Dias Vermelhos

By erikasbat

44.6K 6.9K 28.8K

Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 59 - Pé-de-Valsa

272 46 293
By erikasbat


– E quem é que vai fazer o convite ao padreco?

As bandeirolas coloridas pendiam agora sobre as nossas cabeças, separando-nos do céu azul profundo em que o brilho das estrelas disputava espaço com ocasionais balões. Lá estavam as Três Marias, acima das nossas cabeças. E no chão, mesmo sem contar comigo, devia haver bem mais de três Marias entre as esposas dos camaradas, a cuja companhia eu fora confiada, enquanto eles, reunidos em torno de duas mesas um pouco apartadas, riam da história do padre acidentalmente comunista. Os que não tinham comparecido à missa custavam a acreditar nos relatos de Quatro, Astrakhanov, Praxedes e mais alguns que assistiram à liturgia.

Eu lançava insistentes olhares invejosos para eles por sobre o ombro, deixando a criança no meu colo se lambuzar à vontade com a maçã-do-amor que Quatro fizera "John" comprar para mim. Eu nem gostava de maçã, só esperava que o pequeno não furasse o olho com o palito. Quem era mesmo? Ah sim, ainda era Zezinho. Eu conhecera mais uma dezena de menininhos e menininhas durante o dia, e eles pegavam confiança incrivelmente fácil. Vários dos menores já tinham ocupado e abandonado meu colo. Seria algum magnetismo que restara dos dias de professora?

Nosso grupo feminino ocupava dois bancos da praça da matriz, e algumas das comadres estavam de pé em frente, tapando minha visão de parte das barraquinhas de comida e jogos. Absorviam-se em conversas que eu devia escutar, já que seria bom me aperfeiçoar em economia doméstica para o caso de novos atrasos no pagamento do Komintern. Mas minha cabeça estava lá nas risadas dos colegas, e nos telegramas que eu tinha escondido na blusa para repassar-lhes.

Afinal de contas, aquilo era para ser uma reunião.

– Você é metida com política, não é, Dona Anita? – pronunciou uma voz tranquila do lado do meu ouvido, e eu voltei o rosto para lá. Zefinha me encarava, com seu outro filho no colo.

– Olha... eu sou, sim.

– Muito bonito seu texto. Quatro leu pra mim. Bem empolgado, firme! Gostei – ela elogiou, com um sorriso amplo.

– Obrigada – respondi, com outro sorriso, para disfarçar a minha vontade de estrangular o Camarada Quatro. Ora, para que usar um pseudônimo se ele ia ficar contando que eu quem escrevia o periódico? O jeito agora era tentar impedir que se espalhasse a informação. – Se puder não...

– Eu sei, eu sei. A Polícia. Se preocupe não, essa boca é um túmulo. Tem muita coisa que eu estou acostumada a não dizer. Eu e elas – disse, indicando com um aceno as outras esposas, que agora discutiam saúde infantil.

– Quer dizer que vocês também...?

– Se a gente participa das encrencas deles? Algumas sim, poucas. Tem as que casaram justamente por eles serem... bom, você sabe. Essas lutam junto. A maioria se casou com eles pela belezura ou pelos agrados ou porque o pai arranjou... ou até por admirar assim esse jeito idealista que eles têm, sabe? E tem as que nem concordam com a causa, mas aceitam, porque né? É o marido, vai fazer o quê. Tem que ser leal. Mas a maioria de nós tá muito ocupada nas pelejas diárias pra ficar pensando em salvar o mundo. Quando você tem umas boquinhas assim pra alimentar – ela indicou as crianças – e nem sempre o homem tá presente, porque eles podem ser levados a qualquer hora, sabe? Bem, nessa rotina não sobra muito espaço pras lutas grandes, não. Ao menos até que as crias crescerm e poderem fugir junto.

– Faz sentido... acho.

Lembrei-me do costume das revolucionárias russas de se esterilizarem. Também fazia algum sentido diante do quadro que Zefinha me apresentava. Pensando por esse viés, foi bom eu nem ter oportunidade de engravidar. Continuava sem pretender me esterilizar, mas tampouco teria coragem de tirar uma criança, então era melhor subjugar meus desejos, pensando no futuro.

Talvez os homens comunistas devessem fazer isso também, em vez de se juntarem a uma mulher – especialmente uma não-comunista – e complicarem a vida dela sem pedir. "Apesar de que, muitas vezes, eles só aderem à causa depois de casados", considerei então. E não podíamos exigir o celibato como pré-requisito para a admissão. Nossas fileiras minguariam significativamente.

– Eu até gostaria de alimentar a humanidade – ela confessou. – Lutar por isso. Mas a verdade é que atrás de alguém pensando em alimentar o mundo todo quase sempre tem outro pensando em como alimentar aquela pessoa.

