Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 79 - Fartura e fortuna

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By erikasbat

Paralela à ferrovia que ligava Natal e Nova Cruz corria uma estrada crestada. O sol, que já resplandecia cedo com radiosa intensidade, ressecava ainda mais a rodovia, ocultando em uma nuvem de poeira o caminhão que me transportava de volta para a capital potiguar.

Não, não houvera ordem para recuar. Pelo contrário. Com mais um punhado de camaradas armados e cansados na carroceria, eu ia me reportar à Junta Governativa na qualidade de portadora de boas notícias — e algo mais.

— Ei! — chamei um indivíduo que perambulava na entrada da cidade com um fuzil, perguntando-lhe o paradeiro da Junta.

— Até onde eu sei, estão tudo lá na Vila descascando uns abacaxis — ele informou, e gritei para o motorista tocar direto para a Vila Cincinato.

Pelo caminho, fui matutando em que abacaxis os camaradas poderiam já ter para descascar. As ruas pareciam calmas, nossas tropas ainda perambulavam por ali, porém em postura relaxada. O bonde voltara a funcionar e até havia mais civis nas ruas. Verdade que vi filas na frente de alguns estabelecimentos e, nessas concentrações, reinava certa agitação. Mas tudo se ajeitaria logo, se o barco da Revolução continuasse a ser soprado pelos bons ventos que vinham nos carregando até o momento.

— ...é diferente, porque são os nossos que operam. Pequeno-burguês é... Camarada Anita, já? — Praxedes demonstrou seu espanto, virando-se ao ouvir os tacões de nossas botas reboando no mármore. João Galvão, seu interlocutor, também voltou a atenção para o recém-chegado destacamento.

— Pois é. O Camarada Quintino está por aqui? — perguntei, olhando brevemente em volta no saguão da sede do governo.

— Saiu faz uma meia hora, foi fazer um inventário do que tem no quartel. O que foi, deu ruim, encontraram resistência? Precisam de reforços, já?

— Pelo contrário, camarada — anunciei, orgulhosa. — Viemos trazendo as contribuições do interior para o esforço revolucionário.

E, sem esperar convite, narrei-lhes as aventuras da madrugada.

Mal o astro noturno pendera um pouco para o oeste, e a Coluna Sul, de cujo comando eu participava, partia semiadormecida pela saída austral da cidade. Bastaram, porém, algumas sacudidelas para despertar os cérebros e firmar os ânimos. O moral da tropa estava alto e tratamos de reforçá-lo com cantorias, evocando a importância de nossa missão desbravadora para abafar por completo os resquícios de receio. É aquela coisa: o período antes de uma tarefa desafiadora é sempre pior que a própria tarefa. Medo e dúvida andam em trio com a espera. Depois que a provação começa, temer é inútil. Pomos mãos a obra e seja o que Deus quiser.

A obra em que nossas mãos primeiro pousaram foi a cidade de São José do Mibipu.

Ainda eram duas da manhã, e seis dos cinco policiais de plantão na delegacia estavam dormindo a sono solto nas cadeiras, roncando a ponto de um dos meus colegas de caminhão achar que eram as metralhadoras da resistência.

Mas não houve resistência nenhuma. O único policial acordado ficou tão surpreso com a nossa chegada que nem chegou a sacar a arma. Só foi esboçar um gesto atrapalhado em direção ao cinto quando já estava desarmado e dentro do caminhão de prisioneiros. A essa altura, tínhamos invadido a cadeia e a Prefeitura, esvaziando os prédios dos respectivos bandidos. Nomeamos um novo prefeito, que redigiu rapidamente duas requisições para sacarmos o dinheiro público da cidade. Enquanto alguns executavam as requisições, parti com outros colegas para o cartório, e fizemos uma prazerosa fogueira com os processos que nossos contatos locais indicaram tratar-se de perseguição política, os títulos frios dos grileiros e outros notórios processos infundados de gigantes contra as almas simples do povo.

Pouco depois das quatro, o céu ainda nem começara a acinzentar, nós partimos para Arês, deixando parte do nosso efetivo ali para cuidar dos últimos detalhes. Chegamos no povoado — porque chamar de cidade seria exagero — com o cantar dos galos. Tínhamos um aresense em nossas fileiras, um tal Moacir, e por praticidade o nomeamos prefeito. Seu primeiro ato foi botar na rua todos os funcionários do paço municipal, gente que, por sua vez, estava no cargo não fazia muito, porque eram de confiança do prefeito nomeado no mês anterior pelo reacionário governador. Ou melhor, graças a nós, ex-governador.

