costas, me arrastando com ela até uma mesa improvisada com caixas de isopor, onde algumas latinhas de cerveja foram dispostas.

— Parabéns pelo segundo lugar, Eva!

— Valeu! E parabéns pelo... quarto lugar?

Júlia ri, pondo a mão no peito.

— Obrigada, obrigada — ela agradece, apontando em seguida para as latas de cerveja aos nossos pés. — Você bebe, né?

— Um pouquinho — digo, sentindo uma ânsia de vômito quando o cheiro das bebidas alcança os meus sentidos —, mas não curto muito cerveja.

Ela franze as sobrancelhas, aborrecida.

— Droga, é a única coisa que a gente conseguiu comprar de última hora, poxa. Foi mal, se eu soubesse...

— Não esquenta! Não tô a fim de beber essa noite.

É mentira. Eu até que tava com vontade de, sei lá, beber uma vodca com refrigerante ou coisa parecida. Mas prefiro um milhão de vezes ficar sóbria do que beber essas cervejas ruins. Acho que é só mais uma coisa na minha lista que me faz lembrar de...

— Se é assim — Júlia larga o seu copo ao lado da mesa de isopor, sorrindo para mim —, vem dançar comigo?

Droga.

Como eu posso não pensar em Mina Leão se tudo aqui está me lembrando dela?

— Claro — resmungo, e deixo com que a garota me arraste até o centro do quarto.

É apertado. Mesmo sendo maior que o meu, o quarto não chega a ser o mais espaçoso do mundo, e o fato de ter pelo menos uns vinte adolescentes aqui não ajuda muito. As maioria das luzes foi apagada pra dar ao ambiente um clima de boate ou sei lá, e as pessoas arranjaram uma tinta neon em algum lugar para pintar seus rostos, como maquiagens de guerra. Júlia, parada à minha frente enquanto dança, está com linhas rosas, amarelas e azuis pintadas nas bochechas.

— Você tá muito bonita — ela diz, sem precisar gritar. A música não está alta pra não chamar a atenção, o que nos possibilita conversar em um tom de voz normal. — Gostei do seu batom.

Tenho uma cantada perfeita pra usar nesse momento, mas nada sai da minha boca. Acho que estou nervosa, mesmo que eu tente esconder isso enquanto danço.

— Valeu. E eu gostei da sua maquiagem! — respondo por fim, assistindo a garota armar os cabelo ruivos longos em um coque.

Júlia sorri.

— Quer pintar o seu rosto também?

— Hm... — gaguejo, sem conseguir esconder meu nervosismo. Tento relaxar um pouco a postura antes de assentir: — Quero, sim. Por favor.

Júlia me arrasta até outra parte do quarto, onde algumas tintas coloridas foram largadas numa cama. Ela pede licença pra garota que imagino estar pintando o rosto das pessoas, e me manda sentar no colchão, ficando de frente pra ela.

— Que cor você quer, Eva Aquário?

Não sei o que é, mas tem algo na voz dela que faz todo o meu corpo estremecer. A forma como ela diz meu nome, como ele soa bonito quando sai da boca dela... não sei explicar.

Gosto de garotas desde que me entendo por gente, mas elas conseguem fazer meu coração acelerar toda santa vez.

— Rosa e laranja? — respondo, brincando com os potinhos de tinta largados na cama ao meu lado.

— Adorei.

Júlia segura o meu queixo, me fazendo erguer o rosto. Ela busca a tinta laranja e um pincel limpo, pintando a minha bochecha devagar. Tudo o que eu consigo ver daqui é o rosto dela, iluminado pela pouca claridade vinda do banheiro, eu acho. Seus olhos são castanhos, mas agora no escuro parecem pretos, e seus cabelos já estão se soltando do coque, fazendo alguns fios caírem na lateral do seu rosto. Ela é tão bonita. Acho que estou ficando sem ar.

Ela termina com a tinta rosa logo depois, ainda segurando o meu queixo pra conferir a maquiagem. Minha respiração está pesada e eu sei que ela quer isso tanto quanto eu, então não vou deixar que meu nervosismo me pare, me impeça de fazer isso. Não vou me perdoar se deixar a oportunidade passar, então, antes que ela se afaste, eu seguro o seu rosto com cuidado, a trazendo mais para perto.

Ironicamente seu beijo tem gosto de cerveja, e isso por um breve momento me faz querer rir. Mas eu me concentro nos lábios dela, no toque, na sua língua dentro da minha boca. De olhos fechados, deixo que Júlia me guie até a cabeceira da cama e encontre espaço no meu colo. Ela leva seus polegares do meu rosto até os meus ombros, seus dedos dançando pela minha pele e descendo devagar até os meus seios enquanto deslizo minha palmas para dentro da sua blusa.

O beijo é bom e faz minhas pernas tremerem. Quero continuar com isso, quero perguntá-la se não há outro lugar onde possamos ficar sozinhas e ter mais privacidade. Quero dizê-la que a espera por seu beijo valeu a pena, porque ele é perfeito.

Mas tudo o que eu faço é começar a chorar.

— Ai meu Deus, Eva! — Ela se afasta, preocupada e assustada, saindo do meu colo e se sentando ao meu lado na cama. — Tá tudo bem?

Ela não faz ideia do tamanho da confusão dentro de mim, e eu não quero fazer isso, desabar em cima dela na droga de uma festa estranha. Preciso dizer que sinto muito, que ela não tem culpa de nada e que o problema sou eu. Preciso dizer, mas o que sai da minha boca é a única verdade que importa:

— Você não é Saturno.

Solto uma risada nervosa involuntariamente, me desviando dela na cama e me afastando aos tropeços, pedindo um milhão de desculpas. Júlia me encara com as sobrancelhas franzidas, com certeza confusa, mas tudo o que consigo fazer é rir. Caio na gargalhada enquanto atravesso esse quarto, tentando não esbarras nas pessoas dançando em cores neon.

Júlia não é Saturno. E não importa o quão atraída eu me sinta por ela ou por qualquer outra garota, nenhuma nunca será como Mina Leão. Nenhuma me fará sentir o que aquela garota me faz, e eu preciso aceitar isso de uma vez por todas. Só existe um Saturno. E isso é assustador, confuso e eletrizante.

Saio do quarto 308 tropeçando nos meus próprios pés, e sou recebida pelo silêncio mórbido do corredor do hotel. Ainda estou rindo como uma idiota, mas não de um jeito bom, e logo as lágrimas voltam com muita força.

Só existe um Saturno.

E eu sei o que preciso fazer quando voltar para casa.

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