Dias Vermelhos

Door erikasbat

44.6K 6.9K 28.8K

Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... Meer

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar

233 39 181
Door erikasbat

– Pede para sair.

O barulho alto e ritmado das rodas dos trens sobre os trilhos abafava nossa conversa cochichada. Não que fosse necessário. Dia de semana, no meio da tarde, o trem entre Natal e Recife estava quase vazio. Não fora fácil arranjar uma desculpa para Astrakhanov se ausentar da Great Western em horário de trabalho, mas não se pode ignorar uma convocação do Estado-Maior. Nos assentáramos nas poltronas centrais, para evitar gente escondida nas ligações com os outros vagões. Também havia assentos vagos entre nós e os passageiros mais próximos. Mesmo assim, o sussurro de Astrakhanov em resposta veio ainda mais baixo que o meu.

– Você acha? Não vão desconfiar?

– Não, é a oportunidade perfeita. O fechamento da ANL foi um grande golpe na moral dos trabalhadores, você pode dizer. Eles não tentarão nada tão cedo, então não há necessidade de vigiá-los. Diga que eles te entediam.

– Não acreditarão fácil assim.

– Bem, então diga que os trabalhadores é que desconfiam de você, que passaram a hostilizá-lo e já não falam mais nada na sua frente. Não sei, John, invente qualquer coisa. O que você não pode é permanecer nessa saia justa.

Um grunhido e ele esfregou o rosto com a mão esquerda.

– Eu sei – murmurou, terminando a palavra num suspiro.

Guardamos silêncio, ambos olhando o sol declinar pela janela. A viagem devia estar no fim. De caminhão, o transporte entre as duas cidades levava por volta de cinco horas, dependendo da condição do trânsito, do veículo, ou da estrada. O trem, por ter caminho exclusivo, faria o percurso em um pouco menos, se houvesse linha direta entre as duas capitais. Devido à necessidade de fazer uma intersecção na cidade de Nova Cruz, e levando em conta as paradas, o processo nos tomara quase a tarde inteira.

– E os trabalhadores? – ele ponderou, após um momento. – Não suspeitarão de verdade se eu resolver me desassociar agora?

Dei de ombros, ainda com os olhos no céu azul-alaranjado.

– Para eles você conta a verdade. Não toda – acrescentei, ao receber dele um olhar alarmado. – Diga que estão te pressionando para atraiçoá-los e, por não querer fazer isso, nem perder o emprego, vai sair do sindicato.

– Honestamente, eu preferia sair era desse maldito emprego.

– Podemos conversar sobre essa possibilidade com Berger. À luz dos últimos acontecimentos, quem sabe ele concorde que é o melhor caminho.

Na noite após o fechamento da ANL, tivéramos uma reunião de emergência do Partido para discutir a questão, e Santa trouxera periódicos do fim de junho e da primeira semana de julho, que só então recebera, graças a mudanças no itinerário do navio do camarada que os transportava. Ao analisarmos os exemplares, uma teia de acontecimentos se costurou diante dos nossos olhos e permitiu que formássemos o quadro que culminara no deletério decreto.

O jornal carioca O Globo vinha promovendo, fazia algum tempo, uma acintosa campanha contra a Aliança Nacional Libertadora, encabeçada pelo filho de seu fundador, o jornalista Roberto Marinho. Ele escrevera dezenas de artigos contra a associação, em essência acusando-a de comunista. Quem dera: se fosse assim, não teríamos o futuro trabalho de converter sua moderada ambição anti-imperialista em uma Revolução Proletária de verdade.

No final de junho, porém, as especulações do Senhor Marinho ganharam um importante fermento. A polícia de Pernambuco – a pior da região, segundo Praxedes – invadira a casa de um aliado nosso e apreendera alguns documentos, dentre eles duas cartas do nosso Estado Maior, que foram publicadas ipsis litteris pelo Correio da Manhã, outro jornal carioca. Lembrei-me da invasão do meu apartamento no Rio e percebi como fôramos sortudos por não haver nada comprometedor em nossa posse na ocasião. O colega não tivera a mesma sorte.

Astrakhanov surtou ao ler as cartas. "Como eles ousam escrever uma coisa dessas, assim, sem nenhum código?!". É verdade que a epístola de Prestes era bem adequada: escrita "de Barcelona", em termos módicos e condizentes com a linha da ANL. A outra, porém... O tal Fernandes que a subscrevia – que, pelo tom empolgado, suspeitamos tratar-se de Miranda – fizera uma salada perigosa, misturando ANL, guerrilha e o bando de Lampião no mesmo contexto. Não havia "saudações à prima fulana" que tornassem aquela uma missiva comum.

Pronto. Era tudo que O Globo precisava. O torpedeamento se intensificou. E era tudo o que Getúlio precisava, também: as cartas, as reportagens e Manifesto forneceram-lhe subsídio para publicar aquele decreto ridículo que já devia estar rascunhado em sua gaveta havia muito tempo.