As palavras delas caíram nos meus ouvidos como uma pedra cai num lago, formando uma ondulação em seu entorno e obliterando o restante da expansão aquática. Assim também meus ouvidos ficaram moucos para os ruídos e a cantoria da festa até que assimilei toda a verdade naquela afirmação.

– Sinto muito pelas dificuldades que nossos combates fazem vocês passarem – eu respondi, com sinceridade.

Zefinha encolheu os ombros, e o filho, que cochilava em seu colo, acordou e saiu correndo para um novo turno de brincadeiras, com o irmão atrás.

– É culpa de vocês não. É culpa da polícia e dos coronéis e de toda a canalha da mesma laia – ela disse. – Vocês lutam pelo que é justo. Alguém tem que fazer isso. E deixe que aqui atrás a gente aguenta as rebarbas da encrenca – concluiu, com um sorriso tranquilo.

Seus olhos se desviaram para a fogueira, ao ver que Torquato Filho e Zé pretendiam saltá-la, imitando os adolescentes, mas sem ter tamanho pra isso. Ela se ausentou um momento para resgatá-los e levá-los a algum brinquedo menos arriscado. Fê-los prometer que não voltariam para a fogueira nem se desviariam da sua vista, e voltou para seu lugar ao meu lado no banco. Eu já estava observando a reunião dos homens novamente.

– Dona Anita está louca pra ir lá né? – Zefinha riu.

Suspirei, e confirmei com um aceno. Se inclinando para mais perto, ela cochichou no meu ouvido:

– Pois vá, vá que eu aguento elas aqui. Elas que boicotaram sua participação, disseram que achavam muito estranho, que é que você tinha que ir fazer no meio dos maridos delas? Eu disse que você é casada também e seu marido está junto, mas elas não tomaram confiança da senhora, só porque é jovem e sem filhos. Disseram que iam enredá-la em conversa pra você não ir, mas vá lá, vá. Eu dou cobertura.

Jovem? Com meus quase vinte e cinco anos, eu era mais velha que pelo menos um terço daquele grupo de esposas. Mas de fato, talvez a ausência de preocupações maternais me poupasse de rugas, além de me tornar, aparentemente, mais "disponível". Afinal de contas, eu ainda não passara de "mulher" a "mãe". Por algum motivo misterioso, quando você assume o segundo papel, perde a qualidade anterior aos olhos da sociedade.

Isso não justificava o ciúme bobo delas, é claro. Mas eu não estava ali para criar polêmica, já perdera tempo demais. Murmurando "obrigada" para Zefinha, eu me escapoli e ultrapassei várias barracas com cheiro de milho, rumo ao bar em frente ao qual os camaradas se reuniam, no meio de três mesas e quase ao lado da bandinha de forró.

– ...o negócio é uma greve. Mas tem que ser coisa grande, coisa pra chamar a atenção mesmo, como quando teve a da companhia de luz – Praxedes dizia, em voz contida, porém clara o suficiente para ser ouvida pelos colegas de mesa a despeito da interferência musical. – Ali sim o proletariado mostrou do que é capaz. Muitos companheiros despertaram e a burguesia tremeu nas bases. Precisamos repetir a façanha e, se possível, aumentar suas proporções.

– Que greve foi essa? – eu perguntei, ao me aproximar, apoiando-me de lado na cadeira de Astrakhanov. Ele fez menção de se levantar para me dar lugar, mas eu indiquei que não precisava por enquanto.

– Foi no começo do ano – contou o camarada Lauro Lago, acendendo seu cigarro. Sugou uma vez a fumaça, e continuou. – Teve uma tremenda repercussão. Veio imprensa, achei até que ia virar notícia na capital. Estranho que não virou.

– Eu li alguma notinha sobre arruaceiros transtornando o bom funcionamento de Natal – recordei. – Devia ter adivinhado que se tratava de uma greve. É o código especial dos jornalistas pra noticiar esse tipo de evento.

– Deve estar no livro sagrado deles – concordou meu interlocutor. – Como noticiar uma greve: entreviste os prejudicados e escreva pelo menos uma frase com a palavra "arruaça" ou similares.

– Bem assim.

– O Secretário-Geral falou dessa greve também, não foi, Anita? – Astrakhanov interferiu.

– Sim, agora que você mencionou, Miranda e Martins estavam bem empolgados com alguns "movimentos paredistas" no nordeste. Mas eles não aprofundaram muito o assunto, não sei o quanto estavam inteirados... Disseram inclusive que era uma greve geral.

– Pois foi quase isso... Eu fui lá no mês passado porque me convocaram justamente pra dar relatório sobre ela – Praxedes confidenciou. – Mês passado não, o anterior. Enfim, eles queriam saber detalhes, porque os jornais não contam nada que preste. Era pro Epifânio ter ido comigo, que ele que deu início à coisa toda, mas nem matando que aqueles patrões liberavam ele.

