Dias Vermelhos

Por erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... Más

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 73 - Riscando o fósforo

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Por erikasbat

Braços dados, todos ouvindo a respiração uns dos outros, nós marchamos.

E freamos bem na frente da cavalaria.

Joaquim Galvão limpou a garganta.

— Os senhores podem nos dar licença? Temos uma manifestação pacífica para realizar neste local.

O capitão da tropa lançou um olhar entediado para Joaquim.

— Não pode — ele disse, e voltou à imobilidade.

— A... a Constituição... nos garante... — Joaquim gaguejou. Eu vi que ele começava a avermelhar, e firmei o aperto do meu braço no dele. Não ia esse homem pular no capitão e ganhar uma saraivada de balas de graça para o grupo todo, pelo amor de Deus.

— Não sei o que diz a Constituição — interrompeu o capitão. — Sei o que diz essa ordem aqui — ele sacou do bolso um papel, desdobrou-o e leu em voz alta: — "Impedir manifestação extremista desautorizada".

Pisei no pé de Leonila, para calar o resmungo de "já te mostro o extremismo" que ela ia deixando escapar. Era preciso muita cautela, pois estávamos como que caminhando sobre uma lâmina afiada. Eu podia sentir Zefinha tremendo atrás de mim, e com ela várias das mulheres que formavam nosso contingente.

— Não temos nenhuma intenção extremista — "hoje", completei, mentalmente. — Gostaríamos, apenas, de exercer nossa liberdade de expressão e externar nosso posicionamento com relação a determinadas situações de interesse do nosso povo.

— Façam isso nas suas casas — o capitão tornou, sem nem me fitar.

Os outros soldados não diziam nada. Hierarquicamente, não lhes cabia. Mas nem todos pareciam concordar com aquela atitude. Divisei o Sargento Quintino no meio do grupo, e ele me sinalizou com o olhar que não era hora de resistir. Pelo jeito eles tinham ordens bem flexíveis no tocante ao emprego da força.

Ainda assim, tentei:

— Quinze minutos?

— E então? — me perguntava Astrakhanov, na noite seguinte, quando ele finalmente voltou para casa a fim de descansar um pouco e tomar um banho.

Francamente, estava precisando.

— Então voltamos, né. Fazer o quê?

— Eles chegaram a atirar?

— Não, apenas engatilharam e apontaram. Metade do pessoal já saiu correndo ao ouvir o estalo do gatilho, e só com vinte pessoas desarmadas não tinha nem como resistir.

Estávamos sentados na sala após o jantar, com o rádio ligado para abafar a conversa, como de costume, e os grilos do quintal conseguindo cricrilar mais alto que o aparelho. A voz de Astrakhanov demorou um momento para romper outra vez essa harmonia sonora.

— Pena. Mas vocês tentaram, é o que importa. Pelo menos a tentativa saiu no jornal e produziu um bom efeito na moral dos homens aqui de Natal. Talvez tenha produzido entre o povo da cidade também.

— Há algum avanço na luta?

— Pelo contrário — Astrakhanov suspirou, afundando no sofá. — Ontem estávamos mais agitados, mas a direção não queria confrontar. Mandaram pregar avisos em todas as estações aconselhando calma e prometendo que atenderiam as reivindicações "na medida do possível". Mas hoje eu entreouvi a chefia lendo um telegrama que me certificou que essas promessas só servem para enrolar enquanto eles organizam o contra-ataque. Diz o superintendente regional, lá de Pernambuco, que o Ministro do Trabalho condenou a greve como uma tentativa de desequilibrar o cenário das negociações que eles estão conduzindo com o nosso sindicato, e agora se recusa a prosseguir no diálogo. Parece que em Pernambuco e Alagoas o pessoal já se abateu e voltou ao trabalho, só uns maquinistas teriam permanecido fieis. Mas isso pode ser informação falsa para nos desunir. Você podia escrever para o Silo pedindo confirmação, o que acha?

— Farei, com certeza. Falando em telegrama — eu me abaixei e tirei do sapato um papelzinho dobrado, — tenho boas notícias: te autorizaram a aderir à greve.

