Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 58 - O Santo Revolucionário

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By erikasbat


Enquanto o valor de um ser humano for determinado pela quantidade de melanina em seu corpo ou pelo que ele carrega no meio das pernas, em vez de se observar suas atitudes práticas no dia a dia e a força moral que determina suas respostas aos diversos estímulos da vida, não estaremos preparados para a igualdade. Teremos apenas uma igualdade parcial e precária. Afinal, se ainda nos prendemos a julgamentos por critérios tão primitivos e despidos de lógica, como não seremos enganados pelas redes de sofismas em que os capitalistas enredam os trabalhadores, fazendo-os crer que seu estado de miséria é fruto de sua própria indolência, e que todos têm chance de enriquecer, desde que acordem cedo e trabalhem muito? Ora, todo trabalhador já não acorda cedo e trabalha muito? E para quê, se não para saquearem a maior parte da riqueza que gera, sob desculpas várias?

Mas não nos desviemos. A questão é que esse tipo de argumento dos patrões só pega o proletário desprevenido e o engoda porque no fundo de cada trabalhador há um explorador escondido, esperando sua oportunidade. Ele se revela quando o trabalhador oprime seu irmão de classe por causa da cor, do sexo ou até por ser de uma categoria profissional considerada inferior. Então, devemos nos despir do impulso de minimizar outro ser humano. Só quando não sobrar em nós nenhum desejo de se sobrepor, de ver o outro num nível abaixo do nosso, é que estaremos prontos para a verdadeira igualdade.

Rosa Luxemburgo Pindoramense.

– Muito bom o artigo, camarada – elogiou Torquato, o Camarada Quatro, logo após terminar a leitura. – Você se surpreenderia como tem gente nas nossas fileiras que precisa ouvir isso – ele disse, sacudindo um dos exemplares.

Eu tinha outro na mão, e relia com orgulho os parágrafos finais do editorial de nossa primeira publicação. Decidira abordar aquele assunto no jornal, mesmo que num único artigo, por conta do relato de Santa no dia da reunião. Não sei se minhas palavras causariam alguma mudança benéfica para ele e seus irmãos de cor, mas a julgar pelo sorriso de Quatro, que também era negro, pelo menos ele se sentira representado em suas lutas pessoais, o que já me deixava feliz.

– Gostei do pseudônimo, também – ele acrescentou.

– Escolhi para homenagear uma mártir da nossa causa – me vangloriei. – E o bom é que não dá nenhuma pista sobre a minha identidade aos enxeridos da polícia. "Rosa Luxemburgo Pindoramense" pode ser qualquer mulher comunista no país.

– Na verdade tem outra moça nas nossas fileiras que se chama Rosa Luxemburgo. É da União Feminina, de Mossoró, novinha, mas arretada. Filha do Camarada Bangu, conhece?

– Acho que já o encontrei uma vez... – murmurei. De fato, havia uma face bem vaga na minha cabeça, mas eu não lembrava onde a tinha visto.

– Então, ele é velhão na causa, e quando a menina nasceu, só dava essa polaca nos nossos jornais. Não sei se o padre deixou batizarem ela com esse nome, na verdade nem sei se ela é batizada.

– Puxa, será que eu vou causar algum problema para ela se continuar assinando assim? – balbuciei, a empolgação com minha própria sagacidade murchando de imediato.

– Não... Pode deixar, que ela não tem medo. Tem gente que chama ela de Amélia. Sabe como é, não se tem certeza do nome de ninguém. Até melhor assim, que se a polícia pergunta quem é Fulano ou Sicrano, a gente pode dizer de consciência tranquila "nunca nem vi".

E com uma piscadela para mim, ele alçou a voz, para pegar no pé de Astrakhanov, que estava junto a pia preparando chá.

– Tudo pela segurança, não é mesmo, Camarada Gringo? – provocou.

Pouco tempo convivendo com o tenente e o ferroviário já tinha descoberto sua obsessão.

– Sim, Camarada Quatro – Astrakhanov respondeu, sem se perturbar, voltando à mesa com a xícara que exalava vapor. – E falando em segurança, quando é que vão levar esses jornais para distribuir? Daqui a pouco chega a nova leva. Se atulharem nossa casa com as edições atrasadas, vai ficar insustentável a situação.

Quatro se remexeu na cadeira, desconfortável com nossos olhares severos.

Astrakhanov tinha razão em pressionar.