A ação lá durou menos de uma hora, e sendo uma cidade fácil de controlar pelo tamanho, deixamos uns poucos guerreiros com o novo prefeito para cumprir as instruções do comando como fizéramos em São João do Mibipu, e partimos para Goianinha, eu no comando de um caminhão, e meu parceiro tenente Rangel com outro.

O céu estava claro quando chegamos no nosso próximo alvo, que tinha o dobro do tamanho de Arês, mas foi igualmente fácil de tomar. Problema foi achar alguém que tivesse o mínimo de instrução para nomear para prefeito. Era preciso que o candidato pelo menos soubesse escrever. Na falta de opção, acabamos colocando no cargo um fazendeiro rico, mesmo.

— Camarada Anita — me disse, então, o Camarada Rangel, quando estávamos ambos sentados nos degraus dos respectivos caminhões, descansando um momentinho antes de seguir caminho, — a gente já está com uma grana preta aqui e muito prisioneiro pra ficar carregando de um lado pro outro. Acho que por via das dúvidas era bom já destacar alguém pra mandar essa remessa para a capital. Pra nós isso é só peso morto agora, e se por acaso... bem, digamos que é melhor evitar que o fruto dos nossos esforços caia em mãos erradas. O que me diz? Tem alguma sugestão de quem nós podemos mandar?

Pensei por um minuto. O pessoal sob o meu comando parecia honesto e leal, mas eu só conhecia a maioria havia algumas horas. "Se quer algo bem-feito, faça você mesmo", lembrei, e, apesar do espírito totalmente burguês e anti-coletivo daquela máxima, ela me pareceu adequada à situação.

— Então catei uns homens e vim — contei, — e o tenente Rangel partiu pra Canguaretama com o resto do efetivo. Estamos com quarenta e poucos prisioneiros no caminhão. Quer que eu os leve para o quartel ou cabem aqui?

— Me parece que no quartel não tem mais lugar. Estão trazendo os últimos para cá, pra aguardar a decisão de Quintino — informou Santa, que chegara ao saguão no meio da minha narrativa. — Mas você falou que tinha trazido dinheiro...?

— Oh, sim, conseguimos quase oito contos de réis. E víveres também, mas isso achamos melhor deixar com a tropa, porque não tem como eles continuarem avançando de estômago vazio, não é?

— Era o que eu dizia! — Praxedes exclamou, olhando para João Galvão, e percebi que ele estava retomando a discussão interrompida pela minha chegada. — De estômago vazio ninguém faz nada, só passa raiva.

— Mas o que houve? — perguntei, notando os rostos graves na sala. — Estamos sem comida na cidade?

— Sem comida, não, — retificou Galvão —, sem acesso a ela.

— Os quitandeiros não confiaram na nossa garantia de que ia ficar tudo bem — Praxedes esmiuçou. — A maioria das lojas não abriu hoje.

— Ah, por isso as filas... — murmurei, mais para mim, mas Praxedes assentiu com ar preocupado. — Olha, todo mundo tem que colaborar, né? — comentei, então. — Estamos fazendo isso pelo povo, nada mais justo que ajudem como puderem.

— Já falei para requisitarem, como as colunas estão fazendo, como fazem com os grãos na União Soviética — Santa comentou, — mas Praxedes prefere não se indispor com os comerciantes logo de saída.

De certa forma eu entendia o receio de Praxedes. A ocupação da cidade se dera de maneira quase pacífica e as coisas estavam indo tão bem. Um bater de pé podia abalar os alicerces do frágil equilíbrio.

— Você chegou a falar com eles pessoalmente? — perguntei ao secretário. — Com os comerciantes?

— Ainda não tive oportunidade, só recebi as donas de casa reclamando que não puderam comprar comida pro almoço.

— Vamos lá, então — sugeri. — Uma coisa é não atenderem um pedido num comunicado geral, outra é se recusarem a cumprir uma ordem direta na cara da autoridade.

Fui rapidamente à sala de Macedo, entregar-lhe os oito contos recolhidos na província. Encontrei-o debruçado sobre um livro contábil com ar preocupado. Seu rosto se iluminou ao me ver chegar com os sacos de dinheiro, e prometeu deixar um recibo pronto para quando eu voltasse.

Saindo do prédio com Praxedes, fiz outra parada junto ao caminhão em que viera, a fim de instruir meu sargento sobre a transferência dos prisioneiros para as celas improvisadas na Vila Cincinato. Santa prometera auxiliá-lo com isso, na ausência dos Secretários da Defesa e da Justiça. Eu mal dissera meia dúzia de palavras, quando uma gritaria no prédio do governo abafou nossa conversa. Virei-me para lá bem a tempo de ver dois homens saírem carregando um terceiro, desfalecido, que perdia sangue por uma ferida na barriga. Galvão e Macedo apareceram atrás deles na porta, vociferando impropérios, o mais baixo arrancando tufos de seu já escasso cabelo. Um dos carregadores também parecia descontente com o outro e acrescentava exclamações roucas à bronca dos Secretários. Eles passaram apressadamente por nós, entraram num carro estacionado adiante na rua, acomodando o ferido no banco traseiro, e dispararam para o que eu só podia supor ser o lado do hospital.

