SEXTA-FEIRA É NOITE de cinema na casa dos Vinhedo, o que nem seria um motivo de reclamação para mim caso esse evento não me deixasse um tanto puta da vida. E eu nem estou falando isso pelo fato ridículo dessa casa ter um cinema particular no seu subsolo, com direito a cadeiras reclináveis e telão de sei lá quantas polegadas. Mas é que eu odeio ver filmes com quem não sabe apreciar devidamente a sétima arte. Porque enquanto Elliot e o ET cruzam o céu na cena clássica de um dos melhores filmes já feitos na História, Cassandra e Bruno usam o celular, Lola joga alguma coisa no seu tablet e mamãe já pegou no sono há tempos. Tales é o único além de mim que está prestando atenção — ainda que eu esteja mais focada no meu ódio extremo do que devidamente atenta ao filme.
Também não consigo parar de pensar na pesquisa que ando realizando nos últimos dias, desde que dividi o acento do ônibus com Mina e descobri certas coisas que me deixaram um tanto intrigada. Eu sabia que Tales Vinhedo era rico, mas não fazia ideia de que ele era mais um entre os muitos milionários de Boafortuna. Não sei o que me impediu de pesquisar sobre meu novo padrasto assim que recebi a mensagem da mamãe, três meses atrás enquanto ela ainda viajava no seu cruzeiro, dizendo que estava noiva. Talvez eu tenha ficado tão surpresa que acabei nem pensando em colher todas as informações possíveis sobre o homem que acabava de conquistar o coração da única pessoa no mundo que importa para mim. E acontece que agora eu me sinto péssima. É como se a minha carreira de espiã tivesse chegado ao fim antes mesmo de começar.
Mas há três dias eu venho tentando colher o máximo de informações possíveis sobre o meu padrasto, e fiquei realmente chocada com quanta coisa eu consegui encontrar na internet. Sinto como se Tales fosse uma espécie de celebridade, o que ele meio que deve ser mesmo nessa cidade. Todo mundo conhece a família Vinhedo, pelo que parece.
Algumas informações que achei relevantes:
1) Tales ganhou na loteria há umas duas décadas, pouco tempo depois do seu pai também ter tirado a sorte grande e posto a mão numa tremenda grana, durante os anos noventa. Quando o velho ricaço morreu, que Deus o tenha, o meu padrasto acabou herdando tudo, já que ele teve a grande vitória de nascer filho único;
2) Segundo um site local, o seu patrimônio deve somar pouco mais de cento e trinta milhões de reais;
3) Ele é o presidente da sua própria empresa de computadores, o que deve deixá-lo ainda mais rico a cada segundo que passa.
Se todos da cidade forem minimamente parecidos com Tales Vinhedo, eu não posso culpar Mina por odiar tanto o povo de Boafortuna. Ainda que eu seja neutra quanto ao meu padrasto e não sinta por ele a mesma repulsa que sinto pelos seus filhos, tudo em sua lista de informações relevantes parece implorar para que eu não o suporte.
Antes que eu perceba, o ET volta para casa e os créditos sobem, e eu me levanto e vazo dessa sala de cinema o mais rápido que posso. Subo os dois lances de escada até o primeiro andar, me trancando no meu quarto e desejando com tudo que há em mim que ninguém me perturbe pelo restante da noite.
Enterro o meu rosto no travesseiro com preguiça de até mesmo buscar meus fones na mesa de cabeceira, todas as luzes apagadas. Estou quase pegando no sono de tanto tédio quando o meu celular vibra ao meu lado na cama.
Eu não sou muito de usar redes sociais. Uso o Instagram no único intuito de seguir os poucos famosos que suporto, incluindo com prazer as escritoras das minhas fanfics nessa lista. Mas eu sou como um fantasma nessa rede social, tenho zero posts publicados e a minha descrição é "sem uso". Minha foto de perfil é um fundo preto. Sou o desinteresse em pessoa para o meu total de cento e vinte e quatro seguidores (a maioria colegas de turma ou conhecidos da minha antiga escola que provavelmente nem lembram mais que eu existo).
Por isso, eu fico surpresa quando vejo a notificação de uma nova solicitação de seguidor. E é claro que depois do fracasso em espionar o Tales na época certa, eu não vou mais deixar que nada passe sem antes fazer uma investigação precisa.
Mina Leão tem perfil aberto, oitocentos e noventa e sete seguidores e noventa e sete fotos postadas. Sem muito esforço, descubro que ela tem um gato chamado Cornélio, que trabalha em uma livraria do centro durante a tarde e que às vezes faz uns bicos na casa noturna dos pais. Ela está na equipe de dança há dois anos e tem um grupo grande de amigos, com quem interage constantemente nos comentários. E hm, não há nenhuma foto dela com o Lucas, o que significa que Mina é como qualquer adolescente do mundo que apaga todas as postagens com o ex quando termina o namoro. Não que eu me importe.
Aceito a solicitação e a sigo de volta, e uma notificação de mensagem pisca na minha tela poucos minutos depois.
eu não acredito que o seu nome é eva aquário! sabe o que isso significa?
que eu deveria ser uma boa nadadora?, digito, me perguntando se não era melhor começar o papo com um oi ou boa noite.
hahaha, não é isso!, ela responde. significa que nascemos uma para a outra porque ambas temos sobrenomes de signo.
