Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 65 - Deslize

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By erikasbat

Se o Facebook não me enganou, hoje (29/03/2018) é aniversário da nossa caríssima thecrowrites. Então, o capítulo sai ainda no dia 29, em homenagem a ela! Acompanhem-me nos abraços e nos desejos de felicidade àquela que gosta de implicar o Astra e roubaria o Pavel se tivesse oportunidade.

Um disappointed Pavel para quem não acompanhar.

A propósito, esta imagem... neste capítulo... bom, apenas leiam. Até mais.

***

– Venho me despedir porque estou voltando para o Rio – a voz de Sisson sobrepôs-se aos rumores que dominavam a sala, respondendo à indagação de que eles se compunham.

– Que pena, camarada – ouviu-se a voz de Lauro Lago, da segunda fileira, em meio à obscuridade. – Pensamos que lutaria conosco. Mas se conseguir chegar no Rio até a data da insurreição, será útil para preparar reforços ou os levantes de apoio.

– Eu não vou ao Rio lutar – Sisson esclareceu, em tom um tanto seco. – E vocês tampouco vão lutar por aqui.

A essa declaração, os ruídos cresceram, elevando-se a protestos indignados, alguns quase aos gritos. Ouvia-se "Palhaçada!", "'Tão brincando com a nossa cara, só pode" e "Bando de amarelões!" nos mais diversos timbres e entonações. Até eu fiquei um pouco irritada, apesar de não me surpreender essa mudança de planos. Troquei um olhar com Astrakhanov, e vi que ele pensava a mesma coisa.

"Eu avisei".

Os avisados, porém, estavam no grupo dos que se sentiram mais ultrajados.

– Como assim, camarada, como assim? – interpelou o motorista Epifânio, de algum lugar atrás de mim. – Nós nos empenhamos, cavamos armas sabe-se lá de onde, juntamos homens, nos arriscamos com reuniões frequentes...

– Ótimo. Fizeram tudo o que deviam ter feito nos últimos seis meses – Sisson cortou, azedo, e a chicotada foi tão forte que todo mundo se calou. – Camaradas, perdoem – pediu, então, o aliancista, em tom mais brando. – Mas façam uma análise honesta dos seus contingentes e me respondam: estariam prontos a iniciar o levante sozinhos?

Ele recebeu silêncio por resposta.

– Mesmo após a intensificação dos esforços? – o silêncio se prolongou, com uns poucos resmungos ameaçando rompê-lo, mas ficando só na ameaça. – Foi o que pensei. Também não acho que seriam prudentes esforços isolados do Rio Grande do Norte. Pela proximidade dos estados na região, precisaríamos de ao menos dois para formar uma base sólida de defesa, caso contrário o governo simplesmente deslocaria as forças dos estados vizinhos, coisa de um ou dois dias de marcha, e esmagaria os rebeldes.

– Mas não foi para isso mesmo que o camarada foi a Pernambuco? Para conseguir o apoio deles? – indagou um dos correligionários que eu encontrara poucas vezes e ainda não conhecia de nome.

– Justamente, e não consegui – explicou Sisson. Quando o pessoal começou a tacar pedra nos colegas pernambucanos, ele ergueu a mão e, ainda que meio a contragosto, pois era visível que também se ressentia da escolha do Partido vizinho, defendeu: – Eles estão numa situação complexa por lá. Parte da liderança presa, a polícia em cima mais do que nunca, enfim, até cogitaram nos ajudar, mas exigiram primeiro uma consulta à liderança na Capital, que cortou nossas asinhas. Disseram que não estão em condições de chamar um levante exatamente agora.

Lembrei-me das palavras de Prestes na reunião em que nos mandara para o Nordeste, vangloriando-se dos seus contatos, e dizendo que a Revolução estava a uma convocação de distância. "Basta eu retomar o contato com eles, e se colocarão à disposição com tudo o que possuem".

Ah, tá.

Praxedes, por seu turno, protestou.

– Mas e eles lá têm que estar prontos para alguma coisa? Não somos nós que temos que acender a chama e ir descendo? Que se preparem enquanto estamos a caminho!