Astrakhanov comemorou com um soco no ar, antes de aceitar o bilhete e perscrutá-lo ele mesmo.

— Eles estão meio atribulados com outros assuntos por lá, afinal só têm dois meses até o levante, então não mandaram instruções detalhadas. Pedem apenas cautela, que façamos a coisa de modo a acarretar o mínimo risco possível para o nosso disfarce.

— "Nosso"?

— Lógico. Ou você acha que vai entrar na greve enquanto eu fico aqui tricotando?

Curiosamente, era justo o que eu fazia naquele momento.

— Nada mais pode ser feito para trabalhar a opinião pública daqui — argumentei. — O novo Chefe de Polícia deixou bem claro que vai cercear qualquer tentativa nossa de agir dentro da lei.

Astrakhanov encolheu os ombros para minha decisão e pulou de pé, pondo-se a andar de um lado para o outro, enquanto mergulhava no planejamento de sua entrada em ação.

— É a hora certa para aderirmos — ele comentou, após um segundo, — porque os patrões pretendem aproveitar o suposto enfraquecimento, trazer mais polícia e autorizar o ataque, para dar um golpe de misericórdia no movimento.

— Vão chamar de volta o batalhão paraibano? — estranhei. — Vocês não conseguiram sabotar as estradas?

— Conseguimos sim e eles já foram para casa. Tem greve para reprimir em João Pessoa também. Não, mandaram gente daqui para Nova Cruz, que é onde o pessoal está mais aguerrido. E como é uma estação intermediária, de escala, trava todo o tráfego.

— Então você quer ir para Nova Cruz?

— Exatamente. Os trilhos estão estragados, mas posso pedir para me levarem no carro da empresa — ele riu, ante a ironia da situação. — Vou disfarçado como emissário deles. Acho que vai funcionar.

— E eu?

Rocinante foi a resposta. Rocinante era o burrico de um camarada que morava num sitiozinho pegado a Natal, primo de um dos ferroviários, muito pobre e simples, mas um grande amante das letras. Dizia-se que já tinha lido o Capital inteiro, o que talvez não fosse verdade, porque eu jamais vira um exemplar desse livro ali em Natal e nem sabia se existia em português. Mas ele tinha alguns livros em seu sítio, e batizava tudo o que possuía com nomes inspirados nessas obras.

Eu devia mesmo fazer uma triste figura trotando para Nova Cruz na escuridão das quatro da manhã. Orientava-me pela estrada de ferro, e experimentava pequenos surtos de ansiedade sempre que os trilhos sumiam nos trechos vandalizados. Sorte que esses trechos eram curtos – umas poucas bitolas arrancadas e a ferrovia já se tornava intransitável. A pluralidade de pontos depredados visava atrasar os consertos.

O sol estava a pino e o almoço começava a ser solicitado pelo meu organismo quando eu e Rocinante chegamos à estação ferroviária de Nova Cruz. Era um prédio térreo cor de creme, anexo a uma plataforma estreitíssima, com as esquinas decoradas de rosa claro e a metade inferior da parede enfeitada com ladrilhos imitando pedra. Tinha uns quinze metros de extensão e uns quatro de profundidade, e se entrava nele por três portas largas. Duas saletinhas nas extremidades, com entrada separada, continham os banheiros, e uma pequena instalação em cima do prédio principal devia guardar o telégrafo, considerando os fios que saíam de uma abertura lateral. Assim como a estação de Natal, ela estava cheia de operários e de policiais, todos atentos – com expressões e intenções distintas – ao discurso inflamado do maquinista de pé num estrado improvisado com tábuas do outro lado dos trilhos bloqueados.

— Sem nós, ninguém vai a lugar nenhum — continuou o orador, após o encerramento da salva de palmas que vigorava quando eu cheguei, — mas nós, pra levar a família à casa da vó do outro lado do estado, temos que economizar seis meses. Pra ir pro Sul, então, vish! É projeto aí pra uns dois, três anos. Eu pergunto: por acaso isso é justo?

— É mesmo!

— É verdade!

— Abaixo o salário baixo!

— São os trabalhadores que fazem tudo neste mundo, que carregam a Terra nas costas, impulsionam o progresso. O que seria dos patrões sem nós? Nada!