O tal Epifânio, que Praxedes indicou com a cabeça, era um homem de ar sério e grave, involuntariamente quebrado pelo bigodinho sobre seu lábio superior. Olhava reto em frente, e parecia manter a concentração em seus objetivos mesmo em meio à bagunça que ora reinava ali.

– Deixa que chega o dia em que eu paro de depender de autorização – ele resmungou, com mágoa.

– Mas você disse a eles que ia viajar para se encontrar com líderes do Partido? – Astrakhanov arregalou os olhos, horrorizado.

– Claro que não, tá me achando com cara de burro?! – o homem bateu com o copo na mesa, encarando meu falso marido com indignação. – O que acontece é que aqueles lá não liberam nem por doença de filho. Liberam pelo próprio falecimento, se você trouxer a certidão de óbito pessoalmente.

Gargalhadas foram ouvidas, mas Epifânio permaneceu sério.

– Fora que estão de marcação comigo depois da greve – encolheu os ombros. – Mas já era de esperar, milagre é eu não ter sido posto na rua.

– Será que o padre comuna explica essa? – Quatro sussurrou, provocando novas gargalhadas.

– E o que foi que vocês conseguiram nessa greve? – eu quis saber.

O rosto de Epifânio se iluminou. Recitou, de peito inchado:

– Jornada de oito horas, quarenta por cento de aumento no salário e ajustarem o serviço de atendimento à saúde, que estava pela hora da morte.

– Tudinho que eles pediram – complementou Praxedes, dando tapas orgulhosos nas costas do camarada. – Não tiveram que ceder em nenhuma exigência.

– E aí é que está o principal – Lago sublinhou, batendo a ponta de seu cigarro num cinzeiro, após usá-lo para gesticular. – Sem o trabalhador ninguém faz nada. O dia em que ele entende isso e bate o pé, os patrões são obrigados a baixar a cabeça. Quem dera todos compreendessem; nosso projeto sairia em dois tempos. Mas não: ficam se amarrando, dando desculpa, se borrando de medo...

– Você fala assim porque seu emprego é público, o patrão não pode te chutar os fundilhos em dois tempos e acabar com o sustento da família – Quatro retrucou.

– Ora, se o emprego é público, pior ainda, não? Vocês sabem como isso funciona. Muda o governo e já trocam todos os funcionários pelos amiguinhos.

– Mas o seu trabalho está garantido, porque ninguém quer. Quem é que gosta de ser carcereiro? – soltou Praxedes, recebendo um olhar raivoso de Lago, que, todavia, não respondeu. Pegou a garrafa de bebida no centro da mesa e serviu uma dose em seu próprio copo, passando em seguida a encher outros copos de camaradas que demonstravam interesse, inclusive, reparei, o de Astrakhanov.

Hm, pelo cheiro era cachaça. Não ia dar certo aquilo. O tenente levou o copo à boca e eu pigarreei, para deixar clara minha opinião desfavorável. A atitude não teve o efeito pretendido, porém. O Camarada Lago ergueu os olhos para mim e perguntou:

– Quer também, Dona Anita? Eu peço pra trazerem um copo.

Neguei com a cabeça e cruzei os braços. Após todos provarem suas novas doses, Epifânio retomou o assunto.

– O problema da greve – ele disse, pensativo – é que o pessoal consegue as coisas e se aquieta. Em vez de repararem no poder que possuem e que podiam usar para avançar, ficam satisfeitos com qualquer migalha e descansam. Agora estão lá na Companhia, todo mundo trabalhando conformado e se achando grandes beneficiados, quando no fundo continuam sendo explorados. Por isso que não adianta ficar nesses tira-gostos. Precisamos é da... solução definitiva de uma vez.

– Calma, Epifânio, tudo a seu tempo – Quatro apaziguou. – Estamos providenciando isso também.

– E por falar no assunto... – Praxedes encarou Astrakhanov – Novidades do povo de lá?

Astrakhanov, que estava dando outro gole, baixou o copo e encarou Praxedes.

– Tem. Perguntem pra Anita – ele disse. – Perguntem sempre para a Anita.

Todos os olhos se voltaram para mim. Cobri o busto com o xale antes de colocar a mão na blusa por baixo dele e puxar de lá as tirinhas de papel que guardara no sutiã, que entreguei a Astrakhanov. A foto saiu junto, e Astrakhanov devolveu-a para mim com uma careta, antes de alisar os papéis e repassar os telegramas decodificados para Lago e Praxedes. Alguns dos outros camaradas presentes se espremeram juntos para espiar. Eu já sabia o conteúdo dos bilhetes, porque os colecionara durante todo o mês de junho, para muita contrariedade do tenente. Não havia o que fazer, porém; não podia jogar as informações fora antes de transferi-las para o Partido. E por saber o conteúdo dos papelotes, podia prever a reação dos camaradas quando os lessem.