– Um momento, Camarada Praxedes! – eu interrompi, erguendo o indicador. – Houve uma mudança de linha, agora a Revolução deve ser deflagrada simultaneamente em todo o país. E os camaradas, pelo menos os da direção estadual, já estavam cientes disso, porque eu e John comunicamos essa instrução na primeira reunião após voltarmos de Recife.

Ora, era preciso colocar os pingos nos ii. Eu não admitiria que fizessem parecer como se eu e Astrakhanov estivéssemos sonegando informação ou descumprindo nossas obrigações de elo entre o quartel-general e o comando local.

– Inclusive expressamos nossa dúvida quanto ao sucesso do plano – "John" me apoiou, ajeitando os óculos, que hoje decidira usar, – mas não nos cabia afrontar uma decisão massiva da direção local.

Praxedes emitiu uns resmungos contrariados.

– De fato – admitiu, por fim. – Mas pensei que, quando vissem nossa disposição, mudariam de ideia.

A quietude nos envolveu por um momento, quebrada por um "eu também" sussurrado por Sisson. Eles tinham um pouco de razão, na verdade. Olhando para aquelas dezenas de rostos crestados pelo trabalho na roça de sol a sol, para aqueles braços magros-desnutridos, que mal suportavam o peso dos fuzis, e ainda assim tinham se esforçado tanto na última semana para adquirir perícia em manuseá-los... Será que depois desse alarme falso, confiariam em nós novamente, atenderiam ao próximo chamado?

– E nós? – perguntou um dos rostos rurais, me arrancando do meu fluxo de pensamento. – O que fazemos agora?

– Continuem treinando – retrucou Sisson, catando o chapéu da mesinha onde o depositara ao entrar, e mostrando que dava a reunião por encerrada. – A Revolução acontecerá, e breve, só não será em agosto. Mas Getúlio não nos intimidará! – num rompante de energia, ele sacudiu o punho no ar. – Tive uma estadia muito agradável na região, foi revigorante conviver com seus ânimos dispostos – elogiou. – Ficaria aqui com o maior prazer, mas não posso deixar que me apanhem como apanharam Cabanas. Alguém tem que ficar solto para continuar o legado da Aliança.

– Entendemos, camarada – Praxedes tranquilizou-o, em nome de todos nós. – Já somos gratos por toda articulação que realizou na região. Certamente seu esforço não ficará infrutífero. E esperamos que tenha o mesmo sucesso no Sul.

– Obrigado, camarada – Sisson apertou a mão dele, levemente emocionado. – A articulação aqui não cessará – avisou. – Logo deve vir um camarada de Pernambuco para pô-los em contato com setores progressistas do Exército.

– Hm – mesmo na obscuridade da sala foi possível ler algum desagrado no rosto de Praxedes a essa informação. Que, aliás, ele também já tinha recebido de mim, mas pelo jeito sublimara.

– Era uma das coisas que eu mesmo faria, se ficasse mais tempo, mas, enfim... – voltando-se para o grande grupo, desejou. – Boa sorte. Boa sorte para todos nós.

Aproveitando-nos do adiantado da hora e do isolamento da fazenda, nos despedimos de Sisson com um canto coletivo do Hino da Internacional – que, obviamente, só um quarto dos presentes conhecia, e a maioria, não inteiro. Mas o que vale é a intenção.

O trem que levava o aliancista partiu de Natal ao amanhecer do dia seguinte, e só duas semanas mais tarde outro trem traria um novo aliado.

Nesse meio tempo, como esperado, desanimamos.

A ideia era continuarmos os treinamentos naquela mesma fazenda, como Sisson recomendara, mas o dono da chácara acabou se assustando com algumas indagações de vizinhos que encontrou na cidade, e pediu para encontrarmos outro lugar. A única fazenda disponível nas condições que precisávamos ficava nos arredores de Caicó. Não era tão longe, mas levava quase um dia de galope para chegar lá, e isso já tornava inviável o trânsito constante do pessoal entre Natal e o campo de treinamento. Essa mudança inviabilizou a continuação do curso tanto para alguns alunos como para professores.

