Era impossível pensar em uma reação, principalmente quando um se está preste a levar um chute no estômago, depois de uma surra no pátio da escola no segundo ano do ensino médio. Oliver ainda tentou levantar, mas foi em vão. Antes que pudesse se equilibrar com uma das pernas para dar impulso e ficar de pé sentiu um chute no peito que o deixou sem ar. Não doeu tanto quanto seu orgulho ferido de apanhar na frente da escola toda, mesmo assim doeu.
A briga começou por um motivo estúpido, assim como a maioria das brigas começam. Júlio havia esbarrado nele propositalmente procurado confusão, e diferente das outras vítimas do delinquente Oliver reagiu.
Um dos inspetores da escola parou a confusão e levou o jovem direto para a coordenadoria. Agora na frente da diretora da escola enquanto uma das coordenadoras fazia os primeiros socorros em seu supercílio ele só conseguia pensar no depois, aquilo com toda certeza não teria um fim tão simples, Júlio faria questão de continuar a luta que fora interrompida e dessa vez não teria ninguém para separar.
Apesar do misto de dor e vergonha, o cheiro de café da sala dos professores logo ao lado era um dos poucos confortos ele encontrava no ambiente. As paredes brancas levemente mofadas e o cheiro de papel e arquivos antigos eram quase sufocantes.
— Por que você brigou, Oliver? — perguntou a diretora sem dirigir o olhar diretamente para ele.
Sentada do outro lado da mesa, Dona Edna parecia tentar encontrar um arquivo muito importante no computador. Oliver suspeitava que eram suas notas ou o contato de sua avó. Apesar da pergunta direta, ele preferiu não responder. A dor e a raiva não deixava que as palavras saíssem sem um misto de choro. Se os dois tinham brigado, por que só ele estava ali se submetendo aquele interrogatório?
— Já chamamos sua responsável — disse a diretora em um tom formal.
— Vocês chamaram minha avó? — perguntou Oliver ainda sem acreditar.
Dona Rute já tinha problemas suficientes tentando garantir que sua patroa pagasse em dia seu salário, sem contar os problemas de saúde que começaram a aparecer junto com a idade quase avançada. Agora ela teria que se preocupar com o "neto brigão".
— É claro que sim. Como você explicaria esses machucados? É melhor ela ouvir a informação completa da secretaria da escola, do que apenas uma parte.
O adolescente esticou o corpo na cadeira com certa dificuldade, tentando parecer relaxado. A indireta dela o deixou furioso, mas ele preferiu não se expressar.
— E ela? O que disse? —perguntou Oliver a diretora.
Por alguns minutos a mulher analisou a pergunta capciosa do aluno. Oliver não era um aluno problema, mas seus quase vinte anos de trabalho educacional haviam deixado sua marca em perceber perguntas sutis.
— Sua avó disse que está vindo. Nós sabemos dos problemas dela de locomoção, para garantir que vocês possam chegar bem em casa um professor vai levar vocês.
Oliver olhou para a diretora tentando achar a resposta que ele suspeitava que ela escondia.
— O Júlio prometeu que vai terminar o que começou — disse ela rendendo-se ao olhar do adolescente — já falamos com os responsáveis dele, mas sei que não vai ser suficiente.
— Como assim? — Oliver perguntou já conhecendo a resposta.
Ele percebeu que ela fingia não saber o teor de sua pergunta. A vários dias havia boatos na escola dizendo que Júlio estava andando com membros de uma facção perigosa, facção essa que seu pai possivelmente estava envolvido. De professores à alunos, todos sabiam que os boatos possivelmente eram reais e ninguém queria se envolver em um problema tão grave.
A diretora levantou dizendo que precisava imprimir um documento importante. A verdade é que ela mesma não queria ser envolvida com esse tipo de problema.
Depois de quase uma hora de espera a avó de Oliver chegou, ele ainda tentou limpar um pouco do sangue da camisa para não assustá-la. Mas era tarde, a velha senhora olhou para o vermelho na roupa do neto como se ali tivesse uma grande ferida aberta.
— Como isso aconteceu?! — Ela gritou.
Uma funcionária da escola que acompanhava Dona Rute, avó de Oliver, repetiu a história, além de tentar extrair mais uma vez os motivos que haviam dado início a briga, como se isso de fato importasse.
O sinal escolar tocou anunciando o final do período de estudos dos alunos. De relance ele percebeu que alguns colegas começaram a visitar a secretaria por motivos fúteis, como saber a respeito da saúde de professores idosos ou pedir o telefone da escola. Alguns curiosos sem coragem para entrar faziam questão de olhar dentro da sala enquanto caminhavam pelo corredor, onde sua avó discutia com a diretora e uma coordenadora pedagógica.
Enquanto as mulheres ao seu redor conversavam intensamente, Oliver tentava realizar uma atividade mecânica, alguma coisa que pudesse aliviar a tensão da situação que o arrastara. Procurava um ponto de segurança na sala, encontrou quando focou em uma pequena preta tv ligada que não emitia som algum, bem acima de um armário prateado antigo localizado no interior da sala. Focado na imagem sua mente viajou, enquanto analisava sua situação em busca de uma solução.
Imaginou como seria viver uma outra vida. Uma vida em que eu não crescesse sem mãe ou pai, criado pela avó. Não que não fosse grato, mas como qualquer criança ele havia sonhado em ter uma vida "normal". Uma vida em que tivesse irmãos, ou parentes próximos que de fato se preocupassem com ele.
Algo que para alguns era uma vida comum, para Oliver parecia um sonho distante, como uma realidade apenas dada a alguns poucos abençoados.