– Isso é fato – Astrakhanov concordou, por fim. – Até mesmo Berger será capaz de ver que, nesse momento, quanto menos contato tivermos com elementos reacionários, melhor.

O chiado do trem parando na estação interrompeu nossa conversa. Descemos, e eu já me dirigia ao funcionário no guichê de passagens para perguntar o caminho para o nosso destino, quando Astrakhanov me reteve pelo pulso.

– Ele não – resmungou. – Trabalha aqui, seria a primeira pessoa a interrogarem, numa investigação. Pergunte para qualquer um na rua.

Assenti, e abandonei o prédio baixo, espalhado e cor de vinho da Estação Ferroviária do Brum rumo ao ar livre e azul-escuro. Tive que questionar três pessoas antes que alguma soubesse me indicar a direção do Hotel Recife. Ficava perto, nos arredores do Porto, então decidimos ir a pé. Conseguimos dar entrada no hotel e até jantar antes da reunião.

Avistamos Berger e Martins no refeitório, mas, por estarmos no meio de vários outros hóspedes de procedência desconhecida, fingimos não os conhecer. Eles também não pareceram notar nossa presença. Ninguém que nos contemplasse imaginaria que, em meia hora, estaríamos os quatro trocando saudações amistosas e nos sentando para elaborar planos comuns no quarto de Berger.

O ambiente não era muito amplo; um pouco menor que nosso próprio quarto, pois o nosso era duplo, e o dele singular. A cama ficava de frente para a porta, tendo a única janela do quarto à sua esquerda, com a cortina de renda fechada àquela hora. Um guarda-roupa maciço de madeira escura, combinando com a cama, se apoiava na parede ao lado da porta, e à direita da cama, havia uma escrivaninha com uma luminária. A mobília do quarto se completava com uma pequena mesa redonda de madeira, no lado oposto ao da janela. As paredes revestiam-se de um tom esquisito de azul claro. Passei alguns minutos tentando entender o que me desagradava naquela cor. Ah, sim: ela me remetia a uma cozinha. Eu acabara de perceber isso quando começaram a surgir nossos correligionários.

O primeiro a chegar foi um homem baixinho que Martins nos apresentou como Camarada Tampinha. Silo apareceu em seguida, resmungando por ter se molhado graças a uma pancada de chuva que o apanhara no caminho.

– E o Camarada Caetano? – Berger indagou, relanceando o olhar para o relógio.

– Não sei, não andamos juntos o tempo todo – Silo retrucou. – Ele sempre tem que fazer uns caminhos alternativos, porque é mais visado pela polícia.

– Oportuno você falar em polícia, Camarada. Aquelas cartas...

– Sim, eram para mim. E sim, estava em um dos esconderijos de Caetano – Silo cortou, com rispidez.

Hm, seria aquele mau-humor todo apenas receio de levar uma bronca? Nenhum mau-humor, porém, independente de sua magnitude, impediria os reproches de Astrakhanov.

Confesso que fiquei feliz por não ser eu o alvo, dessa vez.

– Mendoza, como pôde? – havia mais desapontamento que irritação na voz do russo. Já tinha soltado todos os impropérios que queria no dia em que lera a notícia, talvez? – É o básico do básico, regra elementar de sigilo! Se não tem mais utilidade, livre-se!

– Eu sei, eu sei! – meu ex-colega exclamou, erguendo as mãos à sua frente, em posição de defesa. Então justificou-se: – Mas uma delas eu precisava guardar, servia de procuração para abordar as pessoas em nome do Prestes. A outra... foi estupidez, admito.

– E por que estavam perguntando de Lampião àquela altura do campeonato? – questionei. – Você já não tinha informado ao comando que a missão fora um fracasso?

– Eu não, achei que você ia comunicar.

– Comuniquei apenas ao Camarada Vallée. Achei que repassariam a informação ao Partido – eu me eximi, jogando para Berger a peteca da falha de comunicação.

Os olhos de todos no quarto pousaram sobre ele, mas mal o orelhudinho abrira a boca para apresentar sua justificativa também, quando um barulho na porta nos distraiu e alarmou.

Alguém estava forçando a maçaneta.

Quem estava sentado, pulou de pé. Astrakhanov sacou a arma, foi até a porta, e travou a maçaneta.

– Pois não? – Berger perguntou, cauteloso, já que, teoricamente, ele era o único ocupante do quarto.

– Abre essa joça! – uma voz familiar resmungou do outro lado.

– ...senha? – pediu Astrakhanov. A voz soltou um palavrão.

– Esqueci – confessou, após um momento. – Sou eu, desgraça! Abre isso de uma vez. Os funcionários do hotel daqui a pouco vão me ver aqui mexendo na maçaneta e vão pensar que eu tô roubando.

Após lançar um olhar para Berger em busca de aprovação, Astrakhanov atendeu o pedido. Caetano apareceu no limiar, tão molhado quanto Silo, porém melhor humorado, a despeito do praguejar de há pouco.

– Boa noite, camaradas – cumprimentou, com um aceno geral. Voltando-se para Berger e Martins, adicionou: – E a que devemos a ilustre presença da chefia nessas paragens? Se vieram pessoalmente, é que a coisa é importante.

