Dias Vermelhos

Por erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... Más

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 77 - Reestruturação

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Por erikasbat

Havia um motivo para raramente realizarmos nossas reuniões no bairro operário, apesar de a maioria dos nossos militantes morarem lá: a maioria dos nossos militantes morava lá. Todo mundo sabia disso, inclusive a polícia. Então, como a melhor forma de esconder algo é deixar essa coisa à vista, fixáramos nossos lugares habituais de encontro nos bairros nobres, bem debaixo do nariz dos policiais.

No momento, porém, não havia por que temer as forças de segurança pública. Seus integrantes estavam todos ou do nosso lado, ou encurralados na beira do Rio Potengi, enquanto eu descia tranquilamente as ruas do bairro das Rocas na companhia do Sargento Quintino, apreciando a paisagem natural. A arquitetura não era lá essas coisas — ninguém tinha poder aquisitivo para texturas nas paredes ou venezianas importadas. Porém, enchia os olhos notar que, diferente dos outros bairros onde eu havia passado no corre-corre desde o dia anterior, boa parte das portas ali estavam abertas, havia burburinho nas casas, e o entra-e-sai e vai-e-volta intensos provavam que vivia a nossa revolução.

Mesmo sem ser presença frequente nas Rocas — o que faria ali a esposa de um engenheiro? —, eu conhecia vários dos rostos pelos quais passava, inclusive o que se chocou contra o meu estômago quando cruzei o limiar da casa para onde nos dirigíamos.

— Tia Nita! Olha o que eu achei, olha?

No processo de recuperar o fôlego depois do "Uf!", agarrei os ombrinhos ossudos e encarei o sorrisão do menino, logo desviando o olhar para sua mão erguida com o que ele queria me mostrar.

E meus olhos se arregalaram.

— Querido... de-deixa a tia ver mais de perto? Zefinha! — gritei, mais histericamente do que pretendia. — Onde é que o Zezinho anda brincando?

Zefinha apareceu atrás de nós na porta da cozinha, com um lenço mal ajustado nos cabelos bagunçados e um par de ovos fresquinhos na mão.

— Dona Anita, quanto tempo! Seu Quintino. Podem entrar, já está quase to... Ai, minha nossa senhora! Filho, dá cá pra mãe, dá. Onde é que você conseguiu isso?

— Ele pegou na casa do vizinho — dedurou Torquato Filho, o primogênito, que comia uma papa amarela de uma tigela do outro lado mesa, com cara de sono.

— E onde estava o seu pai, que não viu isso? Quatrooo! Venha já aqui, homem! — rugiu a dona de casa.

O Camarada Quatro conjurou-se instantaneamente à porta que dava para o restante da casa, com um fuzil pendurado no ombro.

— Diga, minha vida — ele falou, num misto de ironia e bom humor.

— Eu não te pedi pra vigiar os meninos enquanto eu fazia a comida? Olha só o que encontrei na mão do teu filho!

E ela entregou para o marido um projétil de fuzil. Quatro apanhou o objeto com ar de surpresa, mas depois abriu um sorriso e fez um cafuné na cabeça crespa de Zezinho.

— E o que tem? — disse, para a mulher. — Ele é meu guerreirinho!

— O que tem? E se ele engole isso aí e explode as tripas do menino?

— Sossega, mulher, é uma cápsula vazia.

Zefinha fez menção de retrucar, mas pensou melhor, respirou bem fundo, e mudou o tom.

— Olha, se você quer que eu faça comida pros teus convidados, vai ter que olhar as crianças, que as duas coisas ao mesmo tempo eu não dou conta. Se fosse um dia normal, mandava eles irem brincar, mas com essa agitação na rua...

— Certo, certo — o marido apaziguou-a, segurando os filhos pelos ombros com um garras de águia. E então pareceu nos notar pela primeira vez. — Ah, que bom que vocês já chegaram, camaradas! Querem fazer o favor de passar à sala? A cozinha aqui é meio apertada e Zefinha vai precisar de todo o espaço pra cozinhar. Além disso, quase todo mundo já chegou, só estamos esperando o Santa e... Ah, olha eles aí!

Todos olhamos para onde ele apontou, só para ver Santa e Praxedes atravessarem em passos rápidos o quintalzinho que os separava da fachada de madeira sem reboco. Em um instante, tinham se juntado a nós.