Quando tratei com Silo e Caetano sobre as alterações que o Partido de Natal pedira para realizar na preparação do jornal, eles consideraram mais seguro realizar a impressão num só lugar, mesmo com os percalços do transporte. Outro dispositivo para imprimir, além de caro e difícil de arranjar, nos exporia a mais riscos do que quatro horas de estrada carregando uns maços de papel. Ora, no caso de uma batida policial ou uma revista surpresa, papel se podia até engolir, mas não dava para fazer o mesmo com um mimeógrafo.

Para aproveitarmos bem as viagens dos emissários, combinei que toda vez que nos trouxessem uma tiragem, já sairiam de Natal com o rascunho da edição seguinte no bolso. Assim que o primeiro número saiu do prelo, um caixeiro-viajante nos trouxe uma leva, levou a segunda matriz e me repassou notas dos comunistas de Pernambuco e um artigo de Silo para incluir na terceira edição.

Logo ele voltaria para mais uma rodada, e a primeira edição continuava encalhada em nossa casa. Olhei para o pacote de papel pardo no canto da parede. Quando nos foram entregues, os jornais eram tão novos que quase se podia sentir o aroma de álcool etílico exalando do papel ofício, salpicado de letrinhas arroxeadas graças ao carbono da matriz. Agora já até perigavam amarelar, porque ninguém viera coletá-los.

– Eu vou levar hoje, prometo – Quatro garantiu. – Inclusive apresse aí, Camarada Gringo: era bom a gente não se atrasar, ou capaz de eles quererem segurar a gente amanhã na Western, para compensar o atraso, mesmo sendo feriado. Vai ter reunião, e vocês finalmente foram convidados – disse, coçando a nuca com um risinho sem graça.

O Partido estava nos dando um gelo.

Eu e Astrakhanov sofríamos em Natal os reflexos de uma tormenta que se desenrolava lá no Rio de Janeiro. Certo, não chegava a ser uma tormenta, estava mais para um... movimento discreto de placas tectônicas, potencializado em seu alcance pelo forte senso de hierarquia no PCB.

Miranda e Prestes estavam se desentendendo quanto ao comando da Revolução.

Eu até estranhei quando fiquei sabendo, pois na ocasião em que os vira juntos, eles pareciam unha e carne. Mas então a Maison puxou a orelha de Miranda por causa do artigo sectarista no Classe Operária. Certamente uma bronca desse tipo doía no ego. E, porque o incidente coincidira com a chegada de Prestes, o Secretário-Geral devia ter considerado aquilo uma manipulação do gaúcho para tirá-lo do caminho e ficar com o comando todo para si.

O pobre do Prestes provavelmente não tinha nada a ver com isso. Berger enviara o jornal, logo após trazer para a reunião, e não poderia deixar de fazê-lo – era seu dever como representante do Bureau Sul-Americano do Komintern. Mas agora as facções estavam criadas, e nós pertencíamos aos "do Prestes", e estávamos excluídos dos assuntos "do Partido".

Nossa situação ainda se agravou, pois o dinheiro que prometêramos na primeira reunião chegou só no final de junho. Os camaradas potiguares pensaram que estávamos escondendo propositalmente a verba, e esfriaram ainda mais para conosco. Chegava a ser ofensivo sofrer essas suspeitas quando nós mesmos estávamos fazendo malabarismos e vivendo a pão e água, enquanto esperávamos pelo montante do Rio ou o ordenado de Astrakhanov, o que viesse primeiro para tirar nossas barrigas da miséria.

Durante o final de maio e quase todo o mês de junho, só tínhamos tido contato com Quatro, que não conseguia fugir de Astrakhanov no trabalho, e Mário Paiva, que achava toda essa intriga uma grande besteira e vinha às vezes tomar um café. Sempre em horas em que Astrakhanov estivesse presente, para evitar falatório. Por eles nós soubéramos quais as raízes do problema, e por eles ficávamos sabendo, agora, da oportunidade de reconciliação.

– Vai estar todo mundo, cada um já leva um bolinho desses pra espalhar, logo eles correm o estado.

– Todo mundo? – Astrakhanov arregalou os olhos, chegando a largar o pão com manteiga. – Vocês não disseram que esse tipo de reunião era exceção?

– Não é uma reunião normal, e a polícia não vai se dar por conta – tranquilizou Quatro. – Já ouviram dizer que o melhor lugar pra se esconder é no meio da multidão? Pois então, a gente sempre aproveita essas oportunidades.

– Multidão? Aonde vamos, algum comício? – questionei.

– Não – Quatro levantou-se e apanhou o chapéu. – À festa de São João.

Exclamações de surpresa e compreensão ainda pairavam em nossos lábios, quando ele acrescentou:

– Lá todo mundo pode fingir que é amigo e no dia seguinte fingir que não se conhece. É pra isso mesmo que esses feriados servem. E o próprio efetivo policial vai estar ocupado demais se empanturrando, namoricando e pulando fogueira pra prestar atenção em nós. Se prestarem, a ressaca do outro dia não vai deixar lembrar.