Astrakhanov se recusou a me deixar ir me hospedar na fazenda sozinha. Tivemos mais de uma discussão sobre isso. Ele tinha que ficar em Natal durante a semana por causa do emprego; e se, nesse meio tempo, a Polícia aparecesse no sítio? Como ele explicaria para os superiores que não estava presente para me proteger? Uma consulta breve a Prestes e Berger solucionou a questão; disseram-me que eu tinha sido designada para Natal, e não para a zona rural; dar aulas era tarefa de Tapajós, e podíamos escolher algum camarada local habilidoso que se dispusesse a ajudá-lo. Precisavam de mim para o jornal e para a correspondência... e para a supervisão discreta dos camaradas do Partido, também.

Então tive que me conformar com a destituição das funções letivas. O chato é que nas outras funções também não havia muito o que fazer. Depois de negligenciar os assuntos individuais por uma semana e pouco de dedicação exclusiva aos interesses coletivos, os colegas estavam todos envolvidos com as pendências de suas vidas pessoais. Houve pouquíssimas reuniões, no jornal eu me limitava a artigos genéricos sobre teoria ou motivacionais, tentando debilmente levantar os ânimos dos camaradas, e continuava a ir periodicamente ao correio, sempre em busca de novos telegramas ou cartas para decifrar.

A maioria dessas idas era infrutífera, porque o quartel-general estava envolvido nos seus próprios problemas para oficializar e operacionalizar a mudança de linha, e tinham nos deixado um tanto de lado. No comecinho de agosto, recebemos uma cópia do Classe Operária, com a transcrição de uma resolução sancionada no 2º Congresso Anual do PCB, pela qual adotavam a linha de revolução anti-imperialista no país inteiro. Estava sagrada a nova técnica. O jornal veio, como de hábito, pelos contatos de Santa. Meu intercâmbio com ele era constante, já que estávamos ambos encarregados da correspondência. E ele continuava fazendo alguns servicinhos por fora para mim.

– Dona Anita – o homem me confidenciou, no dia em que me entregou a cópia do Classe Operária, em um encontro "casual" na feira – descobri quem trouxe o cartão de Odessa.

– Mesmo? Quem foi? – questionei, num reflexo. Santa fez uma careta: ele nunca revelava suas fontes. – Esqueça – acrescentei, rapidamente.

Santa anuiu e continuou a andar ao meu lado em direção à barraca de farinha de mandioca.

– Então, ele está uns dias de férias em terra, mas o navio parte no dia dez, e vai pegar carga pra Odessa no próximo porto de novo. Se quiser mandar aquele cartão postal pra sua mãe, aproveita a oportunidade.

Eu disfarcei o impacto da notícia em mim encarando atentamente o saco de farinha com ares de madame, como se estivesse examinando sua qualidade. De qualquer jeito compraria aquela: era a mais barata, e eu andava com pouco dinheiro.

– Obrigada por informar, Sr. Lopes – respondi, comedida. – Até quando eu posso entregar o cartão, se decidir mandar?

– Até a véspera eu dou um jeito de repassar pra ele – prometeu.

– E – arrisquei, interrompendo-me.

Recebi o pacote de farinha e paguei, enquanto reunia coragem, e segui para outra barraca, com Santa atrás, olhando-me com ar inquisitivo.

– Se eu quiser mandar algo mais extenso que um postal? Ele colocaria no correio?

– Quer dizer uma carta? – concordei. – Não perguntei, mas quem põe cartão, põe carta, não é? O correio é o mesmo – ele deu de ombros.

Anui, agradeci novamente a informação, e Santa se afastou, com um toque de despedida no chapéu. A conversa já tinha demorado mais que a prudência recomendava, à luz do dia e em lugar público. Olhei em volta, suspirando aliviada ao não me deparar com nenhuma vizinha ou conhecido entre os transeuntes à minha volta. O jornal devidamente oculto na sacola de compras, embaixo de vários pacotes de alimentos, segui pensativa para casa.