O relógio redondo acima da porta de comunicação marcava três para as oito quando nos esprememos para contornar a mesa nua e lotada que ocupava quase toda a cozinha e seguir Quatro rumo ao interior da casa. Cruzamos em dois passos um corredorzinho com um quarto de cada lado e passamos por uma cortina de contas cor de laranja a fim de alcançar a sala de visitas, de onde provinha um burburinho empolgado. O Lauro da cadeia, o Macedo dos Correios e mais um correligionário conversavam lá. Em seus murmúrios transparecia o triunfo da vitória, mas não deixavam de murmurar, pois é difícil largar hábitos conspiratórios arraigados. Tanto assim que, mesmo cientes de que viríamos para a reunião, os camaradas se sobressaltaram à nossa entrada.

O primeiro a se recuperar foi João Galvão, o rapaz com jeitão de urso em cuja residência costumávamos nos reunir. Saltando de pé, abriu os braços e bradou:

— Viva a ANL!

— Viva! — respondemos, num reflexo.

— Que momento histórico, senhores... e senhora! Que momento! Acho que devíamos sagrá-lo cantando o hino da Aliança! Ou talvez o da Internacional! — continuou João, exaltado.

Antes que mais alguém pudesse se manifestar, porém, Quintino ergueu a mão tímida, mas firmemente, atraindo a atenção de todos.

— Teremos tempo para as formalidades depois, camaradas — ele disse. — No momento estou com alguma pressa de relatar os avanços da noite, e quero voltar o quanto antes para reorganizar as tropas e ver se agilizamos a tomada do último baluarte.

— Achei que a cidade já fosse nossa — Santa comentou, com as mãos na cintura e uma sobrancelha erguida.

— E é — respondeu Quintino. — Os cabras da polícia ainda estão defendendo o posto, mas a queda deles é iminente. A Camarada Anita estava lá até agora, pode corroborar minha informação.

— Positivo — repliquei, sentindo-me mais oficial por usar jargão. — Calculamos que o prédio conta com menos de cem defensores; nossas forças são o dobro disso. E temos três metralhadoras em campo para cada uma das deles. Eles atiraram a noite inteira sem parar — pontuei, enfática —, uma hora a munição tem que acabar.

— Exatamente. Eles têm bem menos que a gente, afinal, o exército é federal, mas mesmo assim eu não queria gastar recursos demais com eles, porque ninguém sabe o que ainda teremos que enfrentar, não é? Então, se pudermos passar logo aos finalmentes...

Balbucios de concordância partiram de todos os lábios presentes. Quatro se adiantou para ajudar Quintino a estender na mesinha de centro o mapa que este trouxera, e nos convidou a tomar assento nos dois sofás de vime com almofadas coloridas.

Espremi-me ao lado de Praxedes e olhei brevemente em volta. Aquela sala era obviamente o cômodo nobre da casa. As tábuas lixadas estavam cobertas por uma pintura branca impecável, que fazia o ambiente parecer maior e mais arejado do que sua única janela na parede dos fundos permitiria. Uma cortina de renda suavizava a luz vertente por ali. O anfitrião, ausentando-se por um instante, retornou com uma cadeira para Quintino, e, para não me atrapalhar, tirou do meu colo Zezinho, que nele se instalara.

Sob a vigilância atenta dos pais de Quatro, mal pintados num retrato oval na parede esquerda, e do Sagrado Coração de Jesus na parede direita, demos início à implantação do primeiro governo comunista da América Latina.

A cidade se desdobrava à nossa frente na mesinha de vidro, e Quintino, debruçado sobre ela como um gigante, apontava os pontos conquistados, relatando o que sabia da situação atual de cada um e das forças empregadas na conquista.

— ...e a central de energia elétrica.

— Por que é que a gente precisa dela mesmo? — perguntou João Galvão timidamente, erguendo uma mão. — O importante não eram os centros de poder, comunicação e as entradas da cidade?

— Em um primeiro momento, sim, mas energia também é vital — Quintino explicou.

— Princípios básicos de sabotagem, camarada — apoiou Santa. — Já pensou se a gente não bota guarda nenhum lá, aí nossos inimigos chegam e desligam tudo no meio da luta?

— O que me lembra que temos que manter a central funcionando, não é? — manifestei-me, só agora atentando para esse detalhe. — Quer dizer, enxergar as coisas nós já conseguimos, porque é dia, mas tem feridos no hospital, eles podem precisar ligar alguma máquina ou sei lá...

— Sim. Na verdade, segundo eu entendi, a ideia era manter a cidade inteira funcionando, não? — Quintino emitiu, olhando em volta em busca de aprovação.