– Como assim mudança de linha? – Praxedes exclamou, quase indignado. – Como assim no país inteiro, como assim a ANL? Esse povo não se decide, não?!

– Assim, assim – resmunguei, recolhendo os papéis depois que tinham passado por todos do grupo e devolvendo-os ao seu esconderijo. – Eu não defino a linha, apenas transmito as mensagens – defendi-me, escudando-me no papel de subordinada para evitar questionamentos que eu não tinha como responder.

– Olha... por um lado é melhor – Quatro ponderou. – Assim já resolve o problema do país inteiro de uma vez.

– Resolve problema? – Epifânio voltou-se para ele com as sobrancelhas franzidas em indignação. – Que resolve problema, homem?! Já viu quem está na ANL? Tá carregadinho de pequeno-burguês e oportunista. Nesse angu tem caroço.

– Realmente não vejo o ponto em nós fazermos uma movimentação trabalhosa para entregar o poder para... gente moderada – Lauro comentou.

– Também não precisa exagerar – Praxedes fez um gesto requerendo paciência de Epifânio, que quase soltava fogo pelas ventas. – Mas que vou tirar isso a limpo, vou. Cadê o Santa? – ele olhou em volta. – Já vou pedir pra ele mandar uma mensagem pedindo confirmação dessas instruções.

– Santa está dançando, aproveitando a festa – falou Paiva, aparecendo do nada atrás de Praxedes, que pôs a mão no peito do susto que levou – e vocês também deviam.

– Agora não, estamos no meio de um negócio aqui.

Paiva se inclinou e sussurrou no ouvido do colega, alto o bastante para que o restante de nós na mesa ouvisse.

– Melhor esperar as fardas ficarem grogues.

E ele olhou para a nossa esquerda e para a direita, fazendo com que olhássemos disfarçadamente também.

Dois militares, pelo uniforme, pertencentes ao batalhão de cavalaria sediado na cidade, circulavam à nossa volta, andando para cima e para baixo, a uns dois metros das nossas mesas. Pareciam concentrados demais na própria conversa para que não fosse uma encenação. Do outro lado, três integrantes da polícia estadual conversavam junto à banca de pamonha. Por fim, às minhas costas, no outro extremo da pequena pista de dança improvisada em frente à bandinha, mais um par de militares ingenuamente aproveitava a diversão. Verdade que estavam longe demais para nos ouvir, especialmente com os músicos no meio do caminho... a menos que os nossos ânimos se acirrassem, o que parecia prestes a acontecer.

– Obrigado por avisar – Praxedes murmurou para Paiva, que acenou e se afastou num passeio lento. Eu o segui com o olhar.

– Ele está de serviço hoje? – perguntei.

– Não, está a nosso serviço – Lago retrucou, em voz baixa. – Seguro morreu de velho. Supostamente em festa ninguém vai ficar nos espionando, mas não custa prevenir e plantar uns olheiros – complementou, num sussurro ainda mais discreto, inclinando-se em minha direção.

– Ideia do Lago – Praxedes disse. – Eu de início fui contra, preferia que pudéssemos nos reunir todos, nem que fosse uma vez. Mas acabou de se provar uma precaução necessária – ele reconheceu, e o colega apenas acolheu o reconhecimento com um aceno.

De fato, apesar do que Quatro dissera no dia anterior, nosso grupo sequer continha todos os camaradas da reunião na padaria. Lago, Praxedes, Epifânio e Quatro dividiam a mesa com Astrakhanov; em duas tábulas contíguas eu reconheci mais alguns, como o dono da padaria Palmeiras – eles pareciam absortos em conversas paralelas, interrompidas às vezes para ouvirem a discussão da nossa mesa. Outros companheiros pairavam por ali, como Paiva. Aproximavam-se, escutavam parte da conversa e seguiam para as barraquinhas, para junto das famílias – quem os tinha – ou para a pista de dança. Assim resguardávamos a aparência de encontros ocasionais.

Engenhoso, de fato.

A ordem agora era bancar os farristas inconsequentes, e descobri que os camaradas pandegavam com tanto afinco quanto discutiam sobre movimentos paredistas, orientações da liderança e clérigos com tendências socialistas. Eles pediram mais duas garrafas do néctar de cana e uns petiscos, e a conversa desceu para o nível das piadas mais toscas e anedotas de pasquim. Epifânio, cuja natureza não era muito brincalhona, preferiu ir tirar a companheira para dançar. Aproveitei para roubar a cadeira dele. Quatro dali a pouco também resolveu levar Zefinha para sacudir o corpo. Paiva surgiu tão do nada quanto da outra vez e ocupou seu lugar, pedindo bebida e entrando na brincadeira dos demais. Depois outros dois ou três rapazes que não me foram apresentados se juntaram à nossa mesa.