Priorizando nossa missão, eu e Praxedes decidimos indagar sobre o ocorrido outra hora e nos encaminhamos para o maior dos estabelecimentos rebelados, o armazém do português Manoel Machado. O aglomerado na frente dele sobrepujava todos pelos quais eu tinha passado. Foi necessário engrossar a voz e deixar meu fuzil bem à vista para abrir caminho entre o populacho zangado.

— Manel! — gritou Praxedes, socando a porta fechada. — Aparece aqui, vamos levar um lero.

Silêncio do lado de dentro. Um ruído alto de respiração, porém, denunciava a presença do dono.

— Manel! — meu colega repetiu, com o sangue começando a subir. — Abra, homem, não me faça botar essa porta abaixo!

Soaram passos miúdos e uma carantonha bigoduda apareceu bem na minha frente do outro lado do vidro, fazendo-me saltar de susto. Praxedes se dirigiu ao dono dela.

— As pessoas querem comprar, e o senhor faça o favor de vender a elas. Não recebeu nossa instrução, ontem? Abra a loja, faça o preço justo, e nós garantimos a segurança.

— Recebi — balbuciou o quitandeiro, que ainda guardava um pouco de sotaque luso apesar dos muitos anos de convivência com os potiguares —, mas esta história não me convence. Se abro isto aqui, há de ser uma selvageria, um Deus nos acuda. Antes que termine uma piscada, já estarei com tudo vazio cá dentro, inclusive os bolsos.

Não precisamos seguir a direção dos olhinhos castanhos que miravam além dos nossos ombros porque as faces que eles viam estavam refletidas no vidro, e, realmente, podiam causar algum temor. Mas o aspecto dessas faces só tendia a piorar, a medida que o sol esquentasse suas cabeças e a fome aumentasse. Eu e Praxedes nos entreolhamos.

— Olhe — ele disse, então —, sem nada na prateleira o senhor vai ficar de qualquer jeito, agora resta escolher se vai ser por bem ou por mal, com porta ou sem porta.

— Ai, valei-me, minha nossa senhora, que esta ralé me deixa nu em pelo! — queixou-se o lusitano, alçando a mão de má vontade para o trinco. — Vão-me roubar tudo!

O Secretário de Abastecimento foi de castanho a rubro profundo em um instante.

— Ninguém vai roubar nada que ninguém aqui é ladrão! Ladrão é você com esses preços na coroa da lua! Nós vamos pagar.

Cutuquei Praxedes, fazendo-o olhar para mim.

— Vamos? — perguntei sem fazer som, apenas mexendo os lábios.

— Combinamos na reunião, lembra? Com o dinheiro que você trouxe... Decerto dá e sobra.

Senti o canto da boca entortar. Aquele dinheiro devia servir para o avanço do esforço revolucionário... Mas as pessoas atrás de nós tinham começado a rosnar; não haveria avanço nenhum se elas nos destroçassem no ato, então eu só fiz um breve aceno.

— E se o problema é a confusão — Praxedes acrescentou —, a gente cuida de distribuir. É isso, estou formalmente requisitando os alimentos.

— Quero por escrito!

— Por escrito o quê?

— A requisição.

Respirando fundo, o secretário se virou para o povo atrás de nós.

— Pessoal, todo mundo para a Vila Cincinato. Aguardem um momentinho lá que já vamos mandar gente vir buscar os alimentos e vamos distribuir tudo direitinho — ele prometeu.

As pessoas pareceram em dúvida, mas comida de graça era uma perspectiva atraente demais para elas ignorarem, então logo liderávamos uma massa de umas duzentas pessoas para longe da quitanda. No caminho, antes de chegarmos ao fim da rua, Praxedes chamou uma patrulha que rondava por ali e ordenou:

— Montem guarda, não deixem ele sair. Se bobear, esse portuga passa a perna na gente.

No palácio do governo, nos separamos. Pedimos para o povo formar uma fila ordeira no saguão, e Praxedes foi à sua sala, redigir as requisições necessárias, enquanto eu voltava ao escritório de Macedo para tirar-lhe a alegria que lhe dera mais cedo.

— Mas como?! Eram quase oito contos de réis, impossível já ter gastado tudo! — proferi, numa indignação que elevou minha voz além do nível da educação e jogou o tesoureiro na defensiva.