— Ah sim.

— Com certeza.

— A última coisa que a gente quer é que o povo pense que viemos bagunçar a vida deles — Praxedes elaborou. — A gente veio é arrumar as safadezas que tinha aí.

— E já vai ser difícil convencer eles disso, do tanto de mentira que vivem ouvindo da gente — concordou Lago, de pernas cruzadas na outra ponta do meu sofá.

— Aqueles integralistas desgraçados e o jornaleco del...

— Então — Quintino chamou a atenção de volta para si, antes que o pessoal dispersasse mais. — Por isso que eu pedi essa reunião o quanto antes. Hoje é domingo e o pessoal não vai sentir tanta diferença, mas é bom que já esteja tudo ajustado amanhã. Que todo mundo possa sair pra trabalhar normalmente, levar as crianças pra escola...

— Mostrar pra eles que tudo mudou, mas nada mudou — Lago sumarizou.

— Que nada mudou pra pior — consertou Praxedes. — Pois finalmente eles têm um novo governo comprometido de verdade com as suas necessidades.

— Bom, e o que estamos esperando? Mãos à obra! — Galvão empolgou-se, remangando seu paletó branco. — Vamos compor esse governo aí.

— Mas falta achar o governador, não? — Quatro sugeriu, num quase sussurro. Ele não fazia parte da direção e por isso não tinha voto nas decisões. Apenas assistia a tudo numa outra cadeira que trouxera, com um filho em cada joelho, privilégio que lhe fora concedido por ter nos cedido a casa.

— Falta achar só o delegado, na verdade, o Garcia. Receamos que ele tenha conseguido fugir. O resto da canalhada toda ou já prendemos, ou sabemos onde está — Quintino contou. — Mas não tem como tirar essas fuinhas de onde elas se enfiaram. O governador foi pra casa do embaixador italiano e o prefeito está no consulado do Chile.

Como parte dos rostos permanecia a olhá-lo com ar de "E daí?", ele explicou:

— Não pode se meter com embaixada, dá uma encrenca ferrada. É como se fosse uma extensão do território estrangeiro, e se a gente atacar o local, vai ser como se estivéssemos atacando aquele país.

— Ah, que besteira! Quem se importa? — Santa explodiu. — Estamos numa situação revolucionária! Se você queria seguir tudo pela lei, não devia ter tomado seu quartel, pra começo de conversa.

Antes que Quintino pudesse retrucar, o ex-carcereiro Lauro começou a falar devagar:

— Mas se é assim, é como se o governador estivesse no território desse outro país, não? Se eu não me engano, pela lei eleitoral...

— Outro! Argh! Quem se importa com a lei eleitoral? É uma revolução homem, uma revolução!

— Eu sei. Se acalme, camarada, e me deixe terminar.

— Termine, camarada — apoiou Macedo, o pequeno tesoureiro dos correios. — A gente estava até agora falando de não assustar o povo, fazer as coisas pela lei na medida do possível vai mostrar a nossa boa disposição.

Esse argumento silenciou as oposições, e Lago prosseguiu.

— Se eu não me engano, tem alguma coisa na lei eleitoral sobre abandono do cargo. Quer dizer, alguém tem que governar, e se não tem governador, e não tem vice e coisa e tal... Mas a gente precisaria consultar um advogado pra ver direitinho a coisa e dizer o fundamento, porque...

— Rapaz, aí eu já não concordo — obstou Praxedes. — Porque nem precisa de lei pra isso, é bom senso. Você mesmo acabou de dizer, alguém tem que governar. Vamos falar pro povo que não tem governador e que a gente é que vai dar as ordens agora e o resto eles deduzem.

Também a nós aquela solução pareceu bom senso, e passamos a debater, então, que ordens daríamos e como o faríamos.

— Bem, primeiramente nós vamos precisar organizar a defesa da cidade — Santa começou a enumerar —, porque não dá para ser ingênuo achando que não vai haver contra-ataque.

— Na situação em que estamos, me parece que a melhor defesa é o ataque — Quintino comentou. — Nossas posições na cidade são excelentes, mas nos isolarmos aqui é o mesmo que dar um tiro no próprio pé. Sei que é muito importante administrar e manter o que já conquistamos, mas é igualmente vital espalhar a Revolução, para a gente não ser encurralado e esmagado antes que a ajuda chegue ou que os camaradas tenham tempo de se levantar nos outros estados.

— Sim — apoiou Praxedes. — A gente tem que botar as garrinhas além dos limites da cidade.