Aproveita a oportunidade.

A tentação de aproveitá-la era grande, mas não, como se deve imaginar, para me corresponder com minha mãe. As idas ao correio continuavam sendo fonte de culpa constante, e o tempo livre não contribuía em meu favor. Todos estavam ocupados em suas vidas pessoais agora, e que vida pessoal eu tinha? Desde que entrara no Partido que minhas ocupações eram militância e treinamento, e minhas amizades, as pessoas que conhecera no exercício dessas ocupações.

Mesmo acidentalmente, como Pavel.

E ele, que costumava ser minha fuga do cotidiano da ELI, começou a preencher meu cotidiano ali também. Pensava muito nele, desde o dia da conversa com Astrakhanov – que, também desde a ocasião, cessara de todo seus avanços românticos. Entre a rotina de automanutenção, redações de artigos, idas ao correio e conversas vazias com as vizinhas quando me pegavam no quintal, um pensamento sobre Pavel se insinuava, e cada vez menos eu me esforçava em meus golpes fracos para expulsá-los. Como será que estaria ele? O que estaria fazendo? Odiando-me, talvez. Ou nem isso eu merecia mais, devia ter virado apenas outro retrato da coleção. Eu não sabia, não tinha como saber, por causa da promessa que fora impedida de cumprir.

Aproveita a oportunidade.

– Anita, vou encontrar o Mendoza fora da cidade para passar a ele as informações sobre os lugares de encontro e as senhas – Astrakhanov avisou. Era meio-dia do dia nove, uma sexta-feira, e calhara de cair nesse dia a folga do tenente, para a sorte de Silo, pois assim puderam designá-lo para o trabalho.

– Não vai almoçar? – questionei, relanceando o olhar para o relógio, enquanto mexia o pirão de abóbora (ou jerimum, como chamavam os colegas de Natal) com uma colher de pau. – Já vai ficar pronto.

– Não, que se não o coitado vai ficar lá exposto esperando. Mas eu não demoro, é coisa de umas duas horas, contando ida e volta.

– Certo, vou tentar manter aquecido – prometi.

Astrakhanov colocou o chapéu e tocou-o com dois dedos em agradecimento, antes de sair.

O mesmo gesto de Santa, dias atrás.

Aproveita a oportunidade.

Lembrei de nossa conversa, e todos os adiamentos e desvios a que eu obrigava minha mente quando ela insinuava a possibilidade caíram por terra.

Eu ia escrever uma carta.

Apaguei o fogo de sob as panelas e corri para o meu quarto. Atribulada, peguei um par de folhas de ofício, das que usava para os rascunhos do jornal, e uma caneta. Não poderia usar a máquina de escrever, o teclado não era em cirílico, e o mundo de Pasha ainda se restringia ao que existia em sua própria língua. Será que eu ainda conseguia escrever em russo?

Minha mão tremia de ansiedade. Logo descobri que russo manuscrito era como andar de bicicleta – uma vez que você tenha de fato aprendido, não esquece, só balança um pouco no começo.

Desprezei data e local – velho costume adquirido na ELI; eu só datava minhas cartas se queria fornecer uma pista falsa – e fui direto para a saudação.

Olá, Pasha. Como você está?

Horrivelmente fútil. Isso lá era jeito de começar uma carta depois de sete, quase oito meses de silêncio? Larguei a caneta. Será que sequer valia de algo escrever após tanto tempo?

Desânimo e amargor se abateram sobre mim.

Aproveita a oportunidade.

Retomei a caneta. Antes tarde do que nunca. Antes um cumprimento tosco que nenhum. Foi difícil prosseguir dali, porém.

Eu sabia o que queria lhe dizer.

Não está sendo fácil.

Me sinto só.

Queria você aqui, para me confortar com seus consolos duvidosos, conselhos péssimos, ou sem falar nada, afinal, eu nunca posso te contar o que realmente importa até que seja tarde demais.

Eu te amo.