Na TV a legenda da reportagem dizia "nobres e empresários almoçam com governador do estado", no subtítulo dizia que a duquesa de um país asiático estava muito interessada em garantir parcerias dentre seu país e o estado brasileiro.
As cenas da reportagem se resumiam a momentos e imagens de um grande banquete no hotel mais luxuoso da capital do estado onde no centro da mesa a duquesa e o governador conversavam animadamente.
Alguém desligou a tv e a avó de Oliver o chamou para que fossem para casa simultaneamente. O rosto de sua avó refletiam cansaço e desapontamento com o neto e com a própria escola.
Ao passar pelo portão do prédio, o jovem percebeu os inúmeros olhares de alunos voltados para ele. Entraram no carro no carro do professor de Educação Física que já estava no volante esperando a chegada deles. Quando a porta do carro bateu, o professor ligou o GPS e partiu.
No carro, ao lado da avó, Oliver olhava pela janela aproveitando cada curva, tentando acreditar que o destino final nunca chegaria. Sua casa ficava a algumas quadras da escola, distante o suficiente para cansar uma senhora de idade.
Ao chegarem a menos de dez metros do portão da sua casa o professor que os havia trazido parou o carro.
Avó e neto saíram do carro e agradeceram ao professor que acenou de volta um pouco cansado. Sua avó entrou na frente, coube Oliver fechar o portão enferrujado.
Enquanto caminhava pelo quintal o forte cheiro de umidade invadiu o nariz de Oliver, o garoto aproveitou para colocar um conjunto de telhas quebradas da última chuvarada ainda estava espalhada perto da varanda apoiadas próximo ao muro.
Antes que pudesse abrir a porta de casa sua avó o deteve.
— Oliver, senta por favor!
Ela apontou para um pequeno banco de madeira que tinham recebido como doação do pastor da igreja que frequentavam.
— Vó... Eu quero... eu preciso entrar, tomar um banho e dormir um pouco. Depois conversamos.
Dona Rute olhou para ele com a aparência serena, e isso era ainda mais angustiante.
— Oliver sente-se! Vamos conversar um pouco!
— Eu não quero conversar vó! — Oliver gritou.
Dona Rute olhou séria para o neto. Ele envergonhado desviou os olhos.
— desculpe vó.
Ela respirou fundo antes de continuar.
— Então não vamos conversar. Já está anoitecendo e aqui fora está muito mais fresco que dentro de casa.
Oliver olhou para ela desconfiado, entretanto obedeceu a ordem e sentou ao seu lado. Após quase dez minutos de silêncio começou a desabafar
— Desculpe fazer a senhora sair do trabalho para resolver problemas na minha escola. Sei que isso não é correto e que sua saúde não é mais a mesma.
— Isso não é o problema que me preocupa meu fio! — ela respondeu de olhos fechados, como se saboreasse a brisa e o descanso do momento.
— Olha eu só briguei...
— É isso que me preocupa.... Pode falar fio...
— Eu só briguei porque tive raiva de uma coisa que ele falou...
— E o que ele falou?
— Disse que eu era um fracassado. E conhecia minha família e sabia que passávamos fome.
— E nós passamos fome Oliver? Eu deixo essa casa e me sacrifico sempre para garantir que você possa ter comida todos os dias na mesa.
Oliver acenou a cabeça confirmando suas palavras.
— Você apenas será um fracassado se desejar assim. Só porque não conhece seu pai e sua mãe faleceu no parto, isso não significa que você é inferior a ninguém.
— Sei que tá errado Vó. Mas pessoas igual o Júlio, que nasceram com a sorte de ter pais podem ter alguém para se proteger. Olha o que aconteceu hoje, eu levei uma surra de um cara e ninguém estava lá para me defender e no fim só quem foi chamada na escola foi a senhora. O Júlio tem um pai que é bandido e isso consegue limpar metade das merd... das besteiras que faz!
— Mas o Júlio não tem carácter, e o pai dele está moldando isso nele. Criando um monstro que vai devorar ele mesmo — sua avó respondeu serenamente.
— Mas agora esse monstro vai me devorar.
— Não vai não, vou pedir para o pastor falar com o delegado da cidade.
— Acho que não temos escolha — respondi relutante — espero que isso não piore a situação.
O garoto levantou do banco de madeira e entrou na casa. Sua avó veio logo depois para colocar a janta do neto, arroz, feijão com um pouco de salsichas.
Por vários dias aquela tinha sido a janta da pequena família, a patroa de sua avó havia atrasado o pagamento do salário dela outra vez. Com exceção da comida que às vezes ela trazia da casa de Dona Sônia, sua patroa, geralmente aquele era janta dos dois.
Após o jantar Oliver tomou um banho e foi dormir. A dor das feridas durante o banho não foi nada comparado a deitar para descansar depois de uma surra. Sua cabeça ainda pensava como seria o dia seguinte, mas o sono logo veio para que pudesse talvez esquecer o dia anterior.
Durante a madrugada, por algum motivo Oliver teve a impressão ainda que por alguns momentos de ter ouvido sua avó chorar. Não era uma certeza absoluta, apenas uma pequena fagulha, como de um sonho que se tem, mas não resta lembrança alguma.
Naquela noite, após as orações que sempre fazia ela entrou no quarto e pareceu pedir alguma coisa ao céu. Que o futuro do neto fosse mais próspero que o dela, e que se possível o pai do jovem que estava distante e era totalmente desconhecido, pudesse um dia regressar para conhecer o filho.