Senti minhas sobrancelhas subirem. Por incrível que pareça, aquela noção óbvia nem visitara minha mente nas últimas vinte e quatro horas. Eu estava tão concentrada nas operações locais que nem sequer lembrava que nossa tarefa não era tomar somente Natal, mas varrer o Rio Grande do Norte inteiro com um vagalhão revolucionário. A consciência de que havia mais ação por vir pôs meu sangue a fervilhar de imediato numa espécie de excitação subconsciente, embora a mente permanecesse cem por cento atenta ao que se passava ali na sala.

— Está certo. Camarada Quintino, você acha que dá conta dessa tarefa? — Santa tornou.

— Farei o meu melhor — respondeu o sargento.

— Ótimo. Então você é nosso novo secretário de defesa. Camarada Quatro — Santa virou-se para o anfitrião —, não teria como me arranjar papel e caneta? Acho que precisamos fazer uma ata dessa reunião.

Acomodando os filhos na cadeira e implorando para que ficassem quietinhos ali, Quatro sumiu no corredor.

— Vem cá, e como é que nós vamos atravessar o estado, hein? — questionou Lago. — Vamos reativar os trens? Tem gente o bastante pra isso?

— O trem vai acabar nos limitando, né, só vamos poder nos deslocar ao longo das linhas.

— Mas você não quer botar as tropas para marchar a pé, né? Acaba o mês e não vamos ter chegado do outro lado do estado.

— Eu estava pensando em requisitar uns carros — Quintino sugeriu timidamente.

— E como é que o pessoal vai trabalhar?

— A maioria de quem tem carro nem trabalha — lembrou João Galvão. — É só uma questão de enfiar todo mundo no bonde. Sinceramente, não faria mal para esses ricaços darem umas voltinhas no meio do povo.

— Senhoras e senhores, temos aí nosso secretário dos transportes — disse Santa, rindo.

— Olha que eu aceito, hein?

— Eu ri, mas não estava brincando, não. Se continua firme a ideia de não deixar a cidade parar, alguém pra cuidar da logística vai ser fundamental. Eita!

A exclamação viera por conta do lápis e do folheto amarelado que Quatro acabara de lhe entregar.

— Dá para usar o verso né? Foi o único papel vazio que eu achei.

— Acho que dá. Qualquer coisa a gente passa a limpo — Santa afastou um pedaço do mapa à sua frente na mesinha de centro e apoiou ali a folha que ganhara. — Então, já temos secretarias de defesa e de transportes. O que mais precisamos?

— Comida — Praxedes disse.

— Ai, vocês me desculpem a demora, pessoal — Quatro começou a se justificar de repente. — Já era pra Zefinha ter trazido, mas ela teve um probleminha de última hora, descobriu que a gente estava sem farinha e os armazéns da redondeza ao que parece estão todos fechados...

— Não, não, camarada — Praxedes interrompeu-o, erguendo uma mão. — Eu quis dizer para a cidade. Temos que garantir justamente que os armazéns abram amanhã, porque povo com fome não dá pra controlar.

— Ah — Quatro respirou aliviado, sentando-se novamente com os filhos no colo. — Sim, sim. A cidade funcionando, etcetera, né?

— Isso. Temos que providenciar pão, água, energia, o básico, né? Afinal é pra isso que queríamos uma revolução, pro pobre não ter falta de nada.

— Então, Praxedes, você que é mais articulado com o operariado da capital podia cuidar disso, não acha? — Santa sugeriu. — Conversar com o pessoal do sindicato da eletricidade... Até pra manter o bonde circulando vamos precisar da colaboração deles.

— Claro, com os trabalhadores vai ser moleza. Problema vai ser convencer a pequeno-burguesada aí a manter mercadinho aberto — respondeu o sapateiro. — Devem estar até agora se tremendo inteiros debaixo da cama. A mania de riqueza desse povo é impressionante. A gente diz que vai confiscar e redistribuir a propriedade dos ricos, eles acham que a gente está falando do anel de ouro que ganharam da vó e que vivem colocando no penhor.

— Mas nós não vamos abolir a propriedade privada ainda, não é? — perguntou Macedo, parecendo levemente alarmado.

— Não, isso é coisa pra se fazer a nível de país — Santa respondeu. — Deixe que o General Luís Carlos Prestes tome isso a seu cargo, quando for a hora.

— A gente acabou de dar os primeiros passos — comentei. — Ainda tem muita água pra rolar debaixo da ponte até atingirmos o comunismo, e na verdade até aprontarmos o país para uma revolução socialista...