Não tive coragem, porém. Uma carta assim não lhe faria muito mais mal do que bem? Nem sei, mas, de qualquer forma, eu sempre fora péssima em expressar meus sentimentos diretamente. Por isso levara um ano tentando fazê-lo adivinhar por sinais que eu... não lhe era de todo indiferente, como diziam nos romances, e só como medida desesperada o confrontara.

Ele mais uma vez teria que adivinhar.

Ya skutchayu po tebe. Envergonhada por meu longo silêncio, incerta sobre como estariam as coisas do outro lado, voltara à estaca zero. Enfiei aquele "sinto sua falta" entre um comentário bobo sobre um pé de maracujá no meu quintal e outro a respeito do Cruzeiro do Sul, e torci para que ele sentisse a discrepância de tom e adivinhasse tudo que aquelas palavras escapadas continham.

Sinto sua falta. Afinal, essa frase era a essência da carta, sua única razão de existir. Sinto sua falta, Pavel, e nunca deixarei de sentir.

Saí do quarto levando o produto do meu trabalho, sentindo-me parcialmente mais leve. Consultei o relógio: já se tinham esvaído mais de hora e meia nesse trabalho. Peguei nova folha de ofício e fui para a sala, onde havia outra escrivaninha com material de escritório, ocasionalmente usada por Astrakhanov. A goma e o mata-borrão ficavam ali.

Confeccionei um envelope colando as laterais da folha de sulfite, e, enquanto aguardava que secasse, passei o mata-borrão na carta. Relendo-a por cima, detectei alguns erros, mas não dava tempo de revisar, muito menos de passar a limpo. Astrakhanov chegaria a qualquer momento, e eu nem tinha terminado o almoço. Ele nada sabia sobre as minhas correspondências pessoais, e eu tinha o palpite de que não gostaria de saber.

Especialmente desta.

O envelope mal terminara de secar quando o peguei para endereçá-lo. Declinei o endereço escrito tantas vezes que ainda sabia de cor. Obviamente não o entregaria assim puro a Santa. Mais tarde eu colocaria um envelope exterior com um endereço qualquer, como fazia com os postais. Mas pelo menos queria terminar logo aquela etapa. Dobrei a carta e a encerrei no envelope, enquanto pensava em que desculpa daria a Astrakhanov para sair de tarde desacompanhada, a fim de encontrar Santa e entregar-lhe a missiva.

Eu estava passando a goma apressadamente no último lado aberto do envelope quando um ruído me sobressaltou. Olhei por cima do ombro, e divisei Astrakhanov passando pela janela lá fora. Maldição! Eu precisava dar um sumiço naquela carta antes que ele me pegasse com ela. O pânico, porém, me fez andar como uma barata tonta de um lado para o outro da sala, olhando para vários possíveis esconderijos, sem achar nenhum deles bom o bastante. Acabei abrindo a gaveta da escrivaninha e enfiando o papel lá de qualquer jeito, virando-me para o tenente, que acabava de se delinear na porta do cômodo, e cumprimentando-o com o sorriso mais inocente de que eu era capaz, enquanto protegia com o corpo a gaveta mal fechada.

Ocorre que o meu sorriso mais inocente era um completo atestado de culpa, e Astrakhanov farejou de imediato que algo estava fora de lugar.

Franzindo as sobrancelhas, ele se aproximou de mim com ar desconfiado.

– O que houve aqui? – perguntou, examinando o entorno minuciosamente.

– N-nada... Deu tudo certo com o Silo? Não se desencontraram? Ele chegou bem? – desconversei. Se eu conseguisse absorvê-lo num diálogo sobre a missão, ele logo dispersaria o sentimento de algo fora do lugar.

Astrakhanov, porém, não se deixou levar pela minha estratégia. Seus olhos bateram no mata-borrão, e se arregalaram de imediato. Cortou pela metade um palavrão em sua língua natal ao reconhecê-la nas letras que se desenhavam espelhadas no utensílio. Ele ergueu o olhar para o meu rosto, e me pareceu que seus olhos tinham passado de azul a vermelho, tamanha a fúria que flamejava neles.

– Russo?! – ele rosnou, incrédulo. – O que você estava escrevendo?

– Só estava praticando, nada de importante – balbuciei, recuando e empurrando com os quadris a gaveta, de modo a fechá-la de todo.

Astrakhanov não engoliu.

– Anita... – emitiu, em tom ameaçador, estendendo a mão direita.

Permaneci imóvel como uma estátua, e suponho que meu rosto deve ter espelhado a expressão de uma criança mimada. Pelo menos eu conseguia sentir que estava fazendo um biquinho.

Ao ver que eu não cederia, Astrakhanov me empurrou firmemente para o lado, e, enquanto eu protestava, abriu depressa a gaveta e extraiu dela a carta que eu tentava ocultar.

Dessa vez ele não conseguiu segurar o palavrão.

Contemplava o envelope, sacudindo-o em descrença. O sangue subira-lhe todo ao rosto e temi que tivesse uma apoplexia a despeito da juventude. Quando parou de abrir e fechar a boca feito um peixe fora d'água e recuperou o domínio de alguma língua permitida para os ouvidos dos vizinhos, Astrakhanov gritou:

– Você perdeu o juízo? Para quem é isso? – a raiva lhe embotava os sentidos, e não tinha lido o destinatário ainda, o que fez logo em seguida. Bufou. – Tinha que ser! – ironizou.

Eu, um pouco afastada, permanecia em silêncio, de braços cruzados. A consciência da infração me impedia de argumentar em minha defesa. Nem ela me segurou, porém, quando vi Astrakhanov alçar a mão livre para o envelope e, ao invés de rasgá-lo – o que eu esperava que ele fizesse – puxar apenas a ponta, retirando a carta e se pondo a lê-la.

– EI! – protestei, tentando roubar a carta, mas Astrakhanov recuou, erguendo um dedo em alerta para me impedir. – Você não é mais meu supervisor! – rosnei. – Não tem nada para ler aí!

– Isso é o que vamos ver – Astrakhanov resmungou, passando os olhos pelas linhas rapidamente. – Só a mesma baboseira de sempre – concluiu, parecendo acalmar-se um grau.

Engoli a ofensa pelo "baboseira", intrigada com a observação.

– E o que achou que seria?

Astrakhanov lançou-me um olhar soturno e continuou a perscrutar a carta.

– Não acredito que está desconfiando de mim! – gritei, ao me dar conta do que aquela cara significava. Que bizarra virada; duas semanas atrás era ele o suspeito de ser agente duplo. – Até parece que eu trairia a minha revolução!

– Já a está traindo – ele cuspiu com frieza. – Da forma mais estúpida que existe na terra, aliás.

– Você acabou de ler, não há nada aí que...

– Não importa o que está escrito – Astrakhanov cortou. – Se você entregasse esse envelope para o atendente dos correios, a Polícia estaria aqui em menos de uma hora, sabe disso.

– Eu não... eu ia dar um jeito de entregar por meio indireto... por outro país... – balbuciei.

– Ah, sim? E por que meio, posso saber? – ele cruzou os braços. – Certamente não pretendia pedir a Berger ou Valleé que servissem de correio elegante entre você e seu namorado, não é?

Eu senti meu rosto queimar, e mordi os lábios, respondendo com silêncio à ironia do tenente. Eu podia ter contado sobre Santa? Podia. Afinal, não havia nada de ilícito nos postais que ele intermediara para mim. Mas algo me dizia que nem Astrakhanov, nem Berger, nem Valleé aprovariam eu estar enviando correspondência – mesmo pessoal – por caminhos extraoficiais. Era contra a política do grupo. A história poderia acabar estourando para cima do Camarada Lopes.

– Não vai me entregar para eles, não é? – murmurei, após um minuto, esfriando todinha ao ver que Astrakhanov ainda alisava a carta e a contemplava com uma carranca.

– Ainda não decidi – ele respondeu. – Há cinco minutos as opções eram sim ou com certeza – e então o Tenente ergueu os olhos para mim, e notei neles uma mistura de desprezo e pena. – Mas isso aqui é só tolice, inexperiência... e saudade – concluiu, sacudindo a carta junto ao rosto, antes de fazê-la em pedaços.

Eu não movi um músculo para impedi-lo. Sabia que não valia o esforço. Sabia – desde o começo, no fundo – que acabaria abortada aquela tentativa desesperada de manter vivo algo que agonizava ou, talvez, já estivesse morto fazia tempo. Algo também morria dentro de mim, naquele momento, e quem dera fosse meu amor por Pasha. Acho que era a esperança. Ela não era a última a morrer, afinal.

As mãozorras de Astrakhanov trabalhavam impiedosamente, dividindo o papel em dois, quatro, oito, trinta e dois pedaços miúdos, até que todo o sentimento contido nele não passasse de um amontoado de fragmentos sem sentido. Por fim, o tenente atirou os caquinhos na lixeira, riscando um fósforo e jogando por cima.

Um clarão muito pequeno, que nem saía dos limites da lixeira de metal, ergueu-se por um segundo, enquanto o fogo engolia os restos da carta.

– Eu prometi escrever – murmurei, triste e impotente. – Era uma promessa.

– Infelizmente nem sempre podemos cumprir a palavra – Astrakhanov respondeu, sério. Minha voz diminuiu ainda mais, e nem sei como o tenente escutou as próximas palavras que me escaparam dos lábios, truncadas por um soluço:

– Ele vai me esquecer.

Levei a mão ao rosto, para conter uma lágrima que escapava. Talvez o dilúvio não viesse atrás, se Astrakhanov não tivesse estendido a mão e me puxado para si, escondendo-me em um abraço entre terno e desajeitado. Constrangida por estar lavando sua camisa de um modo tão impróprio, eu tentava me conter, mas parece que quanto mais eu lutava para frear as lágrimas, mais elas vinham, tornando a batalha totalmente inútil e vergonhosa. Então desisti, fechando os braços em torno do dorso de Astrakhanov e me entregando ao choro, enquanto ele tentava me consolar com breves tapinhas nas costas.

Já que eu tinha sucumbido à minha humanidade – desde que escrevera a primeira letra em cirílico, na verdade – o jeito era esperar passar.

Astrakhanov também esperou com paciência enquanto o ritmo dos meus soluços amainava pouco a pouco, até que apenas suspiros espaçados tomaram o seu lugar, e começaram a deixar minhas pálpebras as últimas lágrimas da procissão. Só então ele se pronunciou, numa voz tão suave que nem parecia a mesma pessoa que gritava comigo menos de meia hora atrás:

– Todos temos que fazer sacrifícios. Eu também deixei uma noiva para trás, e a essa altura ela já deve ter se casado com outro. Talvez o seu Pavel tenha encontrado outra garota, também.

– Como você pode considerar isso um consolo? – balbuciei, erguendo o rosto para encará-lo, indignada.

– Não é. É apenas um lembrete de que a vida segue e que, às vezes, não temos escolha a não ser seguir com ela.

E eu segui a vida.

Caridosamente, Astrakhanov abafou o assunto da carta e jamais o trouxe à baila. O nome de Pavel tampouco voltou a ser citado naquela casa, e eu combati com mais empenho que nunca para não deixá-lo subir ao nível do pensamento consciente.

Aceitei, finalmente aceitei, não sem dor, que Pavel era um dos preços que eu tinha que pagar pelo bem maior e que, portanto, era hora de colocá-lo no único lugar que lhe cabia no meu coração agora: o de saudosa lembrança.

Tranquei Pavel no passado. Não adiantava tentar enfiá-lo no meu futuro, se eu não tinha uma vírgula de domínio sobre os rumos desse futuro. Ele não me pertencia, mas à Revolução.

E, com a chegada de Silo, a Revolução se fez presente mais uma vez no meu dia-a-dia, reclamando minha atenção.

As águas paradas, para meu alívio, voltavam a se turbar.


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