– Vital – exclamou Berger, em seu jeito sempre energizado. – Mas passemos a isso.

E, com um gesto, ele nos indicou a mesa, em torno da qual nos reunimos. Martins trouxe a cadeira da escrivaninha, e Astrakhanov se sentou na cama mesmo.

– Ah, um minuto – ele pediu, e inspecionou a lamparina, a lâmpada no teto, as cobertas, abriu o guarda-roupa, afastou as cortinas, e deu uma rápida olhada nos quatro cantos do quarto. – Eu devia ter feito isso logo que chegamos... Tudo limpo, felizmente. Podemos começar.

– Então, camaradas – Berger pigarreou e abriu a reunião, voltando-se para nós com as mãos cruzadas sobre a mesa. – Viemos pessoalmente porque houve uma mudança de linha importante, e precisávamos nos certificar de que ela seria compreendida e aplicada em sua plenitude.

– Nós não somos burros, camarada – o tal Tampinha reclamou. – Bastava um telegrama.

– Nós mandamos – Martins falou. – Mas tirando pelas notícias que tivemos daqui após isso, ninguém entendeu, não.

– Eu não recebi nada – tratei de sublinhar.

– Para Natal mandamos pelo Santa – explicou o figurão do Partido – para o Secretário-Geral estadual. Ele não repassou as instruções? – o homem alto franziu as sobrancelhas.

– Não sei. Muita coisa é dita nas reuniões. Se eu soubesse que instruções são essas, poderia determinar – a irritação que me subia pelo sangue transparecia na voz.

– Em essência, é que a Revolução deverá ocorrer em nível nacional – Berger anunciou, solene.

Nós todos o encaramos, piscando.

– Tá, e qual a novidade nisso? – Silo perguntou, erguendo os ombros.

– "Todo o poder à ANL" – repetiu Astrakhanov. – Quando saímos do Rio, já havia essa orientação. E estamos tentando implantar. Sem muito sucesso, mas estamos.

O outro estrangeiro sacudiu a cabeça, com um sorriso compassivo.

– São duas coisas diferentes.

– Estamos nos referindo ao local das lutas, agora – Martins explicou, e a compreensão começou a se derramar em nossos cérebros confusos.

– Certamente lembram que a guerrilha devia começar aqui no Nordeste? – ele acrescentou, recebendo vários balbucios positivos em resposta.

– E agora não deve mais? Fomos destituídos? – brincou Caetano, com um leve fundo de preocupação na voz. – Sabia que vocês iam nos trocar pelos sulistas, mais cedo ou mais tarde.

– Não se trata de uma troca – Berger tranquilizou. – Vocês devem continuar se preparando para o levante. A única diferença é que não estarão sozinhos. A ação será coordenada simultaneamente em todo o país. Isso pode encurtar a duração da luta, especialmente se conseguirmos tomar as estruturas do país, na capital.

– E nos dará o elemento surpresa, que por sua vez também pode reduzir a duração da luta, pois pegaríamos o inimigo despreparado – analisou Astrakhanov. – Se isso puder ser executado, é realmente uma boa estratégia.

Com o que então ele estava dando razão para o Berger? Fui obrigada a me beliscar discretamente por baixo da mesa, para me certificar de que não era sonho. Berger anuiu, com um pequeno sorriso.

– Por isso nos permitimos essa mudança, err, independente de orientação.

A escolha do vocabulário me plantou uma pulga atrás da orelha. Troquei um olhar com Astrakhanov e Silo, e percebi que eles também tinham estranhado a postura ligeiramente arteira de Berger, mas nenhum de nós teceu comentário.

– O negócio é que – Martins retomou a conversa – as notícias que temos recebido de vocês não são, francamente, animadoras. Poucos progressos, nada de guerrilhas no campo, nenhuma greve nova também, e acabo de saber que tampouco conseguiram convencer os cangaceiros.

A censura causou um mal-estar em mim e nos meus colegas do Nordeste. Tampinha resmungou um nítido "Se acha que é fácil, vem você fazer", que Martins fingiu não ter ouvido. Eu era obrigada a concordar. Verdade que, pensando melhor, em Natal desperdiçamos quase um mês por causa das rixas e suspeitas, mas desde então estivéramos em plena atividade! Muitas reuniões, discussões, planos... mas pouco de concreto, era fato. Havia os jornais, pelo menos serviam de propaganda. Não que eles tivessem atraído muitos adeptos, por enquanto...

Organizar uma revolução era muito mais difícil do que faziam parecer na ELI.

– Sobre Lampião, se quer saber, foi melhor assim – soltou Silo, de repente. – Não ia dar certo essa sociedade.

– Acredito que isso seria apenas uma questão de persua... – Berger ia opinando, mas Silo o interrompeu.

– Você não falou com o homem, eu falei. Então, por favor, aceite minha palavra sobre o assunto.

O representante do Komintern emitiu alguns resmungos apaziguadores, embora fosse visível em sua expressão que ele ainda discordava. Caetano, porém, não deixou o assunto se prolongar, desviando-o para outra das "falhas" apontadas por Martins.

– E sobre greves, estamos trabalhando nisso – garantiu. – A dificuldade tem sido encontrar uma reivindicação ampla que abarque mais de uma categoria, pra ficar acima das disputas entre os sindicatos.

– Em Natal passamos pelo mesmo problema – respaldei. – Na reunião pró-unidade sindical ficou-se de fazer uma convenção mais ampla, regional. Mas até agora, nada. São os sindicatos cafeístas que não chegam a um entendimento conosco.

– O que podemos fazer, se não acharmos uma pauta que una todo mundo – Caetano ponderou – é catar uma categoria só, mas bem influente, sabe? De preferência na região toda, que aí a greve se espalha e se faz sentir. Mesmo que a luta não seja de todo mundo, vai acabar afetando todo mundo, e aí a gente mostra nossa força e chama atenção.

Guardamos silêncio um instante, cada um pensando nos problemas trabalhistas de diversos colegas e conhecidos.

– Olha, não chega a ser regional – Tampinha arriscou, dentro em pouco – mas eu tenho uns camaradas em Mossoró que podem agitar o pessoal das salinas. As condições de trabalho deles são horríveis, e se se mexessem, lutassemcontra, a economia do Rio Grande sentia o impacto. Claro que também ia incomodar gente grande, e é disso que o pessoal se arreceia. Mas também é bem pra isso que estamos aí.

– E os ferroviários, hein? – Martins recordou, de repente. – A Western tem filial em tudo quanto é estado por aqui. Não é possível que tratem os funcionários tão bem que eles não tenham um só direito para reclamar.

– Pelo contrário, a exploração é pesada – interveio Astrakhanov, assustando-nos a todos, pois, como ele estava sentado quieto na cama, já tínhamos nos esquecido da sua presença. – Inclusive eles estavam estudando uma paralisação.

– Você trabalha na Western, não é, camarada? – Caetano perguntou-lhe, com cara de "Eureka". Astrakhanov anuiu. – Inclusive se sindicalizou, não foi? Ou eu que fiquei sabendo errado?

– Err...

– Podia ir agitando o pessoal lá para nós.

Astrakhanov me lançou um olhar desarvorado, com um claro pedido de socorro. Aceitar aquela incumbência o prenderia ao sindicato, tudo que ele menos desejava agora, dadas suas circunstâncias pessoais. Abri a boca para tentar desviar a conversa, mas Berger foi mais rápido:

– Isso seria perfeito! A Great Western sendo uma empresa estrangeira, se os seus trabalhadores se sublevassem, já serviria como protesto contra o fechamento da ANL.

– Ah, então não passou em branco? – Silo questionou. – Porque eu tive essa impressão.

– Jamais! – Berger sacudiu a cabeça. – Que era esperado, era – admitiu. – Vargas nunca deixaria impune uma declaração arrojada como a de Prestes. Mas isso é a guerra: ninguém acredita que está acontecendo até ver os dois lados se engalfinharem. Nesse caso, precisamos fazer o primeiro movimento, porque se deixássemos para o outro lado, eles só nos encurralariam mais e mais no breu da ilegalidade, sem que tivéssemos feito soar nossa voz. Agora pelo menos o povo sabe que existe gente disposta a lutar por eles. O contragolpe veio, e estamos preparando nossa tréplica. Já pedimos recursos e autorização para apressar o levante.

Aquela notícia sim acordou os espíritos e devolveu o ânimo que as meditações sobre nossos tímidos avanços tinham terminando de roubar. Silo se curvou para frente sobre a mesa, e sussurrou, meio incrédulo, meio entusiasmado:

– Já estamos mesmo em condições de fazer isso? Quero dizer, vocês lá no Rio, porque aqui ainda precisa de muito trabalho – adicionou, voltando a recostar na cadeira, com seu lado realista falando mais alto.

– Não ainda, mas logo estaremos – Berger assegurou. – Como eu disse, faltam recursos, dinheiro mesmo, sobretudo para comprarmos armas, expandir os treinamentos em grande escala, e de preferência a produção de propaganda também. Mas homens nós temos, e isso é o fundamental. O apoio no exército é massivo! – ele exclamou, com um gesto vigoroso do braço. – O nome de Prestes é mágico, é extremamente respeitado nos quartéis. Toda semana ele se encontra com algum oficial, sempre prometem seu apoio e o da tropa comandada.

– Já temos células em vários regimentos por todo o país – Martins acrescentou, – até por causa das transferências que Getúlio vive de fazer entre os batalhões, para ver se nos desbaratina. Por enquanto isso tem é nos ajudado a espalhar a palavra da Revolução. Vocês sabem como é, bons comunistas nunca ficam calados. Coloque um numa sala cheia de gente, volte em quinze dias, e ele terá persuadido um quarto da sala a virar comunista também.

– É o que acontece quando se está com a razão – Caetano apoiou.

Achei a estimativa de Martins um pouco alta, até porque as pessoas costumam ser duras para mudar de ideia; geralmente é preciso mostrar a elas insistentemente como estão sendo exploradas. A exploração é pintada de normalidade todos os dias pelo patrão e pelos mecanismos de controle social, e os olhos dos oprimidos se cegam para a verdadeira natureza das condições deletérias a que são submetidos. Só depois de arrancar essa pesada venda, podemos oferecer nossa alternativa de libertação, e, mesmo assim, nunca são todos os que a aceitam.

– Falando em núcleos no exército, Camarada Anita, como está a articulação com o 21º Batalhão de Caça, em Natal? – a interpelação de Berger me arrancou de minhas divagações. – Chegou aos ouvidos do comando que há possíveis aliados nessa unidade, mas eles não estão em contato com o Partido local. Era preciso vermos isso – ele disse, em tom gentil, mas não sem um quê de censura.

– Camarada Berger, eu não sei. Há de convir que, pessoalmente, não tenho como me imiscuir entre os militares – afirmei, abrangendo meu próprio corpo com um gesto, – não sem despertar todo tipo de suspeita, pelo menos. Stuart é estrangeiro, e agora, trabalhando, tampouco lhe sobra tempo para esses contatos. Mas, francamente, confesso que nem me preocupei em abordar o exército, pois o pessoal do Partido local disse que o 21º BC é tradicionalmente ligado ao Partido Popular, que é um partido reacionário em último grau, fundado pelos antigos oligarcas do estado. Diante dessa definição, preferi concentrar os esforços no trabalho entre o proletariado mesmo.

– Eu ouvi isso sobre o 21º BC – confirmou Silo, – mas também ouvi os mesmos rumores que o Camarada Berger, de que lá há possíveis simpatizantes. Na verdade, são mais que rumores, eu positivamente sei que há, porque me foi dito pelos soldados do 29º BC, entre os quais ando militando. Se quiser – ele propôs – posso tentar um deslocamento provisório para Natal, e intermediar as negociações com o exército por lá. Seria de extrema utilidade uma célula no local, nem que fosse para desviar algumas armas para as tropas civis – finalizou.

– Ah, você vai organizar uma célula, é? – Caetano perguntou-lhe, com ar interessado, o queixo apoiado nos dedos da mão direita.

Silo franziu as sobrancelhas para ele e cruzou os braços, sem responder. Queria entender qual era o motivo dessa pequena tensão entre eles, mas não seria conveniente perguntar. E eles tampouco pareciam interessados em prolongar o assunto. Caetano se endireitou na cadeira, e falou:

– Bom, tem mais alguma coisa? Está ficando tarde, e eu prefiro andar na rua enquanto ainda tem gente para eu me misturar.

– Não, acho que... era isso mesmo, não é? – Berger trocou um olhar com Martins, buscando confirmação. Martins encolheu os ombros, Berger acenou em aprovação e se levantou, para encerrar a reunião. – Então os ajustes ficaram assim: pela nova linha, levantes simultâneos no país inteiro. Se a oportunidade surgir, esperem nosso aval – ressaltou, pausadamente, tamborilando várias vezes com o indicador na mesa. – Nós tentaremos apressar os preparativos, e na medida do possível, vocês também. Treinem todo mundo que encontrarem... todo mundo confiável, bem entendido. Arranjem um esconderijo para guardar armas e comecem a acumulá-las. Em termos de preparativos laterais, nós buscaremos uma moção do Clube Militar em protesto ao fechamento da ANL, para complementar as manifestações que ocorreram em São Paulo. Se conseguirem algo assim aqui também, perfeito. Mas o importante aqui são as greves. Caetano, você que tem mais experiência nessa área, pode cuidar de articular uma greve geral?

– Considere feito – Caetano disse. – Prazo não posso prometer, mas o quanto antes.

– Ótimo. E não esqueçam dos militares. Silo, você vai mesmo dar esse apoio em Natal?

– Assim que for possível sair daqui sem risco – ele prometeu.

– A polícia está na cola. Até pra telegrafar está complicado. Depois das cartas e ainda mais depois do decreto, parece que estão com o demônio no corpo – Tampinha falou. – Quase deram flagra em vários camaradas essa semana, principalmente quem aparecia na testa da ANL. Eles parecem saber até bem demais onde nos procurar.

– Tem isso, não é? Camaradas – Berger ficou sério, e olhou em volta – Soubemos de fonte fidedigna que há um traidor entre nós. Alguém está passando informações sigilosas aos ingleses. Ainda não sabemos quem é, mas vamos descobrir, e posso garantir que a pessoa arcará com as consequências.

A seriedade na voz dele e em sua expressão geralmente gentil me arrepiou a espinha de ponta a ponta. Usei toda a minha energia para não olhar para ninguém, sobretudo para Astrakhanov, e manter meu rosto firme. Espero ter conseguido me impedir de empalidecer também, mas acho que essa reação seria aceitável mesmo sem eu ter mancha na consciência, não é? Porque eu mesma não tinha, mas o dilema de John Stuart assaltou minha mente de imediato e a lançou numa confusão da qual eu nem sequer encontrava a ponta, para tentar desenovelar.

Com algumas últimas recomendações, despedidas e combinações, nos dispersamos gradualmente. Continuei a evitar o olhar de Astrakhanov enquanto descíamos o corredor até nosso quarto. Lá, não fechei de todo a porta, mas fiquei espiando enquanto cada um passava. Quando Martins finalmente se encerrou nos próprios aposentos, virei-me de pronto para o tenente.

Ele estava sentado em sua cama, pálido, passando as mãos lentamente pelo queixo, enquanto encarava a parede em frente com olhos perdidos. Eu nunca o vira tão abalado sem estar bêbado. Uma onda de compaixão subiu por mim, mas não vinha sozinha, e sim numa mistura confusa com medo e desconfiança. E se fosse fingimento? Ele dominava tão bem o rosto, de regra. Não estaria plenamente ciente de cada músculo facial também agora, e da impressão que causava?

Todas as minhas certezas se desfizeram em algum lugar do passado. Do passado recente, na verdade. Em algum momento após eu deixar de ser Maria e me tornar Elizavieta, e agora Anita...

O risco de se viver uma vida de mentira é se tornar incapaz de reconhecer a verdade.

Minha mão desceu para a perna, em busca da arma escondida. Este movimento involuntário também era um tique recente, legado pela minha nova identidade. O toque do metal era uma das coisas que, nos últimos tempos, me forneciam segurança. Uma parte de mim achava isso lamentável; outra, mais cínica, argumentava que era melhor do que nada.

Limpei a garganta. Eu tinha que perguntar... Mas ele me diria? E eu poderia acreditar na sua resposta? Abri a boca, mas fui poupada da pergunta porque, nesse momento, ele mesmo olhou para mim:

– E agora? – questionou. Seu tom era completamente inédito. Pela primeira vez, Astrakhanov não sabia melhor que qualquer um no recinto o que devia ser feito. Não pude aproveitar o gosto do triunfo, porque a situação era grave demais.

– Primeiro de tudo, me responda com sinceridade: você tem algo a ver com isso? – questionei, séria, perscrutando seus olhos azuis e tentando desvendar o desconhecido por trás deles.

Astrakhanov saltou de pé de imediato, seu rosto tingindo-se de carmim e assumindo uma expressão de indignação espantada, com um quê de mágoa. Assomou-se sobre mim em fúria, e segurei mais firme minha arma, calculando se teria tempo ou possibilidade de sacá-la caso precisasse, já que ele era não só maior, como mais experimentado no uso de armas de fogo que eu. Ele deu dois passos para trás, no entanto, os braços caíram ao lado do corpo, e a fúria foi suplantada pelo abatimento, em seu rosto.

– Você acha realmente... como eu... eu não... – ele balbuciou. Então desviou o olhar para parede à direita, suspirou, e voltou a falar, de forma menos desconjuntada agora. – Certo, é justo, ninguém está acima de suspeita. Então vamos raciocinar – suspirando mais uma vez, ele me encarou e começou a contar nos dedos, enquanto falava. – Um: eu nunca tive contato com ingleses até o próprio Komintern me transformar em um inglês, me enviar para a Inglaterra, junto com você, e gostaria de lembrar que eu não saí de perto de você por mais que quinze minutos durante aqueles dias, ou seja, nem tive oportunidade de... me vender. Dois: eu também não teria contato com inglês nenhum aqui no Brasil se o seu Partido não tivesse me arranjado um emprego naquela companhia infernal. Três: se eu fosse um agente duplo de verdade, jamais teria mencionado isso pra você, não acha?

Continuei a encará-lo com rosto de pedra. Os argumentos eram bons, admito. Mas até aí, Astrakhanov era um bom agente secreto. Sabia entrar no personagem como ninguém. Era preciso pô-lo à prova.

– Conte para o Berger, então. Como tínhamos combinado.

– Eu vou – ele passou a mão pelos cabelos. – Mas depois dessa história, confesso que estou... com medo.

– Pois eu vejo que se tornou mais fundamental do que nunca você se abrir com ele. Se você confessa, pode usar o mesmo argumento que acaba de usar comigo para demonstrar sua inocência. Se não, cedo ou tarde vão chegar nessa história, e ela estourará feio pra você... E pra mim também! Dirão que eu te encobri! – A perspectiva só então me ocorreu, e tive que abafar meu próprio grito com a mão. – Exijo que você conte. Agora. Não sairemos deste hotel sem Berger estar ciente dessa história toda. E Martins também, de preferência, mas pelo menos Berger, que é mais simpático. Se você não contar, eu vou – rosnei, irada.

Astrakhanov engoliu em seco. Ficou imóvel por um momento, então anuiu, pegou a correntinha com o crucifixo e o beijou, escondendo-a novamente antes de sair do quarto.

– Quer que eu vá junto? – sussurrei para suas costas. – Servir de testemunha?

O tenente olhou por sobre o ombro e sacudiu a cabeça brevemente.

– Não precisa – murmurou, seguindo seu caminho.

Eu abri a porta e o segui com o olhar. Berger o atendeu, demonstrando surpresa ("Esqueceu alguma coisa aqui, Stuart?"), e depois os dois sumiram por trás da porta fechada.

Voltei para dentro do nosso quarto que, muito semelhante ao de Berger, também era daquela cor estranha, mas continha uma segunda cama no lugar da mesa redonda. Troquei minhas roupas pelas que trouxera para dormir e me deitei, tentando limpar a mente para pegar no sono. Devíamos voltar cedo para Natal no dia seguinte.

As impressões da reunião, porém, não me deixaram pregar os olhos. Os minutos escorriam lentamente, e nada de Astrakhanov retornar. Comecei a imaginar as coisas mais bizarras, tais como que ele teria dado cabo de Berger e fugido. Cheguei até a procurar suas armas, mesmo sabendo que não encontraria, pois ele nunca se separava delas. Então me sentei ao pé da cama e me obriguei a recuperar o bom senso. Nem para um agente duplo faria sentido matar um de seus superiores, encerrado em um hotel com dois correligionários hospedados no mesmo corredor. O menor dos riscos seria o barulho do tiro. Tranquilizei-me um pouco. Então me ocorreu que ele podia mentir para Berger, inventar qualquer pretexto para aquela visita após a reunião, e assim despistar o emissário do Rio e também a mim.

Hesitei um momento antes de tomar uma providência. Não queria desconfiar de Astrakhanov. Parte de mim dizia que eu cometia uma injustiça. Mas a verdade é que seguro morreu de velho. Deixei meu quarto pé ante pé, descalça, para que o carpete do corredor abafasse meus passos. Aproximei-me sorrateiramente da acomodação de Berger, e colei o ouvido à porta.

As vozes no interior conversavam baixo, e eu de início não distingui as palavras. Logo, porém, a voz de Berger elevou-se um pouco, com uma nuance cômica.

– ...e o comandante Cascardo, o outro presidente da ANL, sabe?, desafiou o jornalista para um duelo à moda antiga. Marinho aceitou, mas na data marcada só deu as caras no local do encontro com doze horas de atraso. Disse que o trânsito o impediu de chegar na hora. Engraçado que todos os outros foram, até os padrinhos dele. Acho que só tinha trânsito para o carro do Sr. Marinho, nesse dia.

Astrakhanov soltou uma exclamação que misturava riso e indignação.

– Não tem coragem nem para se assumir um covarde.

– Não é assim que as coisas funcionam por aqui. Claro que há os bravos, muitos até, mas a grande massa do povo não aprecia muito enfrentamentos diretos, e prefere vencer os outros na conversa e na esperteza. É preciso estar duplamente atento ao lidar com eles, se mover com extremo cuidado. Temos nossos infiltrados na Polícia, mas também não nos escapa que a Polícia tem muitos provocadores no Partido. É bom quando conseguimos identificá-los, mas nem sempre dá. Só nos cabe estarmos alertas. Confiar desconfiando. É complicado o jogo que jogamos.

– Ainda mais com todas essas redes se entrecruzando. Esse jornal que você disse, ele também recebe informações dos ingleses?

– Penso que não. Não diretamente, ao menos. Segundo me consta, eles são financiados pelos estadunidenses, ou pelo menos é o imperialismo que mais defendem. Os alemães também têm sua representação aqui. Não bastasse aquela imitação barata do partido nazista, os integralistas, há o chefe de polícia de Getúlio, que tem a pior das famas e que dizem estar na folha de pagamento da Gestapo.

– Até a Alemanha? O que eles querem aqui? – Astrakhanov se espantou.

– O mesmo que todos os outros impérios capitalistas. Recursos naturais para matéria-prima e uma significativa população de potenciais compradores. Tudo parcamente maquiado por Hitler com aquela baboseira de "espaço vital" e outros estúpidos romantismos nacionalistas bem ao agrado dos alemães – Berger bufou. – Quando eu disse no IV Congresso que os nazistas eram a nossa maior ameaça, ninguém me deu ouvidos. "Não, eles não são de nada, o povo não cairá... Os socialdemocratas são piores, porque apresentam uma ilusão de esperança..." E agora deu no que deu.

– Pelo menos você tem a satisfação de dizer "Eu tinha razão".

– Não é muito satisfatório ter razão num assunto desses.

Ouviu-se um profundo suspiro, provavelmente do baixinho, e eles ficaram em silêncio. Então Berger quebrou-o novamente:

– Quanto ao sindicato, faça isso mesmo, Stuart. Da empresa não será mesmo possível removê-lo, infelizmente. Seria como colocar uma placa de procurado na sua cabeça.

– Entendo. Bem, farei o possível para evitar encrenca.

Berger respondeu algo que eu não consegui ouvir, mas deve ter encerrado a conversa, porque de repente me dei conta de que estavam vindo em direção à porta, e disparei de volta para o nosso quarto, tão rápido quanto possível sem fazer barulho.

Astrakhanov entrou, acendeu a luz, viu que eu estava "dormindo", catou suas roupas e foi se trocar no banheiro comum, no fim do corredor. Dali a pouco retornou, e se deitou com um gemido de cansaço. Não demorou para eu ouvi-lo ressonar.

Hunf, se insônia fosse prova de culpa, a condenada seria eu. A dúvida me afligia e mantinha meus olhos entreabertos e pregados nas costas largas do tenente, como se, olhando com insistência, eu pudesse atravessar pele e músculos e carne e ossos e enxergar-lhe o interior abstrato do coração.

Recapitulei tudo o que sabia sobre Astrakhanov. Não era muito, nem seu nome verdadeiro entrava nessa lista. Bom professor, asseado, precavido, um tanto mulherengo ou galanteador, militar disciplinado... com deslizes de rebeldia, como o incidente da mentira sobre a idade ou a religião praticada em segredo. Sua alma se insinuava para mim nesses detalhes, mas eu ainda não mergulhara nela a ponto de poder juntá-los em um quadro compreensível, finalizando o quebra-cabeça.

Deitei-me de costas, encarando o teto em frustração. Será que eu não estava exagerando as proporções daquele incidente? Eu tinha mesmo uma tendência ao drama, especialmente com o luar coando-se por um fiapo aberto da cortina, especialmente com o canto dos grilos cortando o silêncio noturno, especialmente quando o piar lúgubre de uma coruja se juntava a eles.

"Não", ponderei. "É literalmente caso de vida ou morte saber a verdade quando o possível traidor é responsável pela sua segurança". E a dúvida doía-me em dobro por eu estar acostumada a correr para Astrakhanov em busca de ajuda e proteção, desde os tempos da ELI. Nunca duvidara de sua integridade, nem quando ele me contou sobre o problema com a sindicalização. Afinal de contas, ele era soviético, devia estar acima de suspeitas de trabalhar para o inimigo.

Mas a verdade é que ninguém estava acima de suspeitas. Na vida de agente secreto, é você por você mesmo, no fim das contas. Confiar desconfiando, como dissera Berger. Um tipo horrível de solidão.

E, com a mente prosseguindo nesse movimento de abstração, enfim adormeci.

A viagem de volta foi um tanto silenciosa. Astrakhanov parecia um pouco magoado por causa do nosso pequeno enfrentamento no dia anterior, e eu ainda não sabia o que pensar. Tentava não pensar muito, na verdade.

Ao retornar para Natal, nos lançamos de cabeça no trabalho, o que substituiu os dilemas em nossas mentes por considerações práticas. Astrakhanov se apresentou na empresa para o turno da tarde, e eu preparei uma lista com um resumo das diretivas recebidas para a reunião com o pessoal do Partido que deveria acontecer naquela noite, na casa de Epifânio. Não houve necessidade de um chamado extraordinário, porque calhou de retornarmos no dia em que as reuniões regulares de atualização aconteciam.

Mas parece que alguém convocara uma reunião extraordinária no curto intervalo de nossa ausência, e, pelos ânimos excitados de nossos correligionários, sua pauta fora sem precedentes.

Ela nos foi lançada afoitamente ao rosto antes até dos cumprimentos. Também, quem conseguiria permanecer apático ante uma revelação daquelas?

– Sisson esteve aqui, camaradas, enquanto vocês estiveram fora – contou Praxedes, nem bem tínhamos entrado. – Já temos uma data para a Revolução. Será em 15 de agosto.

Ga verder met lezen

Dit interesseert je vast

A Boa Samaritana Door Bela B

Historische fictie

66.3K 9.5K 28
Sarah Parker é quase uma solteirona nos círculos sociais da Inglaterra, com um dote ralo e sem grandes atrativos ela vive sob a guarda de seus avós...
13.1M 599K 81
Valentina é uma adolescente estudante de medicina , vive com seu padrasto drogado após a morte da sua mãe , de um dia para o outro sua vida vai mudar...
61.1K 6.1K 35
𝐄𝐍𝐓𝐑𝐄 𝐓𝐎𝐃𝐎𝐒 𝐎𝐒 𝐂𝐀𝐒𝐎𝐒 𝐃𝐄 𝐃𝐀𝐄𝐌𝐎𝐍, ᵘᵐ ᵈᵉˡᵉˢ ʳᵉⁿᵈᵉᵘ ᵘᵐᵃ ᶠⁱˡʰᵃ, ᵉˢᵗʰᵉʳ, ᵘᵐᵃ ʲᵒᵛᵉᵐ ʳᵃⁿᶜᵒʳᵒˢᵃ. ᶜᵒᵐ ᵒˢ ᵃⁿᵒˢ ᵃ ᵉˢᵖᵉʳᵃⁿᶜᵃ ᵈᵃ ᵖʳⁱⁿᶜᵉˢᵃ...
245K 15K 153
Eliza Diniz uma garota de 16 anos que foi criada por sua madrinha após ter sido abandonada pelos pais quando ainda era recém nascida, agora se ver so...