Ao perceber pelos rostos meio perplexos da maioria dos meus colegas que eu estava enveredando por um ramo pouco encorajador da teoria leninista, e que ninguém precisava daquilo agora, desviei o assunto.

— Mas camarada Macedo, e se fôssemos abolir a propriedade privada hoje? Algum problema? — perguntei, severamente.

— Pra mim nenhum, eu nem tenho nada mesmo — o homenzinho soltou uma risada bufada. — É que a gente estava falando de não assustar as pessoas, e isso aí ia assustar com certeza.

— Eu proponho assim: se formos tomar alguma providência, que seja só contra os coronéis — Lago disse —, porque eles já vão ficar contra a gente de qualquer jeito.

— Me vejo obrigado a concordar — Praxedes apoiou. — E do povo, o que a gente precisar, a gente compra.

— E onde que vamos arranjar o dinheiro? — Macedo indagou.

— Disso vai cuidar você — Praxedes retrucou.

— Eu?!

— Sim, você é tesoureiro, tem mais experiência em mexer com grana que qualquer um de nós. Creio que podemos te confiar essa importante tarefa?

Macedo paralisou um instante, assustado com a responsabilidade, mas a palavra "importante" o seduziu direitinho, e ele aceitou o encargo, com o peito inflado.

— Então nós temos um secretário de abastecimento e um secretário de finanças também. Muito bom. Falta cobrirmos alguma coisa, será? — Santa ergueu para nós um olhar intrigado, após anotar os nomes e cargos dos camaradas no verso do panfleto.

— Não era melhor darmos um jeito nisso aí? — Lago opinou, apontando para o panfleto. — Quero dizer, uma ata de nomeação do governo rabiscada a lápis num papel qualquer? Não parece o tipo de coisa que vai fazer o povo nos respeitar.

— Ei, era só o que eu tinha em casa, me desculpe — Quatro se ofendeu.

— E serviu ao seu propósito! — Lago apaziguou rapidamente, gesticulando. — Mas acho que precisamos de um mínimo de formalidade para mostrar para eles que sabemos o que estamos fazendo, sabe? Para não passarem direto das burocracias para o nada absoluto e acabarem pensando que aqui virou a casa da mãe Joana.

— Acho que você está certo — apoiou Praxedes. — Afinal, o próprio Partido sempre emite as ordens formalmente e coisa e tal.

— Tudo bem, você pode cuidar disso? — Santa perguntou a Lago, que anuiu. — E já que a ideia é impedir a cidade de virar a casa da mãe Joana, você podia cuidar do xadrez, também, não? Punir os excessos de quem se passar, colocar os desordeiros pra sentar lá um ou dois dias e pensar no que fizeram...

— Tomar conta dos nossos prisioneiros — lembrou Quintino. — O Eliziel está cuidando disso, mas eu gostaria que ele ficasse livre, preciso da sua ajuda pra reorganizar as tropas.

— Certo... — Lago concordou. Voltar à carceragem, um trabalho que ele nunca apreciara muito, jogou umas gotas de água fria em sua empolgação.

— Temos um secretário do interior e da justiça — Santa anunciou. — E a Camarada Anita nós vamos nomear para...

Ergui a mão para interrompê-lo.

— Camarada, perdão, mas eu não gostaria de me ocupar com o governo da cidade agora — obstei. — Se ainda vai haver luta em outros fronts, sinto que meu treinamento me coloca em posição de ser mais útil lá.

De repente, senti-me no meio de um aquário. O grupo todo me encarava piscando e meio boquiabertos, como peixes.

— Tem certeza, camarada? — perguntou Santa, cautelosamente. — Eu estava pensando que, como você tem experiência rodando o jornalzinho, poderia se encarregar das comunicações oficiais. Trabalhar junto como o Lauro como secretária de agitação e propaganda.

Senti os músculos do meu rosto se retraírem. Sério que queriam me colocar atrás da máquina de escrever de novo? Com todo o meu pelos escritores e jornalistas, eu não tinha a mínima vontade de me contentar com a narração enfeitada de proezas revolucionárias alheias se havia a alternativa de protagonizar as minhas. Corria-me sangue e não tinta nas veias, puxa! E era melhor aquela sugestão não ter nada a ver com o meu sexo, porque... Respirei fundo e respondi com gravidade:

— Tenho, camarada. Como eu disse, sinto que...

