A Colina Vermelha

By clairo92

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❝ Ambos sabíamos os rumos que deveríamos tomar antes de tudo começar, a dor em mim, não me afetou tanto como... More

PRÓLOGO
1. DECLÍNIO
2. UTOPIA
3. TROCA DE OLHARES
4. ROMEU
6. CONTRASTE
7. DECODIFICAR
8. DESPERTAR

5. CONFLITOS

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By clairo92

Eu não havia dormido o suficiente, acordei de vez em quando me revirando na cama e quando finalmente os raios de sol brilharam pela janela suja de meu pequeno quarto, afastei a persiana me sentando na cama e me inclinando para ver a janela. Era de vista para a ruela de pedregulhos, era muito cedo ainda; mas seria melhor acordar cedo o suficiente do que ter que encarar meus sonhos dispensáveis e instáveis em que eu não sabia separar a irrealidade da verdade.

Após me aprontar decidi seguir o percurso a pé, pois eu já havia decorado todo o caminho da janela do ônibus e eu precisava clarear a mente, Fawkes era razoavelmente grande; cercado por campinas que agora estavam cobertas pela névoa de fim de ano, o tempo caira muito. E eu mal percebi que já tinha se passado duas semanas desde o teste. Me apertei no suéter azul marinho enquanto eu me afastava do bairro aconchegante mais pobre aonde eu morava e caminhava pela estrada de pedras na calçada - de vistas a campina - que liga os bairros residenciais ao centro da cidade. Consequentemente meu pé iria doer mais por estar indo a pé, mas eu tinha tempo suficiente para deixar ele descansar quando chegasse, fiquei olhando a paisagem ao lado o finito mar verde de folhagens as cores não tão vívidas tomavam o acinzentado do inverno, torci a boca enquanto me encolhia em meu suéter. Minha respiração em contato com a temperatura ambiente soprava fumaças de calor em fusão com o ar frio. Enfiei as mãos no bolso do jeans surrado e continuei andando com meu tênis confortável que eu adorava por ser menos doloroso do que as sapatilhas masoquistas que eu vestia.
Me passou pela cabeça todo o ensaio, já havíamos passado para outra cena e eu não aparecia tanto mais, eu fiz uma aparição e o resto fiquei atrás, junto as outras garotas. Mas a peça havia muita divergência de sexo, a maioria dos personagens eram homens e com isso as mulheres foram chutados a plano de fundo. Eu não esperava um papel melhor, me conformei de conseguir fazer um papel no ballet. Era complicado demais entrar e eu não iria jogar pelo ralo a chance.
Caminhei pelo resto da longa e gélida estrada até avistar de longe os monumentos do centro da cidade, eram apenas uns três quilômetros de distância entre o bairro e o centro da cidade, mas me pareceu absurdamente uma década.
A sensação era libertadora por ora, poder escolher todas as minhas decisões, achei que me mudar seria pior do que realmente é. Decido que gosto de Fawkes. Andei pelas ruas do centro tentando me lembrar aonde exatamente seria, atravessei uma ponte que cortava a cidade ao meio era uma única ponte de arquitetura branca com vigas e metais suspensas em uma arquitetura moderna abracei meu corpo em uma cruzada de braços e permaneci assim até atravessar toda a ponte, os carros e ônibus passavam pela ponte quase que como em sincronia, todos organizados e controlados atravessei a ponte enorme e segui pela rua em que o ônibus fazia curva para um trevo e quase fiquei perdida até achar um prédio de tijolos conhecido, a cidade era toda antiga, as estruturas ali era clássicas feitas de tijolos e pedras muitas das vezes, apenas reformada mas a aparência era exatamente a mesma a 100 anos atrás. Isso eu podia jurar com meus dedos cruzados.

Quando entrei pela rua vi pela esquina uma loja de discos e ao lado o Porky's, após decidir se deveria entrar ou não, decido que sim.
Entrei pela porta e senti o calor por causa do aquecedor e me senti grata por isso, de longe no som do bar e lanchonete tocava uma música do The Jam. Me senti confortável o suficiente e tirei meu suéter ficando apenas de uma blusa de manga comprida amarelo canário e joguei os cabelos por trás das costas afastando as mechas castanho claro.
Quando me sentei ao banco alto junto ao balcão e me inclinei para frente com as mãos como suporte e deixei o suéter entre as pernas e fui atendida pelo garçom.
- Como posso ajudar? - Ele concertou a boina por sobre o cabelo preso em um elástico, em cachos escuros.

- Um café puro. - Forcei um sorriso mas imaginei meu rosto em minha cabeça, a expressão cansada o suficiente e desejei não ter forçado um sorriso.
Enquanto ele se virou para preparar o café fiquei brincando com a malha do tecido do suéter em meu colo, ouvi ao meu lado uma cadeira se mexer e então virei o rosto.
- Café? - A voz melódica disse e eu me assustei virando automaticamente.