Logo as piadas genéricas deram lugar a uma zombaria mais pessoal. Caçoaram das origens indígenas de Praxedes, do trabalho e do tamanho de Lago, das entradas de Paiva. Astrakhanov, lógico, não permaneceu invicto: era muito divertido troçar do "gringo", especialmente porque a cachaça começava a fazer efeito e desacelerar seus reflexos, facilitando engabelá-lo. Eu devia defendê-lo, talvez? Conhecia as malandragens dos meus compatriotas e metade das brincadeiras em que faziam "John" cair. Mas não; ele decidira beber, agora que aguentasse.

Eu, que ficara perto deles na esperança de que retornassem aos assuntos sérios, pensava agora em voltar para junto das esposas, se bem que não restavam muitas nos banquinhos: umas estavam dançando, outras já tinham ido para casa. Reparando na minha cara de tédio, e em Astrakhanov, que olhava por sobre o ombro – com um ar meio deslumbrado de curiosidade – os casais se movendo no ritmo do forró, Lago sugeriu:

– Porque não leva sua esposa para dançar também, Seu John? – via-se que era difícil renunciarem ao tratamento de "camarada", mas faziam um esforço, em público. – Salve-nos. Pela cara dela, daqui a pouco Dona Anita rouba a arma do Paiva e dá um tiro em cada um de nós, pra ver se calamos a boca.

Ele caiu na gargalhada, e eu dei um sorriso amarelo. Não tinha pensado nisso, mas confesso que a ideia não me desagradava de todo.

Astrakhanov olhou para Lago, piscando.

– Dançar? Mas eu... não...

– Ah, essa eu quero ver – Quatro murmurou, risonho, ao voltar à mesa de copo na mão. A observação dele aumentou o incômodo de Astrakhanov. Outros companheiros pensavam como Quatro, e nos cercaram em expectativa, fitando o tenente.

– Eu... mas a Anita não...

– Se você não quiser, eu levo ela – ofereceu-se Paiva, pondo-se de pé, e me estendendo a mão. Olhei para a mão dele, inclinada a aceitar. Pelo menos me ocuparia e tomaria distância dos encachaçados.

– Ih, eu não deixava, hein – espicaçou Praxedes. – Esse aí se faz de quietinho, mas é só até pegar confiança. Depois não vai sair do pé de Dona Anita.

Paiva deu uma risadinha esperta ao mesmo tempo em que eu me punha de pé, e essa combinação de fatores fez Astrakhanov se decidir.

– Vem, Anita – ele anunciou, soturno. – Se você quer dançar, vamos dançar.

E, pegando minha mão, ele me puxou para o outro extremo da pista, levantando poeira do chão com seus passos duros, enquanto os camaradas explodiam em risadas às nossas costas.

– Engraçadinhos... – o tenente resmungou, apanhando minha destra de má vontade e pousando a mão esquerda nas minhas costas. Lançou um olhar de raiva por sobre o ombro, vendo os outros se dobrarem de rir diante da sua contrariedade. – Mas o que é que eu tenho que fazer? – questionou, então, baixinho, trocando a carranca e os resmungos por um tom humilde e uma expressão facial ligeiramente desesperada.

– Dançar, ué!

– Não sei dançar – ele protestou, ainda sem sequer mexer as pernas. Eu o empurrei de leve, para colocá-lo em movimento, já que a cada segundo imóvel, a hilariedade dos colegas de partido aumentava.

– Sabe sim – contrariei. – Você até dançou comigo no navio.

– Era só rodopiar no lugar – Astrakhanov rebateu. – Essas danças de brasileiro são mais complicadas. Não sei fazer aquilo – e indicou com a cabeça um casal à nossa direita, que se movia freneticamente, com os corpos tão colados que seus movimentos harmoniosos eram quase que uma decorrência das leis da física.

Observei-os um instante por cima do ombro.

– E nem eu quero que você faça – respondi, então, com uma risada e um arrepio. – Fora que a diferença de altura não permitiria.

Astrakhanov riu um pouco também e pareceu mais relaxado.

– Tudo bem, então... Como eu... começo... – ele me empurrou de leve, me puxou, trocou as pernas e quase cai e me leva junto. Eu já o dava como um caso perdido quando o Camarada Lago se apiedou e veio em nosso auxílio.

– Dá licença, camarada Anita? Deixa eu mostrar a ele como faz.

Segurei sua mão estendida e, com a outra, ele me enlaçou a cintura.

– É simples. Dois passos pro lado, dois pro outro, pra frente, pra trás, agora abre assim... Não, Dona Anita, você vai pro outro lado – ele me corrigiu. Ora, eu também nunca tinha dançado isso antes, não tinha obrigação de saber. – Isso. Agora repete. Assim. E só mantém. Entendeu, Seu John?

