A Colina Vermelha

By clairo92

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❝ Ambos sabíamos os rumos que deveríamos tomar antes de tudo começar, a dor em mim, não me afetou tanto como... More

PRÓLOGO
1. DECLÍNIO
2. UTOPIA
3. TROCA DE OLHARES
4. ROMEU
5. CONFLITOS
6. CONTRASTE
7. DECODIFICAR

8. DESPERTAR

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By clairo92

A parte mais estranha de ter um intruso em minha cozinha era de que eu fiquei extremamente aliviada quando o vi. Era um simplório felino, virou o rosto ao me ouvir se aproximar pelo barulho do sapato no piso. Ele ficou me encarando, encima da bancada da pequena cozinha retangular e com uma das patas sobre uma embalagem que eu esqueci de jogar fora.
- Ah, oi. - Eu disse, aliviada e sem a menor noção como se eu estivesse em um livro de Lewis Carroll e o gato começasse a falar. - Você me matou de susto.

Me aproximei do gato, mas ele recuou cauteloso pelas patas traseiras e ameaçou a pular no chão, saltou até o piso com elegância e me encarou piscando os olhos amarelos, a pelugem em uma cor de preto obsidiana destacava dando cor a minha pacata cozinha.
Ele se aproximou e aninhou em minhas pernas ronronando ao passar o rabo pelos meus jeans. Fiquei paralisada, e então não soube o que fazer até que agradeci e caminhei pelo outro canto da cozinha coçando a cabeça e me perguntando o que dar para um gatuno ladrão. Eu teria que comprar ração de gato, mas eu não ia ter esse gato, talvez ele fosse de alguém do prédio, ou talvez eu tenha deixado a janela aberta de novo - isso tiraria um pouco da parcela de culpa de Ron, o garotinho que jogou uma bola janela adentro.

Tá legal.
Eu não ficaria com o gato, mas não poderia fazer um sanduíche para um gato comer, então se eu estava decidida a deixar ele passar o resto do dia comigo eu deveria ao menos alimentar ele de forma decente.
Mas parte de mim sabia que eu só estava me adaptando a adotar o animal porque ficar sozinha em meu apartamento era sufocante, horrível, e desumano. Sempre achei que morar sozinha fosse resolver a questão de privacidade e querer meu espaço, mas saber que eu tenho total espaço e privacidade me dava também a reação de que o tinha ninguém comigo em uma noite ruim, e nem comigo quando eu conseguisse algo bom ( pelo menos o gato iria ronronar ). Essa comunicação eu tinha que admitir ser melhor do que a comunicação desnecessária dos humanos.
Então decidi fechar a janela, mais uma vez aberta e olhei para trás e vi que o gato me seguia.
- Tá bom, passe a noite. - Eu disse mas a mim mesmo do que para ele: - Não faz mal nenhum, né?

Depois disso tirei minha velha bolsa de alça preta, pondo ela nos ombros e caminhei para a porta do apartamento. Abri a mesma e olhei melancólica para a sala, o animal se aninhou em um monte de caixas e deitava com as patas abaixo do torso e a cabeça ainda alerta, piscando olhos amarelos para mim.
Quando voltei estava com um pacote de ração pequena para ele e um pacote de salgados para mim, estou fora do programa então que se dane calorias, venham a cavalo colesterol.
Fui até a cozinha e ajeitei uma vasilha que eu comia cereais - eu poderia abrir mão dela - e despejei ali o alimento para o gato, ele sentiu o odor e seguiu miando, como um murmúrio estridente e abafado. Enfiou a cara na vasilha enquanto comia, dei privacidade e abri a geladeira tirando uma lata de Coca, peguei o pacote na bancada e fui até meu quarto; já estava a noite quando percebi que passei a tarde toda mexendo em meu computador, eu estava pesquisando sobre tudo, pesquisei sobre Madame Ward, sobre a Academia.
Pela minha recente pesquisa, pelo que entendi a academia Hemingway foi fundada em 1908 por Alfred Hemingway e Jill Burwell, ao descer pelo blogue consegui entender que Alfred era um homem rico na cidade, e seguia pela foto em tempos antigos de onde seria a Academia a cem anos atrás - um prédio menor e mais simples do que hoje ostentava -, e Jill era uma professora de dança clássica. Eles estavam supostamente juntos na época, mas Alfred que mostrou ao ser fotografado um homem mais velho, tinha família que moravam em Londres, havia uma lista de nomes das primeiras bailarinas, a página era cheia de opiniões do autor o que intrigava-me a continuar a mordiscar às doses cavalares de sátiras. Alfred era o diretor da Academia e ela só virou formalmente uma Academia de Dança Clássica em 1909. Em 1914 quando o terror da guerra assolava o palco europeu a Academia suspendeu até o período de 1919, quando os restos da bela época e o sangue da guerra pairava cá em Fawkes, a professora Burwell se casou no período da pausa da Academia mas logo depois seu marido foi enviado a Paris em segunda demanda, viúva, em 1919 contou novamente com o apoio contínuo de Hemingway; dez anos depois, ela continuou fazendo atrações que marcaram a história artística da cidade, e importante para que a alta classe ficasse saciada com o ballet e o teatro que começaram a frequentar o local, e ao redor da Academia se fez vários prédios ( que perduraram até hoje como pubs e livrarias ) em 1923 Hemingway morre. Pelo que me pareceu, foi um grande lamento por toda a cidade mais tarde em meados do final de 1920 a Academia entrou em colapso ficando a beira de fechar mais uma vez - mesmo com o apoio da classe burguesa - com o desfalque na diretora, Burwell e a academia foram salvas por uma nova família vinda de Norfolk, Tate Hendeston.