Soltei a malha.
Charles me encarava com um copo de isopor em mãos.
- Eu tenho que me manter acordada. - Confessei, demorando um tempo para processar tudo.
- Finalmente achei alguém que também aprecia o sabor dele aqui. - Ele escorou um braço no balcão, com o outro levou o copo de isopor aos lábios e continuou me encarando com o rosto aberto em um sorriso, fazendo expressão nos olhos.

- Você também chegou cedo. - Eu disse.
- Engraçado, também não consegui dormir ultimamente. - Ele disse deixando o copo em cima do balcão e desviou o olhar só para olhar o copo por poucos segundos até sua atenção voltar em mim.
- Eu não me lembro de ter dito, que eu não consegui dormir. - Ponderei.

- Não explicitamente, mas pressupondo que não conseguiu. - Ele sorriu, com os tons de nós dois acumulados no "não".

O garçom voltou entregando meu café e eu peguei ele abrindo a tampa deixando escapar o calor excessivo da bebida, nunca gostei de meu café muito quente.
- Está me evitando? - Ele franziu o cenho.
- Por que estaria?
- Me diz você.
Fiz uma pausa e fingi beber o café mas não encostei a boca por ainda estar fumegando.
- Por que me encarou aquele dia? - Me arrisquei.
- Porque gostei do que vi.
- E o que você gostou?
- De ver você dançar.
- De me ver cair. - Eu disse, e revirei os olhos.
- Por que me encarou também? - Ele perguntou com o cenho franzido e um sorriso no rosto.
- Porque você me encarou primeiro, oras.
- Você encarou primeiro. - Ele disse de bom humor.
- Isso não faz sentido. - Eu não estava para brincadeiras. Bebi um gole do café que já estava mais ameno.

Eu havia milhares de perguntas para fazer a ele.
- Por quê você estava na sala do Diretor Culbert? - Avancei a Rainha no tabuleiro de xadrez.
- Por quê você queria que eu estivesse lá? - Ele disse, bebendo o café com expressão despreocupada.
- Responda, Charles. - Eu disse batendo a mão soltando um barulho abafado, eu estava farta.
- Não há razão para isso, Savannah. - Ele enfatizou meu nome.
- Savie. - Eu disse.
- Você prefere Savie. - Ele pronunciou, e olhou para cima nostálgico. - Me lembro.
- Obrigada. - Eu falei em tom baixo, proposta a negociar.

- Você também não é dançarino, como conseguiu o papel principal? - Eu perguntei, agora com a rainha perto de mais.
Ele riu olhando para baixo, como se fosse uma piada.
- Eu diria que nós estamos na mesma estaca. - Ele disse, movendo uma das torres.
Bebi o café, e então ergui o olhar; me senti ofendida.
- Passei anos para me formar em Dança Clássica. - Disse.
- E eu em teatro, sou ator. Estamos em um Ballet de Repertório, tanta surpresa por quê? - Ele avançava.
- Porque é uma dança, isso não faz sentido.
- E o que faz sentido para você? - Ele não tinha mais o sorriso amistoso.
- Eu não sei. - Eu disse, havia muitas perguntas mal respondidas. - Isso é tudo que eu vou ter? Mais filosofia.

Ele bebeu o café.
- Por enquanto. - Ele recuou o rei e por enquanto havia uma fortaleza impenetrável alí. Charles se levantou e chamou o garçom de cabelos amarrados e lhe entregou uma nota de duas libras esterlinas. - Esse é o meu e o da senhorita aqui; fique com o troco.
Charles passou por mim, por um momento achei que fosse parar e sorrir para mim, mas ele continuou andando. Encarei o garçom que me fitava e ele desistiu indo atender outra pessoa.

******

Eram muitas perguntas que eu não consegui respostas - e também não dei - eu precisava me concentrar mais, precisava formular melhor as perguntas, senti que estava entrando em território desconhecido quando começamos o jogo incansável de perguntas sem respostas, ocasionalmente um de nós cedia. Terminei meu café e decidi chegar mais cedo na Academia que ficava do outro lado da rua, Charles não estava na visão que eu agora tinha da rua, e quando entrei pelos salões também não o vi, decidi perguntar a uma das recepcionistas.
- Sabe me dizer se Charles Hendeston já chegou? - Ela ergueu um cenho, desconfiada. - Combinamos de chegar mais cedo para treinar os passos, sou a Julieta.
Eu menti, imitando a emoção que Debbie falou quando me contou sobre o papel. Ela pareceu cair na mentira, sua expressão ficou limpa.
- Ele subiu ao segundo andar com o Diretor Culbert, devo informar que chegou?
- Não. Deve ser importante. Não vou atrapalhar.

Ela parece agora ter visto que cometeu um engano, um engano rude. Mas tentou despistar a expressão.
Caminhei sozinha até ao estúdio e fui até o vestiário, aproveitei estar sozinha e troquei de roupa primeiro e depois prendi o tutu e uma sapatilha de meia ponta ( elas são minhas preferidas ), mais velha para treinar e me pus de pé indo até o estúdio enorme e magistral sozinha. Me senti livre, como em um oceano sem peixes e em um céu sem aves, comigo apenas. E a sensação era ótima, girei o corpo erguendo uma das pernas arqueadas e os braços erguidos, a posição clássica. Prossegui para um Rond de jambe à terre. Deixei meu pé deslizar formando um D e precisei das barras para me segurar quando mantive a posição de uma das pernas erguidas no ar, eu precisava mostrar a mim mesma que eu conseguia fazer a apresentação que treinei para o dia do teste.
Cantei baixinho as letras de uma cantiga de ninar enquanto executava, girei, uma vez, duas vezes, três vezes, e não parava a perna direita levantada e abaixei a tempo de mediar meu outro pé, ambas as mãos na altura do peito esticadas e curvadas uma a outra mas sem se tocar.

Eu tenho, que fazer.
Eu preciso fazer.
Eu vou fazer.

Fiz um adágio exatamente como naquele dia, sustentei as pernas num ar num movimento simples e delicadas e mantive. Não havia Charles Hendeston para me fazer derrubar agora. Eu estava perfeita.

Fiz mais uma porção de passos treinados no qual tanto me atormentou a noite após o teste, e que por acaso eu treinei bastante. Contornei o estúdio a ponto de fazer o grand finale e então joguei meu corpo com impulso em um salto, atirei minhas pernas esticadas ao ar; fazendo um grand jeté.
E naquele momento livre, me senti viva. Não precisava de respirar ali naquele momento para me sentir viva, eu só precisava finalmente aceitar que eu consegui a vida que sempre quis, e isso era incrível. A dança.
Quando pousei, com ambas as pernas delicadas e saltitando, recuperei o equilíbrio em uma barra e deixei as mechas caírem no rosto se soltando do rabo de cavalo e abri os olhos respirando fundo, sem ar.
Me virei e eu tinha plateia, fiquei surpresa e de início me senti envergonhada e depois veio a surpresa como um balde gelado de água.
Madame Fleury me olhava, debaixo do óculos quadrado e com um cotovelo apoiado em um braço deitado encostado na barriga e o cigarro na ponta do dedo do braço seguido.
E ouve um imprevisto, aplausos. Algumas meninas aplaudiram e largaram as bolsas aonde estavam e se aproximaram, me parabenizando, parece que eu havia mudado a visão de derrota que todos tinham criado de mim, e me senti melhor por isso. Me senti bem, e sorri. Eu sorri para elas que me cumprimentaram, agora realmente com entusiasmo. Debbie não estava lá, mas reconheci Amy e Carter, ela me deu um abraço.
- Caramba, Sav! foi encantador a dança.

- Eu estou trabalhando nisso ainda.

- Se você tivesse feito isso no dia do teste, estaria como Julieta. - Sorriu Carter e vi que ele estava sendo franco.
- Aonde está Debbie? - Perguntei caçando ela no meio das meninas que conversavam perto de mim.
- Ela estava aqui... - Disse Amy, e vi que ela também perdeu Debbie de vista.
Por que?

Carter torceu a boca e olhou para Amy com uma expressão desconhecida. Ele tinha os mesmos cabelos cor de fogo da irmã, mas eram um pouco mais escuro e ele tinha uma esbelta costeleta.

Eles se afastaram quando viram algo atrás de mim, me virei confusa e vi Madame Fleury que já tinha apagado o cigarro no cinzeiro emcima do piano de cauda e ela apertou os óculos.
- Venha mon cher. - ela disse e eu me aproximei abraçando meu corpo e olhei para Amy e Carter se afastando e falavam algo em confidências. - Agora entendo o quê Lucius vê em você.

Ela deu uma pausa enquanto nós andávamos para um lugar longe dos demais dançarinos no grande salão, que ficavam para trás, indo ao vestiário.
- Encontrei um rouxinol. - Ela se referiu a mim.

Eu podia jurar que ela sorriu, e por um segundo, pude ver sua verdadeira expressão desconhecida, escondida pela máscara ranzinza e pela fumaça dos cigarros. Mas ela voltou a fechar a expressão, mas eu concordei com meu subconsciente de que ela tinha torcido a boca em uma espécie de sorriso.
Também decido que gosto de Madame Fleury.

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