Astrakhanov fez que sim com a cabeça, e recebeu de volta a dama – no caso, eu. Lauro ainda ficou do lado um instante, para ver se tínhamos assimilado direitos seus ensinamentos; satisfeito com os primeiros passos tímidos e desajeitados que viu, aprovou com um aceno e ergueu o polegar para o tenente, antes de voltar para junto dos outros e de sua caneca de pinga.

– Isso é agradável, quando você pega o jeito – meu par comentou, uns minutos depois, quando se sentiu apto a prestar atenção em outra coisa além da dança. Eu fiz um muxoxo de indiferença e encolhi os ombros.

– Não é ruim – admiti.

– O ritmo é bem diferente do que eu estou acostumado, mas aquele instrumento – e ele indicou o sanfoneiro com o queixo – me traz lembranças de casa.

– Sim, já ouvi tocarem por lá – respondi, suavemente. – Mas acho que o instrumento era um pouco diferente.

Uma imagem de Kolia tocando harmônica piscou em minha mente, e antes que ela se abrisse e revelasse o resto da banda, eu a expulsei resolutamente, sem conseguir evitar, todavia, que certo amargor me revestisse as entranhas.

– Não sei, não sou especialista nesses detalhes – o tenente admitiu. – Em matéria de música, eu deixo que toquem, e só aprecio.

Presenteei-lhe um sorriso fraco, e encostei a cabeça em seu peito, deixando-me conduzir. Assim, fazia o mínimo de esforço e podia me dedicar a manter a União Soviética – e todo o seu conteúdo – longe da minha mente, para que não estragasse minha noite de celebração eminentemente nacional.

Astrakhanov, porém, não estava colaborando, porque continuava com as comparações.

– Não é interessante como conseguem fazer canções tão diferentes com o mesmo instrumento? Essas soam alegres, mas a que eu costumava ouvir no exército eram bem tristes. Bonitas, mas tristes.

– Até a mesma música pode ser feliz e triste, dependendo do momento – eu retruquei.

O tenente fez uma careta de dúvida, mas não contestou. A música tinha acelerado, e ele se concentrou em manter o ritmo. Tropeçou uma ou duas vezes, mas os colegas já não prestavam mais atenção em nós, então ele escapou da chacota. Era engraçada sua compenetração, contando baixinho os passos e obedecendo rigidamente à sequência ensinada por Lauro, como se estivesse realizando alguma demonstração num desfile militar. Comentei isso em voz alta, e ele riu, sentindo-se obrigado a concordar.

– Se quer saber, há militares que dançam muito bem – disse, em seguida – mas está visto que eu não sou um deles. Nem as danças típicas eu consegui aprender. Minha compleição não ajuda.

Analisando seu corpo magro e espichado de pernas e braços consideravelmente longos, eu nem podia discordar.

– Não sabe fazer aqueles pulos engraçados? – questionei.

– Pulos?

– Sim... vi o Capitão Tretiakov fazendo naquele dia no acampamento. Sabe, como que agachado e chutando o ar.

– Aaah – Astrakhanov sorriu, ao compreender do que eu falava. – O trepak. Não, não consigo. Tentei umas duas vezes quando estava muito bêbado, mas só acabou em lesões e zombarias eternas dos colegas que ainda não estavam bêbados e se lembravam no dia seguinte – ele fez uma careta. – É mais complicado do que parece. Admiro quem consegue.

– Talvez você consiga, se treinar bastante – eu repliquei com uma frase que ele costumava usar comigo... para qualquer coisa, desde os tempos da ELI. Qualquer coisa de cuja dificuldade eu me queixasse, pelo menos.

Ele sorriu novamente, achando graça na minha observação vingativa.

– Vou te dizer que eu nem quero. Não me importo em dançar mal – revelou. – Dança para mim só tem uma finalidade interessante.

– Uhm? E qual seria?

Curvando-se, ele cochichou em meu ouvido:

– Abraçar mulheres bonitas.

Achei que meus olhos iam enxergar o cérebro, do tanto que giraram. Astrakhanov só riu da minha expressão, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. Nada de bom poderia sair dessa conversa, então não tentei continuá-la. Segui me movendo com ele no ritmo do xote, baião ou sei lá que outro ritmo era aquele que emanava da sanfona, do triângulo, da flautinha e do violão.

Dali a pouco, como a noite ia alta e alguns dos casais pareciam amolecidos de cansaço, mas não queriam deixar a pista, os músicos alternaram para uma música um pouco mais lenta. Fui surpreendida quando Astrakhanov, sentindo-se seguro nesse novo ritmo, me estreitou a si. Alçando o olhar para o rosto dele, ergui uma sobrancelha, mas ele estava olhando por cima da minha cabeça, e nem atentou para minha estranheza. Dei de ombros e segui o compasso, com a mente se perdendo em outras paragens. Quando a música parou, porém, ele não me soltou de imediato. Apoiou o rosto no topo da minha cabeça, e inalou o perfume dos meus cabelos, deixando escapar um suspiro quase imperceptível em seguida.

