Dias Vermelhos

Por erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... Más

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 75 - A ratoeira

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Por erikasbat

Olá, pessoal!

Hoje, 19/01/19, é aniversário de uma pessoa muito especial, um grande amigo e um dos que mais me apoiam na escrita de "Dias Vermelhos", o castilhojac , e eu quis fazer essa homenagem a ele postando um dos capítulos mais importantes da Parte 2 justo hoje.

Parabéns, Arty! Espero que você seja sempre muito feliz, sua criatividade sempre floresça, e que você permaneça essa pessoa tão amável, inspirada e inspiradora. Feliz 22.

Sem mais delongas, vamos nos transportar para 23 de novembro de 1935 agora.

***

Natal relaxava, embalada em azul escuro, nas primeiras horas após o anoitecer. A cidade não compartilhava do alvoroço que testemunhara naquela tarde, em uma de suas casinhas periféricas. Também fingia não ver as sombras que deslizavam sorrateiramente de todos os lados em direção ao bairro da Cidade Alta, cruzando com uma massa de gente bem vestida que se deslocava para assistir a uma sessão solene no Teatro Carlos Gomes. Formatura dos alunos de Contabilidade ou outro curso almofadinha do tipo.

Alinhados como se também fossemos à cerimônia, eu e Astrakhanov passeávamos pela praça próxima ao quartel do 21° Batalhão de Caçadores, mais uma vez nos fingindo de casal apaixonado imerso nos olhos um do outro, quando na verdade nossos quatro ouvidos estavam sintonizados na caserna. Eu só esperava que as batidas estrondosas do meu coração não me impedissem de ouvir o sinal.

— ...já não era para ter soado? — arrisquei um olhar nervoso por sobre o ombro para o quartel.

Astrakhanov conferiu discretamente o próprio relógio de pulso.

— Não... ainda são sete e vinte e cinco — cochichou. Alteando a voz, continuou nossa prévia conversa: — E mais tarde podemos ver "Quente como pimenta". Ouvi dizer que hoje é a última vez que passa no Cine São Pedro.

— Hm... acho que prefiro "O preço do silêncio" — respondi, sem conseguir impedir meu pescoço girar de novo para onde não devia. Astrakhanov pegou meu queixo e voltou meu rosto para o dele com firmeza.

— Como quiser, querida — respondeu. E, entredentes: — Se acalme.

Concordei com a cabeça, e firmei o olhar no passeio à nossa frente. Era muito difícil me manter andando em linha reta, no passo tranquilo do meu disfarce, quando eu me sentia comprimida entre duas forças descomunais. O medo, quase pânico já, estimulava minhas pernas a fugir. Ao mesmo tempo, uma espécie de excitação me empurrava inteira para os lados do quartel, instilando gotas de adrenalina em minhas veias como um tira-gosto.

"De onde isso veio tem muito mais", sussurrava a Revolução.

Eu consegui me segurar no percurso, mas não fui capaz de me forçar a manter uma conversa. Os pensamentos me assaltavam como se eles mesmos formassem um batalhão coeso dedicado a me confundir, cada um atirando para um lado. Meu cérebro trabalhava de forma particularmente perspicaz, pois não lançava apenas imagens ou frases: resgatava odores, sons e sensações, até alguns que eu cria sepultados para sempre. A risada esquisita da irmã mais nova, o cheiro do grão de café no pé, o toque dos braços delgados de Pavel, neve derretendo na língua, os cantos da boca da minha mãe abaixando quando ela ficava brava... era engraçado, porque a expressão se formava de imediato, ela nunca conseguia disfarçar. E pensar que, dentro de instantes, uma bala poderia me privar para sempre de todas essas coisas.

Bem, e eu já não estava privada delas de qualquer jeito?

Esta onda de pensamentos foi rapidamente sucedida por outra, dessa vez sobre o futuro. Mas não sobre o futuro glorioso pós-insurreição — quem dera. Lembrei-me dos relatos que ouvira em Moscou sobre a Revolução de 1917. Alguns detalhes bem crus, que eu tentava banir da mente sempre que pensava no nosso levante, mas que, na iminência dele, era impossível contornar. Detalhes técnicos, feridas, amputações e mortes. Não só as que eu veria, mas as que eu, eventualmente, causaria...

"Acertar em um ser humano, ciente de que isso provavelmente vai custar a sua vida, é uma coisa muito diferente, Maria."

Olhei de soslaio para Astrakhanov, o autor daquela frase, imerso em seus próprios pensamentos.

"...uma guerrilheira sofrível."

Na época a frase me ofendera, mas, olhando para trás, ela não estava longe da verdade. Eu descobrira nos últimos meses que nenhum curso consegue nos preparar para toda a variedade de exceções e imprevistos da prática. No treinamento, você está concentrado, com orientação, prazos e ambiente adequados para realizar as tarefas que constituem o núcleo do seu mundinho. Depois, porém, te jogam no mundo real, onde sua vida não passa de um nó diminuto em uma rede intrincada e indiferente, cheia de vontades complexas que se regem por suas próprias lógicas incompreensíveis.

Até a normalidade da vida real é bizarra.

No entanto, eu já estava "em campo" havia quase um ano, e mares inteiros tinham corrido por baixo da ponte desde então, chocando-se contra a pedra da minha personalidade. Impossível que não a tivessem moldado ao menos um pouco, certo? Ou será que eu continuava a mesma fracote?

— Stuart?

— Hm?

— Você ainda acha que eu...

Tu-tu-ruuu... Tu-tu-ruuu... Tu-tu-ruuu...Pam! Pam! Pam! Pam!

O som da corneta seguido pela saraivada de tiros cortou minha frase e freou nossos pés, girando-os cento e oitenta graus numa fração de segundo.

Deixei a pergunta de lado. Já, já eu descobriria a resposta. Estava na hora da prova e o gabarito seria entregue assim que terminássemos.

Cruzamos com pressa a praça de grama roçada e amarelada e enveredamos pela rua lateral para alcançar o portal do quartel. Soldados também convergiam para lá, vindos de todos os lados ao som do toque de recolher. Alguns demonstravam surpresa ao notar a massa de civis que seguia na mesma direção. Poucos. Boa parte simplesmente chegava, sussurrava "Maria vai ter um bom parto" para o guarda e desaparecia no limiar. Os demais entravam sem senha mesmo e eram convencidos — ou presos — lá dentro.

Logo nos vimos no pátio interno do quartel, que me evocou uma sensação de pátio escolar em intervalo, com crianças correndo soltas de um lado para o outro. Só que eram crianças crescidas e a desordem em sua movimentação, apenas aparente: havia um centro para o qual todos convergiam e do qual eram expelidos, como por força centrífuga, em direção a um dos cantos, ramificações e salas que se abriam para o pátio.

Eu e Astrakhanov também corremos para lá. Um bolinho de gente em torno do mastro gritava tamanhos. Acotovelando um pouco, conseguimos acesso à primeira fileira do ajuntamento. Quintino, Eliziel Diniz e um praça desconhecido debruçavam-se ali sobre três caixotes cheios de panos cáqui. Pareciam feirantes em horário de pico, tentando catar os produtos certos para calar os gritos das donas de casa. Uma prancheta abandonada ao lado deles mostrava que tinham tentado conferir alguma organização à entrega das fardas, desistindo, porém, após uns dois registros: não dava tempo.

— ...uma média, quem foi que pediu uma média?

— Essa aqui é a menor que temos, qualquer coisa, remanga!

— As botas você mesmo procura ali naquela pilha... — Quintino estendeu o braço para a esquerda, enquanto entregava um conjunto para alguém bem na nossa frente. Então nos viu. — Arre, que besteira essa do Camarada Praxedes, hein? Vou te contar! Essa hora a gente já devia era estar saindo — desabafou.

— De qualquer forma teríamos que esperar os militantes chegarem — eu apaziguei.

— Já era para estarem todos aqui — lembrou Astrakhanov.

— Você tem alguma coisa do meu tamanho? — perguntei a Quintino, desviando o assunto. Não era hora para críticas, precisávamos de união.

— As pequenas estão com o Camarada Eliziel, procure ali com ele — Quintino instruiu. — Pra você... — ele acrescentou, para Astrakhanov. — Blusa vamos ter, agora, calças e botas... — com uma careta de dúvida, o sargento se debruçou novamente sobre o próprio caixote.

Observando-o de canto de olho enquanto mergulhava até os cotovelos no tsunami cáqui em busca do meu peixe, considerei que ele tinha razão em se irritar. Tropas fardadas sem instruções não serviriam para nada, e cabia a ele e a Giocondo — que eu ainda não encontrara — dirigir as operações a partir do quartel.

— Acho que as coisas aqui já estão bem encaminhadas — eu comentei, após um instante. — Com mais um par de braços, tenho certeza que o Camarada Eliziel consegue coordenar o que falta da distribuição.

Quintino olhou para o nosso lado, meio incerto. Fiquei com a impressão de que ele era adepto do lema "se quer algo bem feito, faça você mesmo", embora não proclamasse isso em voz alta.

— Você dá conta, cabo?

— Sim senhor, sen... Camarada.

Quintino então designou para assumir seu caixote uma das pessoas que estavam esperando o uniforme, e abandonou o ajuntamento. Eu e Astrakhanov também debandamos assim que Eliziel me entregou minha roupa.

Fui catar uma bota na pilha ao lado e, quando me ergui, tudo ficou escuro de repente.

— Mas que palhaçada é essa, Stuart? — chiei, arranhando os dedos que cobriam meus olhos.

— Está todo mundo se trocando no meio do pátio! — ele rosnou, visivelmente irritado.

— E?

— Pelo jeito esqueceram que mulheres também iam participar do levante. Não é... decente!

— Ora, e logo de você esse tipo de objeção! – exclamei, puxando o braço dele e conseguindo me livrar do aprisionamento. Astrakhanov estava com uma carranca que, não fossem seus traços fortes, se assemelharia ao muxoxo de uma criança birrenta. — Ninguém está prestando atenção no corpo de ninguém agora.

— Mesmo assim — ele balbuciou. Então me pegou pelo braço e foi me arrastando para o fundo do pátio, onde havia um pequeno quadrado mais abrigado, no momento, vazio, formado por um vão entre a parede lateral a a construção mais próxima. — Não quero... é desconfortável... melhor eu ficar na sua frente aqui tapando a visão, enquanto você se troca, que tal?

Dei de ombros, aprovando o plano. Astrakhanov se postou à entrada do quadrado como uma sentinela, as pernas afastadas e o rosto de pedra. Certificando-me de que ele estava mesmo de costas para mim e não espiava, eu tinha apenas começado a desabotoar meu vestido, quando vi Leonila saindo impecavelmente uniformizada de uma sala na construção dos fundos do quartel.

— Camarada Leonila! Tem alguém aí? — perguntei, alcançando-a e apontando a porta atrás dela.

— Uma camarada se vestindo e outra guardando a porta para afastar a macharada — ela respondeu de passagem, apressando-se para o ponto onde distribuíam as armas e a munição. Talvez tenha sido impressão minha, mas eu podia jurar quer seus olhos brilhavam da expectativa.

Parece que não tinham esquecido das mulheres, afinal. "Mas eu espero sinceramente que o engraçadinho não tenha feito de propósito", grunhi internamente, ao perceber, graças ao balde que caiu na minha cabeça com o impacto da batida da porta, que o tal vestiário fora montado num almoxarifado.

A despeito das vassouras, baldes e garrafas de produtos de limpeza multicores, havia espaço suficiente para algumas pessoas se mexerem lá dentro. Apoiei meu fardinho numa prateleira e, após um aceno cortês para a mocinha que guardava a porta, puxei meu vestido por cima da cabeça.

Ouvi um resmungo atrás de mim e me virei num reflexo. Sentada em uma bacia num canto ainda mais obscuro do quartinho atulhado estava a moça da reunião de mais cedo, a parenta do dirigente de Mossoró. Seus olhos pequenos como contas pretas não tinham dado pela minha presença ainda; curvada, ela tentava enfiar as pernas muito longas das calças no cano da bota, as mãos gorduchas trabalhando ferrenhamente e uma careta de desagrado no rosto redondo.

— Urgh! Alguém podia ensiná-los a jogar uma gota de limão nessas botas — deixou escapar a moça.

— Ou a lavar os pés — retruquei, com um sorriso torto. — E você pensaria que os soldados, pelo menos... a disciplina militar...

— Naaada! — tornou minha interlocutora, se endireitando. — São tudo criado assim, achando que higiene é coisa de mulherzinha, que vai cair o pinto se eles se lavarem direito. Ah se soubessem que é o contrário!...

A mocinha da porta abafou uma gargalhada com a mão. A autora da tirada sorriu de canto, condescendente, mas depois mudou de ideia e censurou-a:

— As trevas da ignorância não têm graça. Esse tipo de coisa acontece porque o povo se cria solto que nem animal, e só transmite superstição de geração em geração.

— Desculpe, Camarada — murmurou a sentinela, baixando os olhos.

— Tudo bem. Logo mais daremos um jeito na imundície e na ignorância. Mas primeiro temos que fazer a faxina das camadas privilegiadas — e voltou-se para mim, que amarrava minhas próprias botas, tampouco dotadas do melhor dos odores, infelizmente. — Vamos, Camarada...?

— Anita — respondi, estendendo a mão e apertando a dela.

— Eu sou Amélia — anunciou a mulher, emendando, logo antes de sairmos da sala rumo ao ponto de distribuição de armamento. — Representante da União Feminina do Brasil aqui no estado.

Astrakhanov, que aguardava já paramentado do lado de fora, juntou-se a nós. Alguma coisa em sua aparência chamou minha atenção e observei-o de canto de olho, tentando entender o que havia de errado. Sim, as calças estavam muito justas. Os típicos culotes cor de cáqui do exército pareciam nele uma mistura estranha de calças de caubói com calções do tempo de Luís XV. Segurando a risada, lancei um olhar para as botas. Eu podia jurar que a barra das calças escaparia delas, com marcha mais empolgada. Devia estar bem desconfortável aquilo, mas seu rosto emanava uma espécie de satisfação. Acho que ele sentia falta de trajar uma farda.

E, para ser sincera, fardas lhe caíam bem.

A voz de Amélia me resgatou da divagação:

— Não lembro de ter te visto em alguma reunião. Você não é filiada?

— Reunião de quê? Ah sim... Já fui... mas em outro estado — "Há três anos e com outro nome", completei mentalmente.

— E deixou a organização por quê? — quis saber Amélia, levemente ofendida.

— Nunca deixei oficialmente, eu só... — realmente, não era o melhor momento para aquele interrogatório. Suspirei. — Estive muito ocupada desde que me mudei para cá. Outras tarefas do Partido.

— Oh, entendo — a moça respondeu, embora sua expressão facial depusesse no sentido contrário. — Bem, nos últimos meses não estamos tão abertamente ativas, também — acrescentou, conciliadora. — Fecharam a gente logo depois da ANL. Organização subversiva, aquele blá-blá-blá. Continuamos funcionando nos porões, claro, mas é bom ter liberdade.

— Teremos toda, logo mais — eu disse, com um sorriso que tentava ser encorajador. A cobra que parecia ter se instalado em meu estômago desde o anúncio do levante soltou um silvo debochado, remexendo-se em ritmo de forró à medida que nos aproximávamos do canto com o equipamento.

— Se trabalharmos direitinho hoje — concordou Amélia, mirando as armas com um olhar meio indeciso. Voltou-se para mim, então, contrapondo à palidez do rosto palavras determinadas: — Quero te ver na primeira reunião da União Feminina que fizermos após a Revolução. Que diz disso, Camarada?

— Com prazer, eu...

— Pronto, agora nenhuma de nós pode morrer e nem ser pega — interrompeu Amélia. — Promessa é dívida — e encolheu os ombros.

— Justo — respondi, e não deu tempo de dizer mais nada, pois chegara a nossa vez na fila para receber fuzis, e logo em seguida eu a perdi no meio do movimento.

Olhei em volta e, notando que o ajuntamento maior mudara de local no pátio e fazia silêncio, cutuquei Astrakhanov para reajustarmos a rota.

O agrupamento crescia. Logo atingiria seu volume máximo, porém, porque a essa altura já estava quase todo mundo pronto para a ação. E eu podia jurar que não tinha se passado mais que um quarto de hora. Uma eficiência — se é para ser sincera — surpreendente.

Meus pensamentos foram abafados pela voz alta dos comandantes. Mais uma vez graças à vantagem biométrica de Astrakhanov, conseguíramos chegar à primeira fila, formada em torno de uma mesa sobre a qual fora estendido um mapa de Natal. A lápis, um dos soldados filiados ao Partido traçava os caminhos até os alvos que Quintino e Giocondo apontavam para as tropas formadas ali no ato.

— ...nosso alvo mais distante. E é muito importante, que a última coisa que a gente quer é ter reforço chegando por mar. Quem pode fazer isso?

Uma mão se ergueu. Giocondo olhou para ela e fez sinal para que seu dono falasse.

— Eu moro nas Rocas desde moleque e vivia invadindo o farol para brincar. Sei como entrar sem alarde e posso desligar, mas preciso de mais braço pro caso de ter sentinela ou de a gente ter que se defender de um contra-ataque.

— Perfeito. Tem alguém em mente?

O homem nomeou três colegas estivadores que também moravam no longínquo bairro das Rocas e eles partiram, com a promessa de Giocondo de que enviaria um estafeta dali a uma hora para indagar do andamento da missão e atualizá-los sobre as notícias do centro da cidade.

— Bem, se a Estiva vai cuidar do farol, será que alguns ferroviários podem se encarregar da estação? — Quintino perguntou, levantando a cabeça do mapa em que estivera traçando cuidadosas bolinhas a lápis em pontos específicos.

Notei Astrakhanov se remexer e abrir a boca, mas ele não emitiu nenhum som, olhando-me de relance. Adivinhei que ele hesitava em se oferecer por causa da função de guarda-costas e lhe fiz um aceno encorajador. Antes que ele se manifestasse, porém, ouvimos a voz de Quatro:

— Pode deixar que a minha turma aqui toma conta.

O efetivo do destacamento foi escolhido rapidamente e, em seguida, Quintino constatou:

— Bem, em termos de transporte e comunicação, faltam só o correio e a central telefônica.

— E o bonde.

— O bonde não é prioridade. Ele só circula dentro da cidade.

— Com os nossos homens — lembrou Epifânio, que eu não tinha notado na primeira fila —, não tem perigo. A gente chega mais rápido que o bonde a qualquer ponto da linha.

Ele liderava o sindicato dos motoristas, que, pelas numerosas aclamações com que essa declaração foi recebida, estava bem representado ali.

— Certo. Então sobram os prováveis focos de resistência, a soltura dos presos...

— Disso cuido eu! — reconheci a voz de Lauro Lago, invisível no meio da massa.

— ...e a detenção das autoridades — Quintino ergueu os olhos para o grande grupo e respirou fundo, antes de explicar, gesticulando: — Temos informações de que todas as autoridades estão no teatro agora. É uma oportunidade de ouro. Só fechar a porta, e prendemos todo mundo na ratoeira. Esse vai ser nosso ato final. Agora vamos concentrar nossos contingentes militares ou treinados nas forças bélicas da cidade. Temos um contato na Polícia Militar que ficou de convencê-los a se juntar a nós. Estamos só aguardando o retorno dele — ele consultou o relógio de pulso, e sua boca se contorceu de leve. — Que já devia ter acontecido. Vamos dar apenas mais...

— Olha, eu acho que a gente já devia avançar de uma vez — Giocondo interrompeu-o, impaciente. — Nós demos dez minutos para ele, e nada. Esperar mais vai melar a coisa.

— Dez minutos é só a distância de ele ir...

— Por que, a lesma vai se arrastando? Você não avisou que temos pressa? Eu digo para atacarmos de uma vez.

— Não dá! Abrir fogo contra o quartel sem necessidade só vai gerar efeito ruim: vamos gastar munição, causar vítimas e chamar atenção. Isso pode atrasar ou até inviabilizar as outras tarefas — alertou Quintino. — Por isso que a ordem para as patrulhas tem sido para só atirar se houver extrema necessidade.

— Entendido, Sargento — o Cabo Giocondo concordou, entredentes, por óbvios motivos hierárquicos. — Mas que eu estou vendo essa escória escapar por entre os nossos dedos, ah, estou sim.

E ele cruzou os braços, voltando as costas para Quintino, carrancudo.

Quintino deixou escapar um leve suspiro pelo nariz, e cutucou o ombro dele.

— Tudo bem, Dias. Por que você não pega uma patrulha e vai ao teatro de uma vez? Assim ninguém escapa. Enquanto isso eu aguardo mais cinco minutos, e se o Cabral não voltar ou voltar com má notícia, dou o sinal verde para as tropas. Já vamos deixar tudo encaminhado aqui, armas e tal.

Giocondo virou-se com uma sobrancelha erguida e, após um instante de meditação, concordou. Ele pediu por voluntários para acompanhá-lo, mas era tanta gente querendo prender o governador que ele passou a escolher os demais integrantes pelo perfil — de quem conhecia — até o número que considerou suficiente.

— Camarada Anita, você vai com ele? — Quintino me convidou, em voz baixa, porque eu estava perto dele.

Sacudi a cabeça para dispersar as cenas heroicas de combate que estava imaginando e pisquei.

— Oh, claro — definitivamente não era hora para insubordinação. — Mas eu achava que, por eu ter treinamento de combate...

— Pode ser necessário lá também. Não sabemos se alguma coisa vazou e se não nos armaram uma arapuca usando o evento como uma isca. Sabe, quando a esmola é muita, o santo desconfia.

— Tem razão.

— Ademais, acho que um rosto feminino no grupo pode acalmar o público na hora da abordagem, prevenir a histeria... Para evacuarmos os inocentes sem crise.

— Hm. Entendo.

Servir de calmante não era exatamente o melhor dos motivos para ser apontada para uma missão importante, mas vá lá. Anuí e preparei-me para me afastar com os outros núcleos beges.

— Coragem, Camaradas! — incitou-nos Quintino, brandindo seu fuzil e sacudindo-o no ar (para o que vi Astrakhanov torcer o nariz ao meu lado). — Por pão, terra e liberdade! Viva a ANL! Viva Prestes!

— VIVA!

Partimos.

Seria de se pensar que nada poderia dar errado em um caminho de sete, oito minutos que, em nossa marcha animada, percorreríamos em metade do tempo, não?

Pois pensou errado, camarada.

— É o seguinte, camaradas — o Cabo Giocondo falou, andando à nossa frente e de costas, para poder nos olhar enquanto falava —, poderíamos seguir direto pela Rua Nova, dá umas três quadras, e chegamos no teatro por trás. Mas é uma rua residencial, e não queremos que os moradores entrem em pânico caso o chumbo coma solto. Que tal a gente pegar umas quebradas por aqui? — concluiu, acenando com o braço no primeiro cruzamento a que chegamos.

Viramos à esquerda, percorremos um bloco em instantes, e viramos à direita, onde nos esperavam mais trinta segundos de caminhada.

— E, do teatro, a gente pode ir até a inspetoria de polícia — discorreu Giocondo. — É pouco efetivo, com metade do nosso destacamento já dá pra neutralizar, e não custa nada ter esses pelegos sob contro...

Tudo aconteceu muito rápido. O dono de um carro estacionado a alguns passos nos viu vindo com os fuzis, assustou-se, e tentou uma retirada discreta. Quando ele foi ligar o carro, porém, o escapamento deu um estampido.

Nesse exato instante, passava pelo outro lado da rua um policial militar uniformizado, indo em direção ao quartel deles, que ficava mais afastado do centro. Ouvindo o estampido, ele também se assustou e fez menção de puxar a arma. Só que o estampido tinha posto todo o nosso grupo em alerta, paralisando-nos no local por um instante até os cérebros assimilarem o que ocorria. Um dos recrutas mais jovens, na fileira de trás, não conseguiu conter os próprios reflexos e, nervoso, atirou contra o policial.

Só vimos o Cabo Giocondo caindo, enquanto o policial revidava, junto a outros que tinham chegado também da praça do teatro, e com os quais nós trocamos tiros, usando o carro de abrigo, para desespero do motorista em posição fetal junto aos pedais.

Os policiais estavam em menor número e, na primeira folguinha no tiroteio, deram meia volta e se escafederam virando à esquerda. Astrakhanov saiu atrás deles, para que não avisassem o povo no teatro, mas na esquina ele viu que eles tinham dobrado na outra rua na direção oposta ao centro, e voltou para junto de nós.

Nesse ínterim, outro dos praças mais novos, o Soldado Wanderley, correu a verificar o estado de Giocondo, soltando um par de palavrões assim que se abaixou ao seu lado.

— Foi na cabeça — e complementou com um terceiro palavrão.

Senti minhas pernas afrouxarem, mas consegui firmá-las e corri abaixada para perto do camarada caído. Metade de seus cabelos claros estava empapado e tingido de rubro, e quem dera aquilo fosse tinta. Ele apagara completamente, mas respirava, e a bala, aparentemente, não ficara alojada. Também não se via — meu maior receio — o cérebro exposto. Havia esperança.

— Precisamos levá-lo para o hospital com urgência — anunciei, com voz mais determinada do que eu me sentia.

— Não tem perigo transportar ele nesse estado? — questionou o camarada Wanderley.

— Perigo sempre tem, mas se ele ficar aqui sem socorro, aí sim é morte certa.

— Ainda mais porque pode acabar levando outro tiro — Astrakhanov me apoiou.

O autor do primeiro disparo, certamente movido pela culpa e pela sensação (nada equivocada) de que todos queriam esganá-lo agora, ofereceu-se para levar o ferido ao hospital. Combinamos que o Soldado Wanderley — que estava pálido de preocupação — e outro recruta iriam ajudá-lo, devendo reportar-se a Quintino no 21º BC logo em seguida para avisar do ocorrido, enquanto o resto de nós seguia com a missão.

Os tiros provavelmente tinham sido ouvidos, mas ainda dava tempo de fazer o controle dos danos.

Tentei canalizar toda a minha energia para o movimento veloz das pernas, a fim de não deixar nenhuma para os pensamentos, que teimavam em debandar por desvios arriscados. Sempre achei superstições estúpidas, mas convenhamos que um comandante alvejado por alguém da própria equipe no meio do — minúsculo — caminho para a primeira missão é um forte candidato a mau agouro.

Alcançamos a praça em frente à casa de espetáculos num piscar de olhos que se abriram para um completo vazio. Nem gente, nem pombo, nem mesmo poeira carregada pelo vento. Um silêncio tão anormal numa cidade convulsionada não pode deixar de evocar suspeitas. E algumas náuseas.

Diminuindo o passo e multiplicando a cautela, nos dividimos ante o edifício cor de creme de modo a não deixar nenhum dos três arcos ou das duas entradas laterais a descoberto. Os portões estavam escancarados, e os arabescos de suas grades eram como dedos indicadores esquálidos de moças assanhadas, enrolando-se e desdobrando-se em sinais convidativos.

— Você, por ali. Você, primeira galeria. Você, você, deem a volta por trás e façam uma busca nos camarins — sussurrou o militar de sotaque carregado que assumira o comando na impossibilidade de Giocondo.

Dividimo-nos no hall, cujo chão rebrilhava, refletindo os lustres no mármore de padrão incomum para aquelas redondezas. As portas para o salão principal estavam escancaradas, e mesmo antes de o invadirmos percebemos que não restava vivalma naquelas cadeiras bordô.

Descendo ao longo das fileiras, com o impacto das minhas botas reluzentes abafado pelo carpete, eu mantinha o fuzil a postos e os olhos dançando de um lado para o outro.

A sensação desagradável no meu estômago fora obliterada pela taquicardia crescente. Entreolhei-me com os camaradas que estavam nas duas galerias, buscando respostas para a indagação que nenhum de nós precisava verbalizar. Ambos sacudiram as cabeças. Brandiam os fuzis como um escudo.

Um "plact" quase provocou outro tiro acidental, chamando as atenções para o palco. A batuta do maestro da orquestra acabara de cair do suporte da partitura, rolando um pouco pelo chão de tábuas antes de parar. Deviam estar bem apavorados ao evacuarem o local, de outro modo um músico jamais deixaria seus instrumentos para trás. Muito menos todos os músicos.

O golpe de ar que derrubara a batuta fora provocado pela entrada dos camaradas enviados para inspecionar os camarins. Seus rostos graves já nos davam a resposta, mas o comandante perguntou mesmo assim:

— Nada?

— Nem a sombra.

Permitimo-nos um instante de silêncio para absorver o fato e suas implicações, antes de passar ao próximo passo.

Nossa ratoeira fora desarmada com antecipação. Os ratos tinham fugido com folga. A questão era saber se o gato é que não soube pisar macio, ou se a ratoeira não fora armada pelo cachorro desde o começo.

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