— Bom, Quintino levou uma parte para comprar víveres, gasolina e outras coisas que as tropas vão precisar — ele justificou, rapidamente. — Com o resto, pagamos os atrasados dos funcionários públicos e compramos alguns suprimentos para o hospital. Sobrou um pouco, mas não sei se basta para alimentar a cidade inteira.

A menção ao hospital me distraiu, ao recordar-me certo pormenor.

— Quem era aquela pessoa que carregaram ferido daqui?

O rosto de Macedo se ensombreceu.

— Era um galinha verde que os nossos prenderam lá pros lados da praia hoje cedo. Ele engrossou com o camarada que o trouxe, os dois pegaram uma briga, e o camarada lhe deu com o sabre por cima.

Abanei a cabeça, compartilhando o ar de censura.

— O integralista resistiu à prisão?

— Parece que sim, mas isso antes de trazerem ele para cá. Na hora da briga ele já estava preso — Macedo contou. E, após um momento em silêncio descontente, fitando a mesa com ar pensativo, revelou: — O problema foi o motivo, sabe? Se o sangue tivesse simplesmente esquentado com as provocações do integralista, vá lá... você sabe como eles são, né?... mas dizem os outros que o camarada tentou roubar o relógio do preso, e foi isso que os levou às vias de fato...

— Isso é caso para a corte marcial! — indignei-me novamente. — Somos revolucionários, não ladrões! Temos que aplicar logo uma penalidade para servir de sobreaviso a quem mais estiver pensando em ceder a tentações egoísticas. Cadê o Lago? Já contaram isso pra ele?

— Não, ele saiu hoje cedo para uma ronda pela cidade e ainda não voltou. Foi exercer as funções de secretário do interior, ver o que está faltando, o que precisa consertar, construir ou implantar, que é para a gente poder fazer o orçamento.

— De que adianta um orçamento, sem dinheiro? — comentei, contemplando com desânimo os restos dos recursos tributários do interior.

— Ah, camarada, mas não contávamos só com os recursos da província para governar o estado. Seria inviável implantar todas as mudanças que queremos. Só concretizar a reforma agrária que decretamos já vai ser dispendioso, porque não dá para simplesmente largar a terra na mão dos camponeses sem dar semente, ferramenta, condições para eles explorarem, né? E daí tem as escolas, e a industrialização pra fomentar... Sabe como é, sem um proletariado real a gente não vai chegar no socialismo é nunca.

— Sim, sim — interrompi. — Bem, e onde mais vamos arranjar dinheiro?

— Na Recebedoria de Rendas daqui e nos bancos — retrucou Macedo. — Na reunião dessa manhã, decidimos confiscar tudo o que houver neles para os cofres públicos. Já mandamos gente arrombar os cofres do Banco do Rio Grande do Norte. As reservas do Banco do Brasil vamos tentar conseguir pacificamente. O gerente é simpatizante, contribuía para o Partido. Estava saindo para falar com ele quando você chegou. Quer ir comigo?

Quando se trata de banco, o fuzil é a arma do diálogo. Gerente simpatizante ou não, achei que minha companhia armada seria útil ao Secretário de Finanças. Então, depois de perguntar ao Praxedes se ele ainda precisava da minha ajuda e receber sua dispensa, parti com o baixinho dos Correios e os homens da Coluna Sul que tinham voltado comigo e vagavam ociosos pelo palácio do governo.

A casa do tal bancário ficava na Avenida Junqueira Aires, no meio dos casarões dos ricaços. Era um pouquinho menor que a dos realmente ricos — afinal, estávamos falando do gerente, e não do dono —, mas muito bem arrumada. A sala de jantar, cômodo onde encontramos o gerente jantando com a esposa e o filho de cinco anos, parecia parte de uma casinha de boneca. Em meio aos quadrinhos alinhados que enfeitavam as paredes salmão, sobressaía-se um diploma de honra ao mérito conferido a Carlyle Magalhães da Silva por ocasião de sua graduação em Contabilidade.

Como era de se esperar, o desfile militar que irrompeu no ambiente interrompeu o bater dos garfos na cerâmica. A dona de casa, uma jovem platinada trajando um terninho rosa, mirou nossas armas com horror. A criança, por sua vez, pulou de pé e correu para o meu lado erguendo olhos brilhantes e curiosos para o monstro de metal que eu trazia nos braços, até que a mãe o puxou para longe quando ele tentou tocar o fuzil. Ao próprio bancário, um rapaz de trinta e poucos anos e risca impecável nos cabelos negros, nossa invasão evidentemente também contrariara, mas ele disfarçava muito bem.