— Acho que a Camarada Anita será um reforço importante para as tropas — Quintino pronunciou-se, ajustando os óculos. — Cumpriu todas as ordens com fidelidade e eficiência esta noite e tem o pensamento rápido. Gostaria de contar com o apoio dela na próxima etapa.

Dirigi-lhe um pequeno sorriso de gratidão. Santa deu de ombros e escreveu meu nome numa listinha menor ao lado da principal, em que já constava o Cabo Eliziel. Praxedes falou:

— Qualquer coisa a gente pede pro pessoal de Mossoró cuidar da parte de comunicação. Aposto que eles vão reclamar que não ficaram com cargo nenhum quando virem a composição da junta.

— Não posso fazer nada se eles não estão aqui — Santa respondeu, rabiscando espirais no canto do seu papel.

— A hora em que a gente conquistar Mossoró, eles ficam responsáveis pela região — Lago sugeriu. — É até melhor assim, porque já estão familiarizados com as encrencas locais. Bem, já temos tudo o que precisamos, então? — perguntou para o grupo.

— Não precisamos de um presidente? — perguntou Macedo. — Alguém que possa dar as orientações gerais e o voto de Minerva se ficarmos em desacordo?

— Eu indico o camarada Santa — João Galvão interpôs rapidamente. — Olha só, ele dirigiu essa primeira reunião, já está até ambientado.

Concordâncias vieram de várias bocas da sala, mas Santa ergueu a mão e negou enfaticamente.

— O Partido me mandou pra ajudar vocês, não pra assumir responsabilidade nenhuma.

— Pois estamos pedindo que nos ajude com a presidência — Praxedes replicou.

— O que eu quero dizer é que, assim como a direção me mandou pra cá, podem me mandar pra outro canto de uma hora pra outra. Quem sabe onde mais vai estourar a revolta nos próximos dias? Eu tenho que ficar com os pezinhos livres. E daí se me chamarem e eu tiver que me bandear pra Goiás ou pro Maranhão, vou deixar vocês com a junta descabeçada? Não vai dar certo isso, não.

— O homem tem um ponto — Macedo murmurou.

— Além do mais, a junta tem cinco pessoas, nunca vai dar empate nos votos.

Convencidos, repassamos rapidamente as decisões da sessão e programamos as atividades práticas de cada um para as próximas horas. Quando emergimos do corredor em grupo, tagarelando animadamente, o relógio da cozinha nos recebeu com os braços em L, marcando as nove horas, para minha surpresa. Decidirmos tantas coisas em apenas uma hora era um feito inédito na minha estadia em Natal, e não pude deixar de considerá-lo indício de amadurecimento. A urgência da prática nos unira em torno da causa maior de fazer a Revolução funcionar, relegando ao esquecimento divergências teóricas secundárias, o que era um inafastável prenúncio de sucesso.

Não fui a única a me surpreender com nossa objetividade e eficiência.

— Mas já vão? — exclamou Zefinha, ao nos ver lotar a cozinha. — Tomem um café, pelo menos, não me façam essa desfeita! Acabei de coar, enquanto o bolo esfriava.

Os aromas que já vinham nos provocando fazia uns cinco minutos impediram-nos de questionar a veracidade dessas afirmações. Outro efeito desses cheiros foi fazer todos recordarem da última refeição que haviam posto na boca; a maior parte de nós não comia desde o atrapalhado almoço na casa de Praxedes na véspera. Mais uma vez, porém, demos prova de grande resolução, aceitando apenas um gole de café e um naco da maravilha cremosa de fubá que repousava no centro da mesa, cercada por uma escolta de pães, biscoitos, cuscuz e pedaços de jerimum fritos. E mesmo esse pouquinho aceitamos apenas porque a mesa farta provavelmente devia ter sangrado as finanças do ferroviário; não podíamos ignorá-la de todo sem humilhar o camarada. Sugerimos que ele distribuísse o restante dos alimentos entre as tropas que ainda cercavam o quartel da Polícia. Quatro se empolgou com a missão e começou imediatamente a procurar potes para transportar a comida. João Galvão tentou ficar para trás para ajudá-lo, prometendo aparecer no local combinado na hora da proclamação da vitória, mas lembraram-no de que ele tinha que procurar Epifânio para encarregar o motorista da requisição dos carros que usaríamos para levar a revolução para o interior do estado. Então ele partiu conosco, não sem antes surrupiar mais um pedaço de bolo.