Hendeston.
Puta merda. Eu diria parada cardíaca, mas dessa vez seria um aneurisma.
O que seria Tate Hendeston de Charles? Avó? Bisavô?
Isso explicaria talvez a influência... Não, não. Eu não deveria pensar sobre isso agora, só iria ter paranóias desnecessárias e eu nem estava mais na academia, então do que se importava?
Toc-toc.
A onomatopeia acima descreve o barulho que me tirou de devaneios ao bater na porta, fechei o computador e quando puxei minhas pernas para deslizar para cama, vi que o gato estava deitado no conjunto de almofadas empoeiradas perto da porta do meu quarto; arrumar no momento não era uma preocupação.
Olhei o despertador eletrônico que ficava tristonho em minha cômoda reluzindo a cor vermelha das horas: 7h, 34min PM.

Caminhei tropeçando em meus pés que se acostumaram a ficar encolhidos e dobrados a tarde toda. O gato continuou em seu descanso e fui até a sala vazia, habitada somente pelas caixas em um canto; e acendi o interruptor ao lado do batente da cozinha e quando escancarei a porta enxerguei um rosto conhecido, sardento e os cabelos beijados pelas brasas.
- Você não foi hoje. - Disse Debbie, ela parecia desapontada.
- Não. - Eu só consegui dizer isso, eu estava surpresa por ela ter aparecido, por ter se importado comigo.
- Eu só vim ver se você está bem, posso entrar?

Assenti, abri a porta por inteiro e ela entrou pela casa, caminhando até a cozinha, fechei a porta e a segui. Depois de sentadas na mesinha da cozinha ela pôs ambas as mãos emcima da mesa.
- Porque veio? - Perguntei.
- Você deveria ter ido, não foi por algum motivo? - Ela ignorou minha pergunta. - Foi o encontro?

Não teve encontro! Eu quis gritar, mas não podia; mas porquê não? Eu nem sequer estava mais nesta droga de programa então poderia falar o que quiser. Mas parte de mim, ainda manteve a calma e a verdade presa em mim.
- Não. Eu só não quero voltar, não acho que sou boa o bastante...
- Não seja boba. - Ela torceu os lábios ao disser. - Acha isso por causa de?
- Nada.
- Há alguma coisa. - Ela afirmou, lendo minhas expressões, neste momento já senti o gato ronronando carente e passando o rabo por entre minhas pernas descobertas com um short de pijama listrado.
- Porque veio?
- Charles.
- Charles? - Perguntei, incrédula.
- Ele perguntou sobre você, e disse que você não o deixou se despedir direito. - Ela arregalou os olhos, me pegou de calça curta.
- Não é isso que você está pensando.

Ela abriu um sorriso como se estivesse gloriosa por ter me pegado mentindo. Mas eu não menti... Só mudei um pouco a história, deixando ela mais similar a Chernobyl.
- Você teve um encontro com ele?
- Não.
Ela ergueu uma sobrancelha.
- Ele apareceu, no restaurante. - Comecei inventando. Ela ainda estava descrente e com um sorriso jocoso no rosto.
- Você vai amanhã?
- Eu não vou voltar, não acho que eu...
Ela me interrompeu.