Com um tapa na mesa, voltou-se para Astrakhanov:

– Vamos?

O russo também levantou, catou o próprio chapéu, a pasta, e eles saíram, deixando-me com a promessa de que Quatro viria com a família na manhã seguinte para nos acompanhar à festa.

O dia 24 de junho amanheceu ensolarado como se nem fosse inverno. Para os nordestinos, de fato, não era: descobri que chamavam de "inverno" o período de chuvas, findo meses atrás. Mesmo sem frio do qual me proteger, eu revirava minha gaveta em busca de um xale que pudesse improvisar como véu, pois iríamos assistir à missa matinal na Catedral Velha, por insistência da esposa de Quatro.

– Sabe como é, eu nem queria, mas o que a mulher da gente não pede sorrindo que a gente não faça chorando? – ele se justificara, encolhendo os ombros e coçando a nuca.

Fazia tempo que eu não tinha mais roupa de missa. Cocei-me para encontrar um vestido com cara de festa e que não me trouxesse lembranças como o azul que comprara na Torgsin ou o branco com florezinhas, que me acompanhava desde São Paulo. No fim das contas achei um menos puído, que se adequava ao clima e aos padrões de decência da cidade: pelo que tinha reparado, em Natal as mulheres usavam vestidos mais compridos que no Rio de Janeiro, com a saia terminando na canela ou na metade da panturrilha, e olhavam torto para saias com alguns dedos a menos... e para suas donas.

Xale não achei, mas localizei o lenço que ganhara de Anna Solinina.

Suspirei.

Era o jeito.

No fim, olhando-me de passagem no espelho, até que meu aspecto não me causou repulsa. Pelo contrário: trouxe uma agradável nostalgia dos tempos de criança, quando toda a família se arrumava com suas melhores roupas para assistir aos serviços de domingo. Em seguida geralmente havia um almoço com comidas mais incrementadas que o arroz e feijão cotidianos. Por essas e outras, os domingos e feriados eram dias muito esperados, a despeito da confusão que sempre acompanhava os preparativos tanto das vestimentas quanto das refeições.

Ah, minha mãe, minhas irmãzinhas barraqueiras. Quantas saudades.

Eram muitos suspiros para uma manhã só.

Sacudindo a cabeça, fui chamar Astrakhanov. Não sabia se ele já havia acordado, porque não o ouvira andar pela casa ainda, como todas as manhãs. Com o gosto que ele tinha por uma indumentária impecável, era melhor começar a se arrumar logo, antes que nossa companhia chegasse.

Aproximei-me da porta e bati de leve. Não houve resposta, além de alguns murmúrios indistintos, e eu colei o ouvido à madeira. Os murmúrios continuavam; parecia um monólogo. Será que ele estava passando mal, e não conseguia chamar por ajuda? Testei a maçaneta e vi que não estava trancada.

– Está tudo bem, John? Algum problema? – fui perguntando, apressada, ao entrar no quarto dele sem cerimônia. – Quatro logo chega com a família e... o que você...?

O rapaz estava ajoelhado em um canto, e pulou de pé, virando-se para mim com ar assustado e escondendo alguma coisa na camisa, quando ouviu minha voz.

– Oi, o que tem o Quatro? – perguntou, em tom vivo, tentando desviar minha atenção da sua anterior atitude suspeita. – Ah sim, já vou me aprontar, é só vestir o paletó e...

A curiosidade, todavia, era um dos meus traços dominantes, e antes que ele pudesse se recuperar de todo, eu caminhei direto para ele e puxei uma cordinha de couro que sobressaía da sua gola.

Um crucifixo de madeira saiu, pendurado na cordinha e ainda quente do contato com o corpo dele. Astrakhanov ficou vermelho como um pimentão, e com um esgar irritado, puxou da minha mão o utensílio, ocultando-o novamente.

– Sim, eu estava rezando, e daí? – comentou selvagemente, com ar de desafio.

– E daí nada – eu comentei, com um dar de ombros despreocupado. – Não vejo o que poderia haver de errado nisso. Reze à vontade – disse, dando meia volta e fazendo menção de sair do quarto.

A expressão do soviético suavizou-se um pouco, e ele me chamou de volta.

– Eu já terminei – falou. Depois me encarou com desconfiança: – Sério que você não vê problema? Não vai me passar nenhum sermão sobre como o homem é dono do próprio destino e a religião é o ópio do povo?

Eu encolhi os ombros.