Certo, agora isso estava ficando estranho.

– Vamos voltar para a mesa? – pedi. – Já estou cansada, e quero comer alguma coisa antes que eles acabem com os petiscos.

Astrakhanov concordou, e me conduziu pela mão para junto dos camaradas.

Logo mais os integrantes das forças de segurança à nossa volta rarearam e, conforme a noite avançava, os poucos que restavam na festa foram vistos em condições indignas de suas fardas. Provavelmente seriam punidos, se alguém contasse que eles tinham bebido em serviço. Ou não: talvez o comandante se fizesse de cego em tais ocasiões festivas.

O problema foi que, na hora em que nossa liberdade para conversar voltou, os policiais não eram os únicos pouco aproveitáveis. Famílias e moças de família já tinham ido para suas casas, a fogueira se extinguia, e os gatos pingados que restavam na festa saudavam ou amaldiçoavam aos brados o governador Mário Câmara, discutiam futebol animadamente, abraçados sobre algum banco, ou compravam os doces restantes nas barraquinhas para cortar o efeito do álcool que lhes ia no sangue. Isso mesmo, estavam todos bêbados, incluindo meus colegas de Partido. Umas oito garrafas vazias de pinga se empilhavam na nossa mesa, e Astrakhanov sozinho tinha dado conta de pelo menos uma delas, já que não recusava nenhuma vez que ofereciam nova dose.

Seu estado era o mesmo da manhã do dia que partimos de Leningrado, e meu humor também.

Colhendo das confusas e misturadas tagarelices dos meus camaradas que uma caravana da Aliança Nacional Libertadora estava vindo para a cidade e que nosso próximo encontro aconteceria após o comício da caravana, despedi-me de todos e comecei a arrastar Astrakhanov para casa.

Ele ia tropeçando, e, vergonhosamente, cantando. Em várias línguas. Tive que lhe dar um par de beliscões nas vezes em que ameaçou começar alguma canção em russo. Da terceira vez nem o beliscão adiantou: ele continuou cantarolando "Yablotchko" pelo restante do caminho. Para nossa sorte, as ruas estavam vazias, e ele cantava baixinho, esquecendo setenta por cento da letra e substituindo os vãos por assobios.

Os tropicões ficavam mais espalhafatosos a cada passo, acompanhando uma incapacidade de andar em linha reta que nos estava atrasando. Assim, para aumento da minha irritação, fui obrigada a puxar o braço dele e segurá-lo sobre os meus ombros, meio arrastando-o, meio carregando-o por metade do caminho até nossa rua estreita.

Chegamos em casa alta madrugada, e eu agradeci mentalmente por finalmente poder largá-lo no sofá, pois meu ombro já não aguentava apoiar aquele peso todo. Ele resmungava coisas incoerentes enquanto procurava as chaves no bolso do paletó, até que eu me impacientei, enfiei a mão no bolso correto, e abri a casa eu mesma. Torcia para que, pelo menos, ele mantivesse seus resmungos somente em português, pois havia vizinhos espiando pelas cortinas. Dona Ermenegilda acreditava mesmo que o narigão dela não estava visível na fresta?

Astrakhanov estava apoiado na porta e quase caiu no chão quando eu a empurrei. Conseguiu recuperar o equilíbrio, porém, e ficou olhando em volta na sala escura, com ar confuso. Suspirei profundamente, com saudade dos hábitos abstêmios da ELI, e com vontade de bater cabeça com cabeça dos camaradas de Natal. Então, reunindo o que restava da minha paciência, fiz John se sentar no sofá. Ia pegar uma coberta e um travesseiro e ficar de bem com minha consciência, ele que dormisse ali mesmo, mas o rapaz reteve meu pulso quando tentei me afastar, e fez-me sentar ao seu lado.

– Eu tenho... um segredo pra você – disse, com ar de criança travessa, e o bafo de cachaça veio todo na minha cara, fazendo-me franzir o nariz e recuar a cabeça.

– Sério? – perguntei, a voz pingando irritação e ironia, mesmo que eu soubesse que ironia não adiantava com bêbados. Nem com sóbrios, às vezes. Contrariar também não adiantava, então eu apenas escutei pacientemente.

Astrakhanov assentiu, com um cômico ar de conspiração. Curvando-se para mais perto de mim, e me obrigando a prender a respiração para escapar do cheiro de álcool, ele sussurrou no meu ouvido:

– Eu ouvi dizer que... ick!.. os outros casais falsos... ick!.. agora são casais de verdade.

– Que outros casais falsos? – perguntei, franzindo as sobrancelhas, inicialmente sem alcançar a que ele se referia.