— Arre!

— E não é?

— Abaixo os patrões!

Um dos policiais mais próximos dos trilhos pigarreou, mas tanto o palestrante, quanto o seu público fingiram não ouvir.

— Então vamos mostrar a eles! Nada de descruzar os braços até que nos paguem pelo menos o suficiente para aproveitar o produto do nosso próprio trabalho! — rugiu o maquinista, empolgado, socando o ar furiosamente e quase caindo do estrado com o impulso.

— Hurra!

— Eles vão ter que nos engolir!

— Abaixo o tra... não, acima o trab... ahn... Viva o trabalhador!

— VIVA!

Entre vivas e hurras, o maquinista desceu do estrado, e foi recebido pelos abraços e tapinhas nas costas dos colegas. No meio dos que aplaudiam estava Astrakhanov. Avistando-me por um vão que se formou momentaneamente entre os funcionários, ele acenou para mim, e depois se dirigiu ao grupo:

— Rapazes, que tal um intervalinho agora? Sim, Sérgio, quando voltarmos, você será o próximo a falar.

E sem esperar uma resposta definida das exclamações e balbucios que sobrevieram, ele caminhou na minha direção, para me ajudar a prender Rocinante, de quem eu acabara de desmontar.

— Tudo bem no caminho? — perguntou.

— Perdi-me umas duas vezes, mas logo recuperei a trilha — contei. — Brincadeira. Ajuda a descarregar aqui? — despistei, então, ao vê-lo empalidecer.

Se Astrakhanov desconfiasse de algum risco à minha pessoa, daria um jeito de remanejar suas tarefas para cuidar integralmente da minha segurança pessoal. Isso atrapalharia essas próprias tarefas, em que ele estava indo tão bem, e a minha autonomia. Errar faz parte do desenvolvimento. Lembro que, quando a gata da minha avó teve cria, ela nunca pegava os gatinhos que saíam da caixa, ceguetas, tateando e miando desesperadamente. Em vez disso, encostava a pata ou a cabeça no filhote, para que ele voltasse sozinho, rastejando. Quem nunca se perdeu não dá valor ao caminho certo.

— Você trouxe a encomenda do sindicato?

— Comida e itens de primeiros socorros? Uhum — confirmei, desatando um fardo grande do lombo de Rocinante.

Diferente do que acontecia em outros países, nós não tínhamos direito à greve. Deflagrávamos os movimentos paredistas por conta e risco, e por isso era tão difícil convencer um número suficiente de trabalhadores a aderirem. Se perdêssemos a luta, eles podiam ficar desempregados ou, na melhor das hipóteses, não receber pelo tempo de paralisação. Então os sindicatos se preparavam para bancá-los materialmente durante esses períodos; é para isso que servia o dinheiro das contribuições sindicais. Às vezes as greves só acabavam quando os cofres dos sindicatos se esvaziavam e não podiam mais comprar víveres nem no crédito.

— Os curativos vieram bem a calhar — Astrakhanov comentou, segurando o fardo que levaríamos para a cozinha improvisada, enquanto esperava que eu amarrasse o burro em uma viga da estação. — Tem inclusive um colega de nariz quebrado que eu acho que devíamos mandar para o hospital Onofre Lopes lá na capital.

— Eles entraram em choque com a polícia?

— Sim. Como o Ministro não reconheceu a justiça da greve, os militares resolveram dispersar logo o pessoal para acabar com ela. Sorte que eu sou "o homem do patrão". Hoje consegui botar alguma ordem — ele me confidenciou, em inglês, para que os próprios policias que andavam por ali não compreendessem.

— E eles aceitaram sem contestar? — admirei-me.

— O comandante ficou meio contrariado de receber ordem de um civil, e ainda por cima "gringo" — admitiu Astrakanov, — mas não há nada que ele possa fazer. Eles foram colocados à disposição da Great Western, e, enquanto não me desmascararem lá da sede, vão ter que me obedecer.

— Vi que você organizou o pessoal, também...

— Tive que fazer. Quanto menor a balbúrdia, menos desculpa os policiais têm para intervir. E é melhor para que eles se entendam entre si. Todo mundo gritando ao mesmo tempo só serve para atordoar e deixar com dor de cabeça.

Eu ri.

— É a consequência espontânea de um ajuntamento popular — disse.

Astrakhanov encolheu os ombros, depositando o fardo no chão, ao lado da escrivaninha usada como mesa.

— Eu gosto de um pouco mais de ordem. E disciplina.

— O militar em você nunca morre.

— Você mesma passou um ano estudando sobre como a disciplina é importante — ele rebateu, ranzinza. — É o princípio da eficiência.

— Certo, certo — desconversei. — Escuta, como vamos fazer isso? Quer que eu cozinhe, ou...?

— Não, melhor você fazer os curativos. Pode deixar que... o que foi? — ele se espantou com minha careta de desagrado. Então sorriu, maldoso. — Ah, esqueci que você desmaia...

— Eu não desmaio! — protestei. — Foi só uma vez, e você também teria desmaiado se visse um couro cabeludo arrancado. Não tenho nenhum problema em fazer curativos. Se, claro, mais ninguém... — balbuciei, pegando, relutante, a bolsinha de primeiros socorros.

— Dá isso aqui — Astrakhanov tomou o pacote da minha mão, e me ultrapassou, rumando para o ajuntamento. — Vê o que você pode fazer com o que eles mandaram. Se precisar de ajuda, o Serafim sabe onde estão as panelas e como ligar o fogo.

E ele voltou para junto dos grevistas, autorizando uma nova sessão de discursos. Afastando-se um pouco deles, pegou dois caixotes, sentou-se em um, e chamou um operário, que veio mancando e se acomodou na outra caixa de madeira.

Pelos arcos de entrada para a parte abrigada da estação, onde eu estava, tinha-se uma visão perfeita do que transcorria lá fora. Os oradores se sucediam, ora mais fogosos, ora mais sóbrios, alguns até meio cansados. Os militares passeavam de um lado para o outro, oscilando entre a indiferença e a intimidação. Astrakhanov, parcialmente atento a tudo isso, concentrava-se, no entanto, em consertar as feridas dos colegas em silêncio, enfaixando um pé, limpando cortes e cobrindo-os com gaze e esparadrapo, transformando lenços em compressas com a água que me pediu para ferver. Os curativos eram um tanto toscos, do tipo que se aprende no treinamento só para segurar as pontas e não deixar o parceiro morrer enquanto espera a chegada do médico de campanha. Mesmo assim, era difícil não admirar a disposição dele para servir, em especial porque o fazia sem se dar ares, na simplicidade de quem considera estar só cumprindo seu dever.

O almoço saiu por volta das duas e meia. Nós comemos, e depois organizamos parte dos homens para sair pela cidade com cartazes, numa curta passeata, cantando bordões que explicavam sua luta. Também a explicávamos para todos os desavisados que apareciam na estação, querendo pegar um trem. Eram poucos, porque já era o quarto dia de greve, e a população local estava ciente da interrupção dos serviços. Mas sempre surgia um ou outro para verificar se, por acaso, a greve não teria acabado e ele não poderia viajar.

Às vezes os ânimos do pessoal se exaltavam, uns policiais, inclusive, provocavam, e era precisa pôr panos quentes para evitar conflitos mais sérios. Mas eram situações raras, e quando, após a refeição noturna, os grevistas cansados se reuniram numa roda no chão para relaxar e cantar serestas, alguns militares até se juntaram a eles.

"Não sei pru que teus óio veve a me olhá" cantarolava o coro masculino, decerto cada um com um rosto diferente em mente, quando eu terminei de dar um jeito nos utensílios usados para o jantar. Pareciam tão entretidos naquele pungente entoar grupal que eu não quis perturbá-los juntando-me à roda. Fui me sentar do lado de Astrakhanov que, apoiado na parede do saguão escuro da estação, observava despreocupado a cantoria, pelo arco da entrada.

Dentro em pouco, ele quebrou o silêncio.

— Olha lá: há pouco estavam se batendo, agora estão cantando juntos — ele disse, indicando o grupo seresteiro com o queixo, de onde provinha um desafinado "Inté parece a luz que pinga do luar...". — Brasileiros são estranhos.

Eu dei de ombros, sem querer concordar, mas sem poder discordar. Nosso silêncio momentâneo destacou o "Se os meu também pegá e oiá, como há de ser?" entoado pelos homens lá na frente.

— Mas é interessante acompanhar essas lutas primárias, pré-socialistas — ele prosseguiu, então, em inglês. — Muito da teoria que me ensinaram passa a fazer sentido.

Olhei-o, de sobrancelhas franzidas:

— Você nunca acompanhou uma greve?

— Greve, na minha Pátria? Para quê? — foi a vez de ele dar ombros, com um sorriso. — Já somos governados por trabalhadores.

— Justo — murmurei, calando-me em seguida.

Astrakhanov não achou necessário continuar a conversa. Continuou a observar os homens, com o luar destacando o azul de seus olhos atentos, transformando-os em duas poças de água gelada. Logo ele começou a acompanhar, de boca fechada, o ritmo da seresta dos grevistas.

Eles rodaram por várias outras canções sentimentais, mas volta e meia tornavam a essa, que parecia ser a única que todos sabiam inteira. De tanto repetirem, Astrakhanov até aprendeu a curta letra. A última coisa que eu ouvi foi ele murmurando timidamente o último verso — "...se fosse meu tu não olhava mais ninguém" — antes de ser arrastada para o sono pela prostração do dia cheio, que começara as quatro da manhã.

— Bora trabalhar, cambada de vagabundo!

Minha cabeça escorregou do ombro de Astrakhanov quando ambos despertamos no choque do berro. Num primeiro momento, a dor nas costas por ter dormido sentada, que me atingiu assim que me endireitei, obliterou a consciência de tudo o que se passava ao redor. Mas não levei mais que alguns segundos para adquirir noção completa da realidade e correr para fora com Astrakhanov ao meu encalço.

A quantidade de militares na estação se multiplicara. Parte dos que tinham passado para a Paraíba de caminhão dois dias antes viera se juntar aos que ficaram ali na ocasião. Totalizavam, agora, uma centena de homens armados, que avançava para os trabalhadores gritando ordens e ofensas. A intenção era impeli-los para os extremos da estação, a fim de que consertassem os trilhos e fios telegráficos vandalizados. Os trabalhadores, confusos, mas dispostos a resistir, tinham se dado os braços e se unido num bloco compacto, cuja parte frontal já começava a receber golpes de cassetete e das chibatas outrora usadas para impelir cavalos.

— Vamos, vamos! Circulando, circulando!

— Mãos à obra, preguiçosos!

Corremos para junto dos grevistas, que respondiam a essas ordens com gritos de guerra sobre não retroceder. Astrakhanov tentou argumentar, pedir para que os uniformizados se contivessem, mas foi sumariamente ignorado. A paciência das forças da lei e da ordem ia se esgotando progressivamente, e, na mesma proporção, crescia a violência de sua postura.

— Sem brutalidade, por favor! — protestei, colocando-me entre um trabalhador e o policial que já levantava o cassetete para descê-lo na cabeça do homem, mas susteve o braço quando intervim. — Esses homens estão apenas exigindo seus direitos, preocupando-se com o sustento das suas famílias, assim como vocês. Num país democr...

— Fecha a matraca, quenga de comunista! — interrompeu o tal policial, virando-me a mão no rosto.

Surpreendida e atordoada pela força da bofetada, distingui mal os momentos seguintes. Vi Astrakhanov voar, vermelho, no pescoço do policial. Ele não foi o único: boa parte dos trabalhadores se precipitou em cima do milico, tomando minhas dores. Quando dei por mim, estava no meio de uma pancadaria generalizada, semelhante à que acontecera no cais, com a diferença de que dessa vez eu desferia e recebia socos também.

A ira anestesiava a dor dos golpes assim e impedia meus neurônios de desenharem o quadro completo da cena. Nós estávamos em descomunal desvantagem numérica, sem armas de fogo, apanhávamos para roncar e não poderíamos resistir por muito tempo, mas, no momento, ninguém se dava conta disso, só seguíamos lutando. Eu via braços erguidos, cabeçadas, homens atracados, joelhos atingindo partes íntimas, e ouvia uma vociferação indistinta composta pela mais vasta gama de xingamentos. Houve momentos em que um ou dois disparos se sobrepuseram à confusão, mas não deram conta de apartar a briga dessa vez. Como não caiu ninguém fulminado, presumo que os tiros foram dados para cima.

As forças tensionadas esmaeceram um pouco após cinco minutos, e só então nós ouvimos o soldado montado que berrava a plenos pulmões:

— PAREM! PAREM! PAREM! — ele anunciou. — O que vocês estão fazendo? — perguntou, ríspido, para o batalhão, e devia ser um oficial, porque os militares que havia pouco nos espancavam pareceram empalidecer diante da sua censura. — A ordem foi só para informar que a greve acabou, não para moê-los de pancada. Esses homens têm que estar inteiros para voltar ao trabalho imediatamente. Tem gente grande querendo viajar.

— E como é que a gente vai saber se a greve acabou mesmo ou só estão querendo passar a perna? — disse, sisudo, um camarada gorducho e barbudo, cujo nome eu só lembro que começava com B.

— É... verdade... — outro homem chegou atrás do soldado, botando os bofes para fora, da corrida. Reconheci-o de algumas reuniões sindicais que eu tinha visitado com Astrakhanov. — Leiam... aqui.

Ele estendeu um telegrama para o gorducho, que leu uma comunicação do sindicato, informando que as negociações tinham chegado ao fim, e que eles decidiram aceitar uma proposta do Ministério do Trabalho, acordando um aumento salarial de 50%, a ser implantado progressivamente, começando pelos empregados com os vencimentos mais defasados. Os detalhes seriam explicados na próxima assembleia pelos dirigentes locais. No mais, todos podiam e deviam voltar imediatamente ao trabalho, sem medo de perseguição ou retaliação — isso também fora garantido no acordo.

A autenticidade do documento foi atestada por alguns colegas que entendiam o código inserido no fim do telegrama. Não havia, portanto, mais nada a fazer. O aumento não fora exatamente de quanto pedíamos, mas já era alguma coisa. Tanto o sindicato quanto o Partido consideraram aquela greve uma vitória, apesar dos custos em algumas das cidades afetadas – e até por causa deles.

Era o que Silo me explicava numa ligação telefônica, na semana seguinte.

— ...menina, bateram tanto, mas tanto, que a população ficou até com pena — ele contou. — Mais um dia, e acho que teria saído até uma passeata de apoio. Ouvi falar que tinha gente organizando.

— A polícia daí já não é fácil em tempos calmos, né?

— São umas pestes. Não sei, esses bichos parecem que têm uma gana especial de espancar. Não têm mãe, só pode, devem ser filhos de chocadeira. Que nem o calhorda que te bateu. Falando nisso, como é que ficou essa história? Não te quebrou nada não, né?

— Não, eu fiquei com uns hematomas, mas foi porque entrei no quebra-pau. Estávamos na dúvida sobre se devíamos denunciar o policial que me agrediu ou não, porque, sabe, não seria natural um funcionário graduado e ainda por cima estrangeiro da Western deixar uma ofensa dessas passar batido. Mas também não queremos de ver nossos nomes e documentos na capa de um inquérito, mesmo que como vítimas.

— Ah, pois é. Vocês caíram entre a cruz e a caldeirinha. E como saíram dessa?

— Conseguimos nos escudar na fama de os ingleses não gostarem de expor. Stuart contou o caso para a chefia e pediu para tomarem providências discretas. Devem ter mexido os pauzinhos por baixo dos panos e conseguido que puxassem a orelha do soldado. Hoje recebi flores do batalhão, com um pedido extraoficial de desculpas.

— Hunf, desculpas. Só com marido gringo, mesmo.

— E não é? Mas acho que essa minha imunidade está chegando ao fim. Outra coisa que correu à boca pequena na empresa foi o fato de o Stuart ter participado ativamente da greve, junto com os trabalhadores.  Já começaram a olhá-lo torto. E essa nossa festa que não sai, hein?!

— O pessoal por aqui também está impaciente, dá um trabalhão segurá-los. Principalmente os militares que querem participar, e receiam não estarem no local quando ela acontecer, já que o Grande Chefe fica deslocando e reformando todos os festeiros do Exército. Mas os organizadores, na capital, dizem que ainda não obtiveram a aprovação do orçamento. Aí, sabe como é, fica difícil comprar os fogos de artifício necessários. Não é de uma festinha meia-boca que nós estamos falando, é do evento do século!

— Pois é, eu sei. Bom, vamos aprontando o que dá. Aqui já estamos preparando umas bombas de chocolate, treinando uns garçons...  Pouco ainda, mas o que dá.

— Por isso precisamos da verba liberada. Então tá. Até mais, Anita. Qualquer coisa, grita.

— Pode deixar — respondi, rindo. — Até mais, tio.

Eu poderia chamá-lo de "primo", mas "primo" ele era nos telegramas. Melhor aumentar o número de títulos para se referir à mesma pessoa: isso dificultaria unir todos os nomes em torno de uma mesma identidade.

Desliguei o telefone e passei à parte da frente da padaria, agradecendo o empréstimo do aparelho à Dona Rita, que apenas me deu uma piscadela. Aproveitei para comprar pão. O nosso tinha acabado.

Devia ser perto de umas seis horas quando eu saí na rua. Caminhava distraída pelos pensamentos sobre o que eu incluiria na próxima edição do panfleto do Partido local. Tinha que ser algo que falasse muito às emoções dos trabalhadores; com a Revolução se aproximando a passos largos, precisaríamos do máximo de gente que conseguíssemos recrutar. De repente, tropecei em um obstáculo; consegui me equilibrar e não ir ao chão. O pão não teve a mesma sorte.

Só após recolher o alimento – tentei fazê-lo em três segundos – me virei para ver no que eu tinha tropeçado, e de imediato arregalei os olhos.

Paiva estava sentado no chão, de uniforme, com as pernas estendidas em V por cima da calçada, e visivelmente embriagado. Resmungava e ria sozinho. Aproximei-me espantada. Ele até bebia, mas eu nunca o encontrara nesse estado pela cidade — como já tinha acontecido com outros camaradas.

— Mário? Está tudo bem? — perguntei, cautelosa.

Ele ergueu o rosto e me olhou atentamente, piscando, com dificuldades para me reconhecer. Então soltou uma exclamação prazerosa.

— Dona Anita! — ele disse, prolongando a última sílaba com voz pastosa, os braços estendidos. — Estou festejando, Dona Anita, festejando. Quer? — ele me estendeu a garrafa. E depois a recolheu num abraço. — Com-pra! — exclamou, acabando-se de rir da própria brincadeira. Sacudi a cabeça, perplexa.

— Festejando por quê?

— Estou na rua, Dona Anita.

— Bem, isso eu estou vendo.

— Não! Eu estou na rua. Na rua. Na rua da amargura — e, abraçando novamente a garrafa, ele começou a chorar. Arregalei os olhos, começando a compreender.

— Você foi demitido? — Baixando a voz, acrescentei, apressada: — Te descobriram?

Ele ignorou minhas perguntas por um momento, continuando a choramingar.

— Todos — balbuciou, então. — Chutaram todos. Quatrocentos homens... tanto pai de família... Sem mais nem menos, só um canetaço. Chega dessa gente, Dona Anita, chega! Eu quero a cabeça deles — rosnou, passando da tristeza à raiva, os dentes rangendo.

Ele limpou a garrafa de cachaça com fervor, e então quebrou-a no chão.

Desviei-me dos estilhaços, enquanto Paiva gritava, erguendo o bocal de vidro verde que ficara em sua mão:

— Viva a Revolução!

Na outra, ele sacudia o revólver.

***

Notas:

Música do capítulo (na mídia do capítulo): "Os oinho dela", composição de Hekel Tavares e Josué de Oliveira, interpretação do cantor carioca Januário de Oliveira, 1930.

Estamos no checkpoint. Não deixem de falar sobre seus palpites para os próximos capítulos. Os comentários eu responderei assim que recuperar meu celular. 

Em novembro tem NaNoWriMo. Torçam para tudo dar certo, e em dezembro teremos o final da Parte 2 aqui. Beijos e até lá.


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