Solto uma risadinha. Nunca fui lá muito boa em entender astrologia, e sempre achei o meu sobrenome uma piada de mau gosto. Em nem mesmo sou do signo de aquário, pra início de conversa.
o pior é que sou sagitariana, brinco, esperando muito que ela não entre nesse papo de horóscopo que não faz sentido para mim. me diga que ao menos VOCÊ é leonina.
EU sou de AQUÁRIO!
ok, escrevo, voltando a rir. agora até eu acredito que somos feitas uma para a outra.
Abro novamente o seu perfil, conferindo a última publicação, feita há dois dias. Ela e duas amigas que reconheço como nossas colegas de turma dividem uma pizza, a legenda da foto indicando que era noite das garotas. Sim, uma coisa hétero demais para o meu gosto, nível filme hollywoodiano adolescente. Bleh.
como conseguiu encontrar o meu perfil?, pergunto.
entrei no sistema da escola, descobri o seu sobrenome e aí não foi difícil te encontrar. digamos que não existam muitas garotas com o sobrenome aquário por aí, Mina responde, e leio a mensagem pela barra de notificação. por favor, não ache que sou uma perseguidora louca!
Talvez eu tenha subestimado essa garota. Diferente do que ela pensa, eu não tô nem um pouco assustada, mas curiosa. Estou realmente surpresa com a sua aptidão para a espionagem. Quem sabe ela não daria uma boa espiã, assim como eu?
Fecho a página do post mais recente e volto para a tela do perfil, lendo a sua descrição. "É quando a toco que percebo que poesia também existe em carne e osso. – Quebranto."
Hm.
tá tudo bem hahaha, abro a caixa de mensagens e a respondo. imagino que tenha se dado todo esse trabalho porque queira combinar um dia pra gente estudar, não é?
pois é! mas como eu disse, só se não for incômodo...
que nada, digito. que dia fica bom pra você?
Abro o navegador e busco a palavra quebranto, minha tentativa de compreender melhor a sua descrição, mas os resultados não são lá muito promissores.
Quebranto. Substantivo masculino. Abatimento, fraqueza. Segundo crendices populares, efeito maléfico que atitudes de algumas pessoas produzem em outras.
meus ensaios acontecem nas terças e quintas, e o único dia que folgo no trabalho é na segunda-feira. o que acha?, Mina sugere. é claro, a gente marcaria em um horário que não prejudicasse suas reuniões do clube também!
perfeito!, respondo, tentando soar tão animada quanto ela. segunda-feira, 15 horas, aqui em casa. pode ser?
Antes que ela responda, minimizo o aplicativo e volto ao navegador, dessa vez pesquisando a frase creditada ao tal Quebranto. Apenas cinco links aparecem na minha tela, entre eles um site da Banda Quebranto, um blog de Boafortuna falando sobre a lista de shows na cidade e um vídeo do YouTube.
tá ótimo, eva! muito obrigada mesmo, Mina responde, sua mensagem piscando na minha barra de notificação. só mesmo minha alma gêmea pra me fazer pisar no condomínio nova escócia :)
Envio o meu endereço, encerrando a mensagem com: espero que esteja preparada pra ver um monte de bobos idiotas...
uuuuugh!, ela digita, me fazendo soltar outra risada. será que tirar uma boa nota em matemática vale todo esse sacrifício?!
espero que sim, respondo. porque eu tô realmente a fim de uma noite com cervejas grátis, mina leão!
hahaha :D
Retorno ao navegador, clicando no link do YouTube e sendo levada a um videoclipe amador com certeza gravado em um celular com câmera meia-boca. A música, intitulada "Esboço", começa a tocar e eu enfim tomo coragem para buscar os meus fones de ouvido.
Não é ruim. Mesmo a filmagem estando um pouco zoada e o áudio não ter uma qualidade descente, a música é na verdade bem boa. Os três caras da banda devem ser amigos da Mina, ou algo parecido, e até que é interessante todo esse charme de artistas locais que eles devem carregar.
É quando a toco que percebo que poesia também existe em carne e osso.
Ela é arte e é artista, e eu sou só esboço.
segunda, às três da tarde, na sua casa, Mina confirma, e eu volto a abrir a nossa conversa. prometo ser pontual se nenhum falso escocês quiser me expulsar do seu condomínio assim que eu puser os pés aí.
hahaha! boa sorte com os bobos idiotas ;)
Mina encerra nossa conversa me enviando um emoji de coração. Fecho nossa caixa de mensagens e procuro a Banda Quebranto no Instagram, seguindo o perfil com dois mil, quatrocentos e dezenove seguidores, entre eles Bruno Vinhedo, Cassandra V. e Mina Leão.
Passo o restante da noite conferindo suas fotos, lendo suas agendas de shows na cidade e escutando o seu total de nove músicas, e porra. Elas são boas o suficiente para me fazer ignorar as filmagens péssimas e seus áudios de baixa qualidade.