– Sempre achei essa frase estúpida – eu disse, arrepiando-me um pouco ao admitir, já que a frase era de Marx. – Qualquer coisa pode servir de ópio. Se não for a religião, será o esporte, a diversão, até a busca pelo conhecimento. Quantos cientistas e artistas não se alienam das dores do povo? É tudo uma questão de se a pessoa quer saber e agir. Se não quiser, arranja fácil uma desculpa. O homem é muito criativo quando o assunto é se justificar.

Astrakhanov manteve um olhar entre surpreso e cético sobre mim um instante, e depois sacudiu a cabeça.

– Bem, eu sou ortodoxo – revelou, após um instante, catando o paletó bege e rumando para o corredor, a fim de vesti-lo na frente do espelho. Creio que com a manobra ele também tencionava fugir do meu olhar; não parecia confortável, mesmo após eu garantir que não compartilhava do preconceito bolchevique contra gente religiosa. – Apenas faz muito tempo que não pratico. Sabe como é, na caserna... e depois na ELI... enfim, como ia à igreja hoje, achei que era uma boa hora para... ajustar as contas, me confessar, sei lá.

– Entendo – murmurei, apoiada de braços cruzados no limiar do quarto dele. – Talvez eu devesse fazer o mesmo – silêncio. – Sabe que quando estava no seu país, eu tinha um amigo sacristão? – contei, a ver se diminuía o desconforto do tenente. A frase foi como um gancho puxando o rosto dele para o meu lado.

– Você o quê?

Antes que eu pudesse contar sobre o passarinho humano da Catedral de São Basílio, porém, ouviu-se um grito de "John!".


– Oi, aí estão vocês! Desculpa tirar vocês da cama cedo em feriado, mas é uma pernadinha daqui da Ribeira até a Matriz.

– Pernadinha! Dá vinte minutos, homem! – exclamou sua esposa, com um estalar de língua.

– Pras minhas pernas e as tuas, pros toquinhos dos meninos dá meia hora ou mais – contrariou o homem, afagando a cabeça do caçula. – Já pro John dá quinze – caçoou, indicando o tenente e caindo na gargalhada.

Astrakhanov censurou-o com uma careta, mas acabou sorrindo também. Terminou de trancar a casa com as costumeiras duas voltas na chave, e me ofereceu o braço. Logo descíamos a ruela calçada com pedras em que ficava nossa residência em direção à paralela Rua Frei Miguelinho, enquanto Quarto apresentava os companheiros de jornada.

– Esse espichado aqui é Torquato que nem o pai. Só não deixo chamarem de Quartinho, porque aí seria abuso. E esse menor, que tem cara de sossegado, mas não se enganem não, isso aí é sono! Esse menor se chama José, em homenagem à mãe, minha Josefa, Zefinha para os íntimos.

A esposa graciosamente apresentada estendeu brevemente a mão para apertar a minha, e em seguida a de Astrakhanov.

– Só José? – perguntou o tenente, apontando o menino de calças curtas marrons. Torquato confirmou com a cabeça. – Eu me perco no meio de tantos. Como vocês fazem pra lembrar quem é quem?

Eu estava mesmo ouvindo um russo reclamar de nomes repetitivos? Ergui os olhos para Astrakhanov com a expressão mais irônica de que era capaz, mas ele nem reparou.

– Não é à toa que aqui tem muito apelido – Torquato replicou, ainda rindo do comentário do tenente. – "Zé" ele já ganhou de nascença; o complemento vai ter que conquistar com os próprios feitos.

O menininho alçou os olhos ainda meio adormecidos para o pai, compreendendo que falavam dele, mas sem apreender o sentido. A pouca brisa logo o acordou, porém, e ele cutucou o irmão para irem adiante, correndo um pouco, pulando um pouco, desafiando um ao outro com os elementos que encontravam pelo caminho, enquanto descíamos a rua.

Mantendo os ouvidos nas palavras de nosso guia, que falava sobre a cidade e a festa e várias outras coisas, deixei meus olhos seguirem os peraltinhas pelo caminho, com os pensamentos em meus sobrinhos e em Dúnia Solinina, que já deviam estar todos com mais ou menos aquela idade agora. Como crianças conseguiam ser tão parecidas em qualquer canto do país ou do mundo? As cores e traços variavam, a língua e os trajes também, mas lá estavam os mesmos hábitos, gostos, e desejos pueris. Bastava-lhes doces, brincadeiras e amor para serem felizes. As brincadeiras mudavam de nome, mas eram muito parecidas: sempre formas de correr, se esconder, pular e mexer o corpo e a imaginação inquietos, loucos para se desenvolver. Os doces podiam ser diferentes, alguns derretiam na boca, outros, