HUMANO [COMPLETO]

By mimapumpkin

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#4 em ficção-científica em 25/04/2018 Que preço você está disposto a pagar para ser aceito? ESCRITO EM PARCER... More

Querido leitor
SINOPSE
SOBRE AS AUTORAS
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Não é capítulo.
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Epílogo
A seguir...
Elenco da série na Netflix

1

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By mimapumpkin




Caros leitores da versão antiga: POR FAVOR, NADA DE SPOILERS NOS COMENTÁRIOS.


Ninguém parece estranhar a marcha cambaleante de pessoas empoeiradas e feridas ao longo da praia paradisíaca. Por mais que o talho aberto e purulento, ainda sangrando, logo acima dos meus seios, pareça fora de lugar por aqui — onde todos estão bem-vestidos e alimentados, sorridentes e saudáveis — somos tratados e observados como mera rotina. Apenas mais uma leva de imigrantes pré-selecionados.

— Hadassa, espera!

Olho para trás, na direção da voz, e vejo Lean se apressando pela areia, tentando me alcançar. Mais adiante, percebo o olhar assustado de uma mulher com um enorme e multicolorido chapéu que puxa uma criança para si, como se estivesse protegendo-a.

Protegendo de quem? De nós?

Lean aperta meu braço e se achega mais a mim, buscando refúgio também.

Os nativos não se preocupam em se levantar das esteiras onde tomam sol. Os menos desinteressados acompanham nossa marcha com o olhar, à distância.

A caminhada pela areia fofa é extenuante demais para quem já andou tanto. E o fato de que estou tremendo não ajuda em nada. Não sei dizer até que ponto isso é uma reação meramente física e até que ponto, emocional.

— Estou com medo — Lean sussurra.

Com um leve gemido de dor, deposito minha mão trêmula em sua cabeça e acaricio seus cabelos negros cobertos de pó com as pontas dos dedos. Em seu couro cabeludo há resquícios de sangue seco. Um pouco ainda está úmido. Isso me remete a imagens que não desejo reviver agora. Então, respiro fundo e as empurro para uma caixinha em minha mente. Tudo em mim clama para que eu corra daqui e me esconda em algum canto qualquer, que eu me curve numa posição fetal no chão e chore até perder os sentidos.

— Não há motivo para temer — digo, lutando para esticar meus lábios num sorriso mais ou menos firme. — Nós chegamos, vê? E estamos vivas.

Ela balança o rosto rapidamente, franzindo os olhos contra o reflexo do sol, para me ver melhor. Desvio o olhar por medo de fraquejar e as lágrimas escaparem.

O horizonte no oceano é diferente aqui. Em Arabah, o céu alterna entre um tom de violeta profundo e ferrugem. Mas aqui é azul, salpicado com nuvens brancas, como ovelhas-bebês. E é dolorosamente iluminado. Só tinha visto algo assim em pinturas e secretamente eu duvidava de que realmente existisse. É tão maravilhoso que assusta. Não parece natural.

Do outro lado, por trás das florestas, algumas poucas edificações humanas despontam, como cabanas quadradas de concreto e vidro que se esticam por dezenas de metros de altura.

A garota puxa a barra esfarrapada do que um dia foi meu belíssimo traje de viagem. Minha mãe se dedicara bastante para produzi-lo com fibras de algodão e restos de material sintético que coletou ao longo da jornada. Todas as noites ao encontrarmos uma caverna e, enquanto nos aprontávamos para descansar, ela buscava a luz da lua ou até mesmo se arriscava acendendo uma pequena fogueira e costurava até depois de todos estarmos adormecidos.

Pisco algumas vezes e volto a encarar a pré-adolescente que insistentemente tenta chamar minha atenção.

— O que é? — pergunto.

Ela acena com a cabeça para trás e só aí que vejo quão poucos de nós realmente somos. Numa rápida avaliação, conto menos de duas dúzias. É só isso mesmo?

— Onde está Luka?

Lágrimas escapam de seus olhos avermelhados. Elas escorrem por seu rosto deixando um trajeto turvo sobre as bochechas encardidas. Paraliso por um instante, enquanto tento formular uma explicação palatável para a menina. Mas nada vem. Onde estáLuka?

Ajusto o fardo de couro nas minhas costas e, puxando-a pelo braço, acelero o passo até o homem que estamos seguindo, o único nativo que interagiu com a gente até agora.

— Ei! — grito, enquanto praticamente corro até ele. Lean quase tropeça diversas vezes, mas ainda consegue me acompanhar. — Ei!

Lembro no fundo da minha mente que há alguns segundos eu mal conseguia andar de cansaço, mas, como costuma acontecer sempre que me foco num novo objetivo, meu corpo arranca forças de alguma reserva escondida.

O homem lentamente desacelera o passo e dá meia-volta, me encarando. Paro diante dele, coloco as mãos na cintura e, ofegante, digo:

— Onde... — Pontos escuros começam a se espalhar, do centro até as bordas do meu campo de visão.

Não ouse ficar inconsciente agora, Hadassa. Você chegou longe demais para isso. Não ouse!

Engulo em seco. Suor cai por cima dos meus olhos.

— Onde está o resto? — pergunto finalmente.

Ele olha desinteressado por cima do meu ombro.

— Isso é tudo — diz.

— Não, não. — Um líquido ácido sobe pela minha garganta. — Eu vi... vi outros na fronteira.

Não quero chorar diante dele. Não posso. Lean está aqui. Estas pessoas todas estão aqui. E mamãe sempre dizia: Diante de predadores, nunca demonstre fraqueza.

— Isso é tudo — ele confirma com uma expressão debochada e volta a andar. — Vamos, precisamos continuar. 

Fico parada por vários segundos, incapaz de reagir. Estou em pânico e preciso de toda a determinação restante em mim para empurrar mais esse sentimento para dentro da caixinha de emoções reservadas que não devo tocar agora.

Aperto a mão de Lean e reviro os olhos, ensaiando uma postura tranquila: 

— Certamente os outros ainda estão chegando.

— Mas como? — Lean insiste. — Você acha que eles vão abrir a fronteira novamente? O que fizeram com Luka?

Eu a aperto contra mim e o seu toque faz a ferida embaixo do meu seio arder, mas seguro o grito na traquéia e não a afasto.

— Você sabe que ele não gosta de ficar sem mim. Eu o ajudo — a menina balbucia, entre soluços. — Sou a neta que ele nunca teve.

— Quer saber o que eu acho?

Uma brisa do mar roça suavemente e balança alguns fios de suas mechas pesadas. Ela funga. Tomo isso como autorização para prosseguir e falo no jeito mais doce possível:

— Acho que se tudo que nos disseram a respeito de Tibbutz for verdade, eles estão agora mesmo em algum lugar tomando uma deliciosa infusão de ervas e esticando os músculos numa esteira como essas. Talvez eles tenham sido selecionados, por estarem mais cansados do que a gente, pra serem recebidos primeiro.

— Você acha mesmo?

— Olha essa gente toda. — Aponto. — Você já viu pessoas tão limpas e bem-alimentadas como essas?

Ela vira o rosto de um lado para o outro, como se só agora as estivesse percebendo.

— Sabe o que isso significa? — continuo. — Nós chegamos, Lean. Nós chegamos mesmo!

Por um instante sou tão convincente no consolo e na empolgação fingida que não sei mais dizer se estou interpretando. Chegar aqui era, afinal, o nosso objetivo desde o início. A realização de um sonho.

Um sonho que custou a vida das pessoas que eu mais amava.

Ainda é difícil acreditar que esse mar, tão sereno e convidativo, seja o mesmo que nos mastigou com turbulências e tempestades dias atrás.

De repente, o homem que nos guia dá as costas para o oceano e nós fazemos o mesmo, caminhando em direção à floresta densa que delineia a praia.

Entre as árvores, lentamente se torna distinto um único edifício branco, com colunas de mármore cercando toda a fachada. Há uma inscrição no topo, mas está escrita no alfabeto tibbutzino e ainda não tenho prática suficiente para interpretá-lo tão rapidamente.

O homem sobe uma escadaria de mármore branco, com umas duas dúzias de degraus, e nós o seguimos. Eu me preocupo porque estamos deixando para trás um rastro barrento e ensanguentado no lugar de pegadas. Mas olho ao meu redor e ninguém parece se importar.

Assim que nossos pés tocam o saguão interior, somos recepcionados por um grupo de pessoas vestidas de azul-cobalto dos pés à cabeça. Elas agem de forma coordenada, recolhendo e apoiando os mais danificados, limpando as feridas mais grotescas e oferecendo refrescos para o resto de nós, aqueles cuja maior avaria está apenas na alma. Tudo é tão claro e brilhante que minha cabeça começa a latejar.

Os dedos de Lean escapam dos meus e ela grita. Alguém está puxando-a para longe e não tenho sequer a presença de espírito para reagir.

— Ela vai ficar bem — uma voz feminina interrompe qualquer reação possível. Vem da mulher agachada diante de mim, limpando o machucado sob meu seio. Ela dá leves tapinhas com cuidado ao redor da ferida com um tecido extremamente macio. — Só querem cuidar dela.

É a primeira mulher tibbutzina a falar comigo, então fico surpresa com o sotaque delicado, o timbre firme, mas doce. Bem diferente do bruto que nos recebeu. Ela parece confiável de uma forma que considero poucas pessoas. Mesmo assim, antes de me permitir relaxar, verifico que depositam a garota no chão a uns dez metros de distância e começam a tratar dela como estão fazendo comigo.

— E os outros? — pergunto.

Minha voz soa estranhamente arranhada de emoção. Agora que Lean está longe, acho que não vou conseguir reservar coisas na caixinha emocional por muito tempo.

A mulher pausa por um instante e depois retoma o que está fazendo.

— Desculpe, eu não sei.

Balanço a cabeça rapidamente e franzo as sobrancelhas, tentando convencer a mim mesma de que estão bem, assim como fiz com Lean mais cedo. Alguém passa com uma bandeja e me oferece uma bebida.

— Hadassa é seu nome, certo?

Ainda estou sorvendo o líquido gelado do copo que entregaram nas minhas mãos, quando tento focalizar o espectro de onde a voz masculina que pronunciara meu nome saíra. Meus olhos têm dificuldade de se ajustar à luz aqui e, especialmente dentro desse prédio ela parece se multiplicar exponencialmente, refletida em mil superfícies vítreas no topo da edificação. Olhar para baixo era mais fácil, mas o rapaz é bem mais alto do que eu. Ele estende a mão para mim, o punho envolvido por um aparato reluzente, para o que me parece um cumprimento, e eu retribuo o gesto.

— Serei seu treinador nos próximos meses. Até o início das provas — explica.

Quando finalmente meus olhos se ajustam e eu o enxergo totalmente, percebo que o próprio ser só pode ser parte da luz. Para os meus olhos cansados de guerra, morte e destruição, ele me parece quase uma figura mitológica, um homem cuja perfeição só ouvira descrita em narrativas dos lábios dos nossos idosos. Tenho tantas perguntas dentro de mim, mas por um instante todas me parecem inapropriadas para o momento.

— Provas? — é tudo que consigo pronunciar.

Ele tem uma placa metálica na mão e seus dedos pressionam rapidamente diferentes pontos e a observa como se lesse algo. Depois de alguns segundos, desvia o olhar do objeto e se volta para mim e para a mulher que acaba de passar unguentos sobre as minhas feridas. Ela se levanta e vai embora, sem dizer palavra alguma.

— Ainda é cedo para falarmos sobre sua cidadania. Prepare suas coisas para partirmos. Terá tempo para descansar no transporte.

— Certo. — Preciso agora me esforçar para fazer a coisa certa e não contrariar ninguém. — Só vou chamar a...

Quando me viro na direção de onde Lean estava, me deparo assustada com um espaço vazio. Há apenas as manchas de barro e sangue no chão que denunciam que a garota esteve ali. O treinador parece perceber no meu olhar que há algo de errado, porque diz:

— Está tudo bem?

— Onde... onde está a Lean? — pronuncio com dificuldade, manquejando na direção da mancha no chão e me esforçando para manter a calma.

— Muitos dos seus colegas já foram transportados para as províncias onde ficarão alocados.

Ao nosso redor, há agora praticamente apenas desses trabalhadores tibbutzinos vestidos de azul e alguns poucos sobreviventes que mal conheço.

Meus olhos queimam em prenúncio de que estou prestes a desabar e chorar incontrolavelmente.

Nem pude me despedir.

— Faça o que for, mas não os deixe vê-la chorar.

Eu me sobressalto com o sussurro grave do rapaz, bem próximo ao meu ouvido. Não há nada de reconfortante em seu tom. Pelo contrário, suas palavras soam quase como uma ordem.

Pisco os olhos rapidamente, me esforçando para impedir a abertura da barragem de lágrimas.

— Você não sabe pelo que passamos... Meus pais, eles... — começo, as palavras saindo entrecortadas pela respiração errática e o descontrole emocional.

— E pare de reclamar — ele me interrompe, mais uma vez com um tom cortante. — Considere essa a lição número um do seu treinamento.

Engulo o choro imediatamente, chocada com a falta de empatia da criatura. Meu rosto queima, à medida que todas as emoções que eu tinha trancafiado na caixinha começam a escapar na forma de ira.

— Me explica só uma coisa. Todo os homens de Tibbutz são assim babacas ou estou tendo a sorte de encontrar uma seleção especial deles?

O rapaz, pela primeira vez, sorri, revelando covinhas em ambos os lados do rosto.

— Assim é melhor.

Eu o encaro, confusa, o rosto ainda ardendo de raiva.

— Revolta, ira, fúria. Esses são do tipo de sentimento que podemos usar para você poder ficar aqui, está bem? Mas não posso trabalhar com auto-piedade. Nunca. Então faça a nós dois o favor de deixar essa atitude para trás com o resto do seu passado.

O resto do meu passado? Também conhecido como toda a minha vida?

Inspiro fundo. Expiro. Preciso manter isso sob controle.

— Você não precisa se preocupar — digo, com a voz novamente fraca e trêmula. Meus músculos estão tão rígidos que até mesmo respirar dói. — Não há para o quê retornar. Minha vinda para cá foi uma passagem só de ida.

— Ótimo — diz, acenando com a cabeça numa direção. — Isso é tudo? Já podemos ir?

E dá as costas para mim, caminhando na direção que indicou. Imagino que espera que eu o siga. E eu o faço por alguns minutos, até atravessarmos uma porta que nos leva a uma clareira no meio da floresta.

No centro da clareira há uma cabine colocada sobre trilhos. A cabine tem espaço suficiente para no mínimo umas oito pessoas, mas não me parece que há mais ninguém por perto. Os únicos ruídos que ouvimos são de pássaros e folhas ao vento.

— Treinador? — sussurro tão baixinho que não creio que possa ter me escutado.

— É Raah. — Ele dá meia-volta para me encarar. — Meu nome é Raah Salz.

— Raah? — repito, tentando controlar o tremor na mandíbula. Ajusto o peso da bolsa nas minhas costas. — Eu acho... acho que não vou conseguir.

— Não vai conseguir?

— Acho que... vou chorar.

As lágrimas imediatamente se manifestam para dar apoio às palavras pronunciadas, empoçando ao redor dos meus olhos.

Raah, meu treinador e o jovem mais bonito que já vi na vida, olha de um lado para o outro antes de caminhar a passos largos até mim. Por um segundo, acho que vai brigar novamente. Mas, de repente, deposita uma mão sobre o meu queixo e com ela ergue meu rosto. Então, sussurra:

— Só cinco minutos. Só uma vez por dia. Só comigo, entendido?

Assinto, balançando o rosto rapidamente; as lágrimas já caem copiosas sobre minha bochecha. Diante da falta de respostas, ele prossegue:

— Será nosso segredo, está bem? Promete?

— Prometo — digo, assim que meus soluços permitem.

Raah me observa por um tempo, o rosto indecifrável, até que abre os lábios como se quisesse acrescentar mais alguma coisa. Mas, então, suspira, como se desistisse do que quer que fosse, e diz:

— Seus cinco minutos acabaram.


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