— Ora, ora — disse com um sorriso untuoso. — A que devo a honra de uma visita do governo?

Macedo sorriu com embaraço lisonjeado.

— Então já sabe. Ouviu o comunicado?

O bancário confirmou com a cabeça.

— Quem não ouviu? Em tempo de novidades o rádio fica sempre mais popular.

O secretário concordou. Depois, lançando um olhar para a mesa, murmurou:

— Desculpe por chegar numa hora dessas, mas é que estive ocupado até agora e a questão é realmente importante...

— Não, de maneira nenhuma... Inclusive... estão servidos? Fiquem à vontade — balbuciou o dono da casa, soerguendo-se e levantando uma travessa com um ensopado muito cheiroso na nossa direção. Não fui a única a lançar-lhe um olhar cobiçoso, mas todos contivemos o apetite para não atrapalhar a missão séria que viéramos executar. — Não? Ninguém? Tudo bem — e, devolvendo a travessa à mesa, Carlyle afastou o próprio prato e secou os lábios com um guardanapo quadriculado. Então, cruzando as mãos à sua frente, perguntou com aparente tranquilidade: — Em que posso servir ao meu povo?

Não houve resposta imediata. Macedo pigarreou e voltou olhos incomodados para a esposa e o filho do bancário, que acompanhavam a conversa com interesse. Carlyle também lançou um olhar sério à mulher. Esta, sem questionar ou protestar, levantou-se rapidamente, tocou o ombro do filho, e saiu com ele do recinto, fechando a porta após si.

O lugar vago em frente ao anfitrião foi logo ocupado pelo Secretário, que, cruzando as mãos sobre a mesa num gesto que espelhava o interlocutor, foi direto ao ponto:

— Vamos confiscar todo o dinheiro do Banco do Brasil, e precisamos que você abra os cofres para nós.

O rosto do tal Querláil — ou "seu Carlíle", como o chamavam todos na cidade — quase conseguiu abafar o choque, vazando-o apenas no empalidecimento brusco e no tique que contorceu sua bochecha uma vez.

— Eu adoraria poder colaborar — murmurou, conciliador, com uma olhada para nós da escolta —, mas não fico com as chaves dos seguros. Toca ao tesoureiro essa responsabilidade. Creio que sua própria experiência — ele buscou apoio em Macedo — corrobora meu testemunho, Secretário.

Estreitei os olhos para o rosto alinhado à nossa frente, tentando discernir se ele falava a verdade. Apesar dos testemunhos a seu favor, eu tinha uma desconfiança inata contra todos e tudo que se relacionasse a bancos. O parecer de Macedo, porém, ficou claro antes mesmo que ele se manifestasse, pela contrariedade evidente em seu silêncio.

— E onde eu encontro esse tesoureiro?

— Não sei dizer. A última vez que eu falei com ele foi sexta-feira, no fim do expediente — o bancário retrucou apressadamente. — Antes de... todos os acontecimentos.

Dali a pouco, o bancário estava acenando para nós do portão de casa, sem muito sucesso em ocultar o alívio.

A batata quente mudara de mão.

Dirigimo-nos à residência do guardião dos tesouros, somente para encontrá-la fechada e sem sinal de vida. Batemos, rondamos, chamamos... Ou não tinha ninguém em casa, ou estavam escondidos em algum compartimento secreto três pisos abaixo do chão.

O jeito seria arrombar aquele cofre também. Voltamos à Vila Cincinato, para Macedo redigir a ordem. A essa altura, Lago tinha chegado com seu relatório do estado da cidade, e os dois se fecharam na sala de um deles pelo resto da tarde, junto com Santa, fazendo cálculos e estimativas e traçando planos emergenciais.

Eu, enquanto isso, acabei ajudando Praxedes a terminar a distribuição dos alimentos que tínhamos requisitado do armazém do português. Experimentei sentimentos conflitantes ao entregar pacotes de farinha, feijão e outros bens a mulheres e velhinhos e crianças e trabalhadores de mãos calosas, porque, ao receber os donativos, eles me olhavam com a gratidão devotada a uma irmã de caridade. Queria dizer a eles que se animassem, se alegrassem, que aquilo não era uma ajuda, mas a Revolução, a mudança de destino que o Povo conquistara para si... Queria que tomassem as rédeas da própria história! Outra parte de mim achava a gratidão bonita e natural e humana, e não se importava muito com essa questão formal de postura, satisfeita em ver a alegria no tremor das mãos que finalmente recebiam um mínimo sem sangrar. Essa parte de mim tomou conta da boca, e nenhum "Deus te abençoe, filha" ficou sem um sorriso e um "amém" como resposta.

Eram quase quatro horas quando eu finalmente consegui almoçar. Comi com a tropa no quartel, ouvindo as narrativas das façanhas de cada um durante o fim de semana. Escutava com metade da atenção, apenas, tentando desprender o cérebro um pouco do mundo real para obter algum descanso em meio à intensa atividade. Isso não me impediu, porém, de ouvir sobre um colega que defendera uma rua inteira sozinho por algumas horas durante o sítio do quartel, outro que supostamente teria derrubado três soldados inimigos, de ficar sabendo que um camarada da Coluna Norte também voltara com notícias de pleno sucesso, e reparar com o canto do olho quando Quintino saiu para falar com um emissário recém-chegado de ar meio atribulado.

No resto da tarde, fui escalada para as patrulhas que rondavam Natal cuidando da segurança pública e reprimindo abusos. Com tanta gente armada andando pela cidade, os cidadãos estavam de esforçando para andar na linha. Encontramos pelas ruas poucos dos vários bêbados habituais. Os maiores episódios de confusão que presenciei foram empurra-empurras e princípios de saque, que conseguíamos dispersar com alguns tiros para cima. Mas é verdade que eu fiquei o tempo todo ali pela Cidade Alta e pela Ribeira, onde estava concentrada a maioria das nossas tropas. Corria à boca pequena que em bairros mais afastados tínhamos chegado tarde demais para evitar alguns saques.

Apesar de tudo, o dia anoiteceu tranquilo, e pela primeira vez desde a sexta anterior todos nós do comando acariciávamos a perspectiva de dormir uma noite inteira.

Mas essa noite não ia começar tão cedo. Por volta de umas vinte horas, quando eu começava a arrastar as pernas e diminuir a velocidade nas rondas, fui chamada para a sede do Banco do Brasil. Eles tinham acabado de conseguir que alguém abrisse o cofre, e me escalaram para transportar os recursos para a sede do governo, junto com vários outros militantes. Eu nunca tinha visto e depois dessa ocasião nunca mais vi tanto dinheiro junto. Pessoas entravam e saíam pelo buraco de bordas derretidas na porta de ferro com os braços cheios de cédulas verdes, como se fossem formiguinhas levando folhas para o formigueiro. Era nota que não acabava mais. Mesmo utilizando todos os carros desocupados, precisaríamos de algumas viagens para transportar tudo.

Eu não cheguei a fazer uma segunda viagem, porém, porque Quintino me interceptou assim que, voltando da primeira, cheguei à Vila Cincinato.

— Camarada — ele disse, poupando rodeios — o que acha de voltar para o combate?

Ergui os olhos com interesse, pronta a ouvir sua proposta, pois estava um pouco cansada de bancar a policial.

***

— Não esperava te rever tão cedo — proferiu uma voz conhecida, enquanto seu dono, com quem eu partilhava um caixote junto à fogueira, entendia-me um cantil.

— Não reveria se vocês tivessem dado conta dos seus galinhas verdes — repliquei, com uma pitada de zombaria.

— Nós demos conta deles — a resposta veio levemente ofendida. — A cidade é nossa, não é?

Quando Quintino me convidou para retornar ao front, achei que ele fosse me mandar de volta para a Coluna Sul, com novas instruções e talvez alguns recursos. Mas não: mesmo sem mim, a jornada da Coluna Sul ia de vento em popa. Canguaretama sucumbira e, no dia seguinte, Rangel planejava capturar as últimas cidades que nos separavam da Paraíba: Pedro Velho e Nova Cruz.

— Metade do estado é nossa — retruquei. — Minha Coluna já está a um passo da fronteira. Há rumores de que Silo levantou o pessoal em Pernambuco. E vocês ainda presos aqui. Ai, ai... — provoquei, brincando.

— ...a fronteira oeste é bem mais distante que a sul — silêncio. — Mas muito me alegra que estejam voando na descida. Assim chegaremos ao Rio mais rápido... — sussurrou.

Tomei um gole do que quer que havia no cantil, para escapar à necessidade de uma resposta; não sei dizer se o calor que me inflamou o rosto se devia ao líquido de gosto ruim, ao comentário, ou à proximidade da fogueira de processos e escrituras.

Ela era mesmo o ponto mais seguro para eu olhar no momento. Armáramos nosso acampamento ao redor dela mais por prazer que por necessidade: muitos moradores, ao ouvirem falar da aproximação dos comunistas, tinham fugido da cidade, abandonando suas casas abertas e com tudo dentro. As moradias ofereciam condições para um pernoite no maior dos confortos. Mas o sargento Oscar e Stuart decidiram que seria melhor perturbar os lares o menos possível, para granjear a simpatia da comunidade abalada com o tiroteio de mais cedo. Quando voltassem e vissem que tudo estava no lugar, entenderiam que merecíamos confiança. Além disso, ter a tropa toda dormindo no mesmo arraial facilitaria sua reunião para prosseguir a marcha no dia seguinte.

Alguém apareceu com carne e outro com um violão, e aí mesmo que os soldados se acomodaram para folgar um pouquinho antes de afadigar-se de novo.

O cansaço dos combates dos últimos dias, que já devia tê-los prostrado, não veio logo à tona porque a adrenalina lhe servia de antídoto, simulando ainda haver energia nas veias dos combatentes. Então os camaradas resolveram gastá-la na cantoria, enquanto assavam um bovino morto por acidente no tiroteio em Panelas. Era o primeiro churrasco da Revolução, com direito a samba e tudo:

— ...Feche a porta da direita com muito cuidado...

— Morreu alguém além da vaca lá em Panelas? — perguntei a Astrakhanov, quando achei que já dava para mudar de assunto sem parecer rude.

— Não — ele garantiu, numa negativa arrastada. — Tinha o quê, seis homens na estrada? Essa pobre escolheu a hora errada para atravessar a rua. A gente, as balas nem arranharam.

— Mesmo assim, você não acha estranho eles terem aparecido tão cedo?

— Pois é — ele tomou outro gole do cantil que eu lhe devolvera e o pôs de lado, pensativo. — Será que alguém nos traiu? — cochichou-me. Olhei em volta rapidamente, para ver se os outros tinham ouvido, mas pareciam ainda entretidos pelo espetáculo de voz e violão.

— ...Se você ficar limpando a mesa, não me levanto nem pago a despesa...

— Possível sempre é — admiti.

— Camarada dona moça, o que vai ser pra você? — perguntou o camarada que bancava o cozinheiro, dando a volta na fogueira com o facão numa mão e na outra um galho longo, com o qual cutucava o alimento. — Costela ou um pedaço da perna — especificou, apontando com o graveto as respectivas partes.

— ...costela, eu acho? Não sei, o que for mais fácil de mastigar. Estou exausta, com preguiça até de mexer os dentes — retruquei, com um sorriso. O cozinheiro soltou uma risada gostosa, e acenou positivamente.

— Pode deixar que eu lhe reservo um bom pedaço. Demos uma sorte danada, a vaca é das gordas, olha — ele comentou, cutucando mais uma vez o cadáver. Algumas gotas de gordura pingaram e desapareceram na fogueira com um "tchhhhh", elevando e avermelhando as chamas. — Camarada Stuart?

— Costela, obrigado.

Aguardamos o chef-garçom se afastar antes de continuar a conversa.

— E quando vocês entraram em Serra Caiada, estava limpo?

— Limpo de gente, né. Só tinha integralista.

Abafei uma risada culpada.

— Botamos eles para correr, mas como percebemos que a coisa estava organizada, decidimos avisar o Quintino e pedir reforços quando chegamos aqui — ele fez uma pausa. — Aqui não teve combate — continuou a contar. — Os deles já tinham fugido, quem ficou simpatizava com a gente... Ou não estava nem aí pro assunto.

"Eis um tipo comum no Brasil", pensei, num misto de compreensão e desgosto.

— Por isso achamos que aqui era o lugar certo para parar, aguardar os reforços e pensar na melhor estratégia para prosseguir. Alguns moradores até nos ajudaram a distribuir nossos comunicados e contaram que os comunistas da cidade foram presos logo que as notícias do estouro da Revolução chegaram aqui.

— E cadê eles agora? — questionei, com a atenção parcialmente roubada pelo prato de carne que eu acabara de receber. Astrakhanov, a quem também fora concedida uma costela, apontou para um bolinho mais para a esquerda, ao pé do cantor.

— ...Vá dizer ao seu gerente que pendure essa despesa no cabide ali em frente...

— Chega dessa música de burguês! — a voz alta e meio embargada do sargento Oscar, companheiro de Astrakhanov no comando, chegou ao acampamento um instante antes dele. Logo o militar irrompeu do beco em frente, com a blusa da farda em um ombro, o lenço vermelho do pescoço destacando-se contra a regata branca, e o bigode sujo de espuma. — Temos que cantar é hino de bravo, fortalecer o espírito pra amanhã. Vamos, todo mundo, comigo: nosso povo, que vive oprimido já não pode sofrer tanta dor...

Era o hino da ANL, mas até eu demorei para reconhecê-lo na voz engrolada do sargento. De todas as nossas canções inspiradoras, não era a mais difundida. A maioria dos camaradas somente balbuciou alguma coisa, subindo a voz no "Aliança! Aliança!" ou nos finais -il, -ul, -ado. Uns poucos cantavam com entusiasmo e chegaram a subir nos caixotes que nos serviam de assento:

— Nosso peito há de ser a muralha contra quem explorar a nação: este povo, que luta e trabalha quer justiça, quer terra, quer pão!

Esses pareciam incansáveis, e, comovidos como o diabo pela lua e pelo conhaque (ou antes, pela cachaça cooptada aqui e ali), repetiram o hino como um disco riscado, em meio ao ruído de mastigação. Mesmo quem, como eu, adormeceu no meio da festa, no dia seguinte cantarolava os versos aprendidos por osmose, enquanto os caminhões nos levavam para a conquista do próximo posto avançado.

Quem trabalha há de ser o mais forte,

No calor deste céu sempre azul.

Das douradas caatingas do Norte

Às ridentes coxilhas do Sul.

Devido às anteriores experiências de resistência, decidíramos prosseguir com todo o efetivo. Então foi preciso esperar mais uma leva de recursos e reforços de Natal, a quem legamos a guarda do acampamento em Santa Cruz antes de abandonar a cidade, no fim da tarde. Após uma longa subida, rodávamos por uma estrada poeirenta, ladeada por altos barrancos. Nosso destino: Currais Novos. "Das duas uma: ou vai ter rebanho de fascista para a gente espantar, ou mais churrasco para papar", brincavam os colegas, animados e revigorados após quase vinte e quatro horas de descanso.

Nós faremos o "sigma" em pedaços,

Não queremos emblema tão vil,

A serviço dos grandes ricaços,

Contra os pobres de todo o Brasil.

O sol se pusera, e os camaradas já tinham parado de enxugar a testa com seus lenços rubros. O alvoroço, porém, nos fazia detectáveis. Mesmo sem cantoria e risadas, o ar se encheria de qualquer modo dos rugidos e roncos dos dez caminhões.

BUUUUUM!

Nove.

O clarão momentâneo foi tão forte que nos revelou instantaneamente a configuração da emboscada. À frente, junto ao caminhão incendiado, faiscavam os destroços de uma barreira de pedras, adornada com as chamas das bombas que o choque detonara ali. Numa irônica inversão da experiência vivenciada em Natal, agora eram nossos inimigos que estavam entrincheirados nos barrancos, e nós, no chão, expostos como patinhos numa barraca de feira.

Meus movimentos seguintes foram certamente reflexos, porque tudo aconteceu rápido demais para meu cérebro decodificar comandos racionais. Primeiro, mergulhei e colei na parede da carroceria em que vinha, amontoando-me com os camaradas vizinhos que faziam à mesma coisa. O instinto previa que a explosão não viria isolada, e, de fato: quem quer que estava nas trincheiras aproveitou a oportunidade para mandar diversas balas fazerem uma varredura em nossos caminhões.

Quando o fogo aliviou, arrastei-me até o canto em que havia um montinho de granadas. Uma coisa estava clara em minha mente: se queríamos atingi-los, seria necessário destruir sua proteção. A essa altura, Astrakhanov e o outro comandante já gritavam instruções, mas poucos eram os que os entendiam, e muito menos os que obedeciam. Cada um seguia as orientações das próprias tripas, e eu não era exceção.

Soerguendo-me no intervalo seguinte, fiz o braço de cata-vento para lançar o máximo de granadas possível em mais lugares e menos tempo. O deslocamento era incômodo e sem jeito, principalmente porque os caminhões ainda rodavam, tentando achar uma posição que protegesse o melhor possível os combatentes em cima deles, e, de preferência, permitisse uma eventual retirada.

Essas oscilações fizeram-me errar o alvo algumas vezes, mas os acertos vieram em número suficiente para que eu não desistisse de tentar. Levantar, mirar, jogar, desviar, abaixar, esperar, levantar, mirar... A sucessão requeria um equilíbrio delicado. Muito delicado para que minha mente conseguisse mantê-lo em curso por muito tempo.

Foi necessária apenas uma fração de segundo de atraso.

Se algo foi visto, o cérebro não teve tempo de decifrar. As sensações, porém, conquanto quase simultâneas, apresentaram-se com nitidez fora do normal. Primeiro, um pé-de-vento riscou-me impetuosamente a têmpora. Depois, um empurrão no lado esquerdo do tronco me lançou da carroceria para os braços da terra, que meus pulmões cumprimentaram com entusiasmo, expelindo todo o seu estoque de ar para impressioná-la.

E, do ponto na fronte batizado pela ventania, espraiou-se de repente um calor ardiloso, acompanhado de inexorável, tirânica escuridão.

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