– Os outros casais falsos que vieram em missão. Erna e Gruber, Sabo e Berger...

– Sabo e Berger nunca foram um casal falso. Eles estão juntos há dez anos.

Ela deixara escapar essa informação para Erna, numa das poucas reuniões em que estivemos as três.

– ...e o seu líder máximo com aquela oficial alemã...

– Prestes? – eu exclamei, só um tantinho surpresa.

Nos poucos dias em que ficáramos no Rio de Janeiro, eu mal tinha tido oportunidade de vê-los, mas aquela mulher estava sempre na volta de Prestes. Uma eficientíssima oficial de segurança, disseram-me, e eu, com certeza, acreditei. Era exatamente o que se podia ler daquele rosto bonito, mas sempre duro e sério. Podia imaginar ele se apaixonando por ela, Prestes me soava mesmo como um tipo bem romântico, apesar da fama de nunca ter se envolvido com alguém. Mas ela, Olga, como a chamavam, mais parecia casada com o Socialismo, tal qual a tia do Pavel, e com o coração bem longe do alcance de um mero ser humano.

Se é que havia coração ali.

Meu momento de reflexão foi interrompido quando Astrakhanov anuiu, com uma expressão de menina fofoqueira que eu nunca imaginaria possível naquele rosto tão masculino, de sobrolho pesado.

– Eles são amantes, eu ouvi dizer – murmurou o rapaz, com uma risadinha maliciosa. E, após curto silêncio – Nós também podíamos.

Minha cabeça virou bruscamente para o lado dele. Olhei dos olhos desfocados que me encaravam para o polegar que traçava círculos no meu braço direito, e puxei esse mesmo braço, livrando-o da mão do tenente.

– Não vou ser sua amante, Astrakhanov – eu disse, tranquila, mas claramente, evitando chamá-lo com o nome de campanha para que ele lembrasse, mesmo através das trevas da ebriedade, que nós não éramos John e Anita, nunca seríamos John e Anita.

– Não precisa, já somos casados com duas personalidades – ele disse, erguendo quatro dedos em frente da cara. – Podemos casar com mais uma, é fácil, é fácil. Maria Clara e...

– Vá dormir, Astrakhanov, você está bêbado – interrompi, num misto de exasperação, incredulidade e hilaridade. Ele voltou o rosto para mim e me olhou atentamente por alguns segundos.

– Estou, não é? – concordou. – E o komsomolets ideal é abstêmio. Eu não sou o komsomolets ideal – concluiu, com ar desolado, retendo mais uma vez minha mão nas suas e apoiando a face nela.

Eu ri, e me levantei.

–Ninguém é, querido, ninguém é – consolei, dando leves tapinhas na face dele,antes de desprender minha mão e ir para o meu quarto dormir. 

***

Notas:

Trepak (também tem o gorpaké uma dança típica russa/ucraniana, se não me falha a memória, de origem cossaca, com alguns movimentos bem conhecidos como este:

Aparece no balé "O Quebra-Nozes", e por ser considerada uma dança masculina, foi incorporada tanto às farras quanto a apresentações oficiais de grupos de dança do Exército Vermelho:

Yablotchko, a música que o Astrakhanov estava cantarolando, é uma canção tradicionalmente associada aos marinheiros da frota do norte (especialmente os de São Petersburgo/Petrogrado/Leningrado), e que costuma aparecer com a coreografia que ganhou em um balé de 1927:

Continue Reading

You'll Also Like

60.8K 6.1K 35
𝐄𝐍𝐓𝐑𝐄 𝐓𝐎𝐃𝐎𝐒 𝐎𝐒 𝐂𝐀𝐒𝐎𝐒 𝐃𝐄 𝐃𝐀𝐄𝐌𝐎𝐍, ᵘᵐ ᵈᵉˡᵉˢ ʳᵉⁿᵈᵉᵘ ᵘᵐᵃ ᶠⁱˡʰᵃ, ᵉˢᵗʰᵉʳ, ᵘᵐᵃ ʲᵒᵛᵉᵐ ʳᵃⁿᶜᵒʳᵒˢᵃ. ᶜᵒᵐ ᵒˢ ᵃⁿᵒˢ ᵃ ᵉˢᵖᵉʳᵃⁿᶜᵃ ᵈᵃ ᵖʳⁱⁿᶜᵉˢᵃ...
15.9K 1.1K 7
Onde eu escrevo sobre os pedidos de vocês e minhas ideias doidas.
79.8K 9.4K 64
[FINALIZADA] Em seu décimo primeiro aniversário, Jennie Kim recebeu uma carta de uma escola que ela nunca havia ouvido falar sobre: Hogwarts. Jennie...
28.5K 4.6K 158
e Wenying, a jovem e bela diretora do departamento de obstetrícia e ginecologia, certa vez viajou para a década de 1980. Ela tinha que comer ou não u...