- Foi a Ward? Eu disse que ela é um demônio. Hitler parece um urso de pelúcia a ela.
- Hipérbole. - Eu disse, e ela revirou os olhos; eu coçei o braço sem jeito.
- Não se deixe levar por ela, quando eu entrei ela me jogou aos leões... Não quero falar sobre isso agora. - Ela disse, decidida como sempre.

E eu soube que havia algo também de errado com ela, mas não iria forçar a barra.
- Quer entrar? - Perguntei segurando um dos lados do batente.
Ela assentiu, suspirou e atravessou minha salinha e então caminhou até a cozinha, aonde se jogou em uma das cadeiras.
- Então, o que fez o dia todo?
- Eu tenho um gato, agora. Na verdade não é bem "meu".
- Ah, bacana. - Ela disse sem interesse observando o bichano preguiçoso se acomodar de novo em meu quarto e sumir pela porta.
- E umas pesquisas.
- Pesquisas?
- Sim.
- Sobre? - Ela ergueu o olhar.
Deu uma pausa e desviei o olhar, passei uma mecha por trás da orelha.
- a Academia de Dança Clássica Hemingway.
- Então você descobriu. - Não tinha sido uma pergunta, ela afirmara isso.
- Descobri?
- Sim, sobre o projeto. Sinceramente eu não concordo e acho que parte minha só ignorou isso neste tempo em que trabalhei na Academia, acho que você deve deixar isso de lado.

Espera. Para tudo, rebobina.
Que projeto? Como assim?
- Projeto? - Perguntei abobada.
- Oh, você não sabe? - Ela pareceu contrariada, e então abanou ambas as mãos para afastar o assunto. - Não é nada, vamos mudar de assunto. Prefiro quando você me contava do seu jantar.
- Não foi um jantar. - Afirmei, estupefata.
Senti meu rosto ficar vermelho e se agravar de suor e pousei as mãos no balcão desviando meu peso por alí.
Olhei para Debby e ela só me encarava de volta, abismada. Ela tirou um maço da bolsa e ajeitava um filtro de cigarro entre os dedos magros quando eu disse:
- Não foi a droga de um jantar, fui convidada para ir a um evento na Academia, satisfeita? - Ela desceu o filtro apagado da boca e deixou na mesa junto com o maço, estava surpresa.

- Você foi convidada? Mas quem te convidaria? - Ela havia se levantado da cadeira e me encarava com olhos firmes em mim, mas algo neles me mostrava que ela estava com um daqueles olhares críticos e de inveja.
- O diretor, o senhor Culbert.

Ela novamente ergueu as mãos pro ar, teatralmente e soltou uma risada desesperada.
- Já entendi tudo, você é o novo passarinho dele e isso explica o porquê de ter passado no exame.
- O que isso quer dizer? - Retruquei.
- Você me entendeu.
Fiquei mais vermelha e sentia minha raiva e ansiedade querendo eclodir em mim.
- Está dizendo que eu não sou boa o bastante?
- Estou dizendo que você não passa disso.
- Disso o que? - Disse esganiçada.
- De uma bonequinha de luxo para este patriarcado aqui. - Ela agora estava com uma expressão enojada e me encarando de cima. - Acho melhor você não voltar para a academia mesmo, você estaria se poupando. Lá não é seu lugar.
- Você disse a dez minutos atrás de que eu tinha que voltar!
Ela erguia a sobrancelha e balançou a cabeça negativamente.
- Cometi um erro. - Ela caminhava para fora da cozinha e agarrava a bolsa emcima do balcão, fiquei ali. Perplexa.

Não tinha nada que eu pudesse fazer a não ser ficar remoendo toda a nossa conversa, ouço o barulho da tranca da porta do apartamento e momentos depois a velha porta de madeira bate rangendo. " De uma bonequinha de luxo para este patriarcado aqui ". Ela havia dito, e aquelas palavras cortaram mais fundo do que uma faca, ela havia sido uma vítima? Ela teria sido eu, a alguns anos atrás? Vítima.

Vejo o maço esquecido por Debby, puxo ele, ao me inclinar em pé para pegar. Puxo um filtro de dentro da caixa, e caminho até o fogão esverdeado e velho ligando uma das bocas, às chamas demoraram a aparecer por causa do tempo de uso, e pus a ponta do cigarro no fogão, ele queima.
Talvez eu deva me tornar uma profissional, minha rotina não será mais a mesma; tudo seria pela dança.

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