Pelo caminho, fomos discutindo os últimos detalhes e projetando ações posteriores, para quando as missões imediatas fossem completadas. Ao chegar na Ribeira, nos separamos. João Galvão e Macedo foram atrás dos motoristas, Quintino partiu com Santa para vistoriar os lugares conquistados e passar instruções de conservação do posto, e eu fui para a minha casa, acompanhada de Praxedes e de Lago, a fim de apanhar a máquina de escrever. Apesar de eu não querer permanecer sentada atrás dela durante toda a revolução, não custava ajudar, e nos sentamos na cozinha para redigir algumas ordens urgentes e o manifesto que seria lido ao povo.

Às dez horas, a Junta estava reunida novamente na praça em frente ao 21º BC, desincumbida de suas tarefas urgentes. Cogitamos confeccionar faixas com nossas palavras de ordem — "Pão, terra e liberdade" e "Todo apoio ao Cavaleiro da Esperança" — para pendurar no muro do quartel durante o momento solene, mas não daria tempo: os estafetas que enviáramos para convocar o povo à praça já voltavam, seguidos de muito mais gente do que o esperado. Os indivíduos fardados com um ar que mesclava triunfo e cansaço constituíam apenas metade do ajuntamento que tapou todos os buraquinhos do terreno; junto a eles tinham vindo donas de casa, velhos, meninos, moças e trabalhadores com ar curioso, na sede de entender o que acontecera durante a noite.

Recebendo acenos de encorajamento dos camaradas quando o ajuntamento parou de crescer, Praxedes subiu à amurada do quartel e tirou nosso manifesto do bolso da camisa.

— Ao povo! — ele proclamou, com seu característico sotaque local, após limpar a garganta.

O sapateiro fora eleito para essa função por ser o mais proletário do nosso núcleo. Na cidade, todos sabiam de sua atividade política sempre consistente na defesa dos trabalhadores, que datava de mais de uma década. A mera presença de Praxedes no palanque improvisado passaria aquela parte da mensagem que queríamos entregar que não dava para transmitir em palavras. "Esse é gente como a gente", eu li nos olhos dos populares que contemplavam o conhecido sapateiro, enquanto ele discursava. "Passa os mesmos perrengues".

— O Rio Grande do Norte, desafrontado dos dias amargos em que viveu tiranizado por um governante forjado na prostituição dos princípios republicanos de outrora, hasteia-se soberbo, como flâmula redentora no setentrião brasileiro, abrindo caminho largo no solo abençoado da Pátria à entrada triunfal do Cavaleiro da Esperança: Luiz Carlos Prestes.

Como soía acontecer, o nome de Prestes despertou algum reconhecimento positivo na multidão. Seguiram-se aclamações que nos encorajaram.

— Ao seu lado, erguem-se, até agora, como mais duas esplêndidas vitórias já conquistadas com sangue, como dois gigantes invencíveis: Pernambuco e Paraíba.

Agora, este ponto era... eu não diria que ficção, mas mais esperança do que fato. Não tínhamos notícia de Pernambuco ou de qualquer outro estado desde o dia anterior, até porque a central telefônica e telegráfica fora temporariamente desativada como medida de cautela, logo após eu mandar aquele telegrama no dia anterior. Fui voto vencido sobre a inclusão desse trecho no manifesto — contar vitória antes do tempo era essencialmente avesso à minha personalidade. Existe uma tênue linha que separa o hábito de criar castelos no ar do desvario que nos leva a crer que eles existem. Mas Lago e Praxedes argumentaram que aquela era a ordem natural da nossa conspiração; que não havia motivos para desconfiarmos da fidelidade de nossos camaradas; que se nós tínhamos conseguido, eles provavelmente também tinham, até porque contavam com mais forças militares e armas que nós — e foi assim que Pernambuco e Paraíba também ganharam coroas nas nossas festividades.

— Pão, terra e liberdade é o nosso lema — prosseguia Praxedes. — É a vitória do socialismo sobre a decantada liberal-democracia dos políticos profissionais; é a vitória da Aliança Nacional Libertadora; é a vitória de Carlos Prestes; é a vitória do direito do mais fraco, que nunca terá direito! Direito ao que é seu, usurpado pelo mais forte; direito ao Pão com suficiência; direito às Terras; direito à Liberdade.

— Pão, terra e liberdade! — clamou João Galvão, um pouco à minha direita, com lágrimas nos olhos e agitando o braço no ar. Nós da Junta (e agregados) o ecoamos e foi com o coração quentinho que assistimos a maior parte da audiência ecoá-lo também.

Outros vivas a outras pessoas e instituições se seguiram, e Praxedes esperou cessarem naturalmente antes de continuar:

— E com este postulado, com estas três palavras escritas com fogo na grandeza do nosso idealismo, Pão, Terra e Liberdade, com essa bravura comprovada no antemanhã esplendente de hoje, marcharemos confiantes para o abraço fraternal dos irmãos do Sul. Nas nossas pegadas, seguindo o nosso passo e o nosso exemplo, virão a legendária Amazônia, o valente Grão-Pará, o Maranhão da inteligência, o Piauí heroico, o Ceará escaldante de sol e de idealismo.

"Agora sim expectativas realistas. Agora sim narração na ordem certa", aprovei, com um discreto aceno para mim mesma, antes de virar a cabeça bruscamente para olhar por cima do ombro direito ao ouvir um barulho estranho daquele lado.

João Galvão cobrira o rosto com as mãos e chorava convulsivamente, os ombros arqueados sacudindo como se fosse carnaval, sob o olhar enternecido dos camaradas. Eu o teria confortado com um abraço fraterno, se não receasse ser lançada amurada abaixo por aquelas fortes sacudidas. Praxedes fez uma pausa e respirou fundo, ele mesmo com lágrimas nos olhos, antes de se dirigir ao amontoado que continha o maior número de fardados:

— Soldados, cabos e sargentos do 21º BC, que fostes valentes como as vossas próprias armas no início edificante da derrubada de um regime que apodreceu de todo: o Rio Grande do Norte tudo espera de vossa bravura.

E então, mudando a direção do olhar:

— Mulheres operárias, trabalhadores, gente simples e boa que experimentastes, ontem e hoje, a vossa resistência na barricada, continua como indômitas sentinelas na defesa santa das reivindicações nacionais.

A agitação cresceu, já que este segundo grupo elogiado era mais abrangente.

— Povo! Conquistastes com sangue um direito; Rio Grande do Norte, sois o marco iniciante, a fé, o orgulho de uma geração redimida.

— Viva o Rio Grande do Norte! — gritou uma voz na multidão.

Uma onda de ovações bairristas se seguiu a esta abertura, mas nenhum de nós, revolucionários provenientes de outros estados, se incomodou com ela. Estávamos por demais ocupados na contemplação extasiada dos rostos que forravam a praça. E, de mais a mais, os potiguares tinham feito por merecer. Um pioneirismo daqueles não era coisa pouca.

Nosso Secretário de Abastecimento limpou a garganta mais uma vez, tentando modular a voz embargada, antes de enunciar o grand finale.

— A Aliança Nacional Libertadora assegura garantias plenas a todos os cidadãos, sem distinção de credo político ou religioso, recebendo de braços abertos a todo aquele que deseje de boa-fé cooperar na grande obra reconstrutiva que se alicerça.

— Viva a Aliança Nacional Libertadora! — Lauro Lago incitou.

— Viva Luís Carlos Prestes! — bradou Quintino.

— Viva o povo brasileiro! — eu gritei, sem conseguir me conter.

E acho que também o meu ufanismo merece perdão. Naquele momento, tudo parecia possível. Pareciam-me capazes de qualquer coisa os corpos gotejantes de suor que gritavam e gritavam, sem temer a desidratação ameaçada pelo ataque impiedoso do astro celeste àquele terreno despido de árvores que servissem de abrigo.

Quem teimava com o sol cavador de crestas, ressecador de torrões no solo do sertão, e ainda assim conseguia arrancar dele alguns frutos, porque haveria de temer Getúlio ou qualquer outro governante?

Sim, eles tinham armas, e juízes e a imprensa para mascarar sua violência. Sim, eles repetidamente nos sufocavam, mas nós brotávamos de novo, com nossa força correndo de dentro, tal qual a água nos cactos da caatinga. Sumíamos às vezes, ocultando nos corações o desejo de justiça como se ocultam entre as florestas os índios amazônicos, deixando que a mata lhes sirva de escudo, até o tempo de reivindicar o que é seu. Resistíamos à usurpação do nosso tempo nas fábricas e da nossa liberdade nos cafezais e canaviais.

O povo tinha a alma torrada e cheia de sulcos, mas a resistência do betume dos novos prédios da cidade, e estava acostumado ao trabalho duro. O solo era, sim, fatigado e castigado, mas extremamente fértil, e, naquele momento, eu não conseguiria conceber outro melhor para firmarmos os alicerces de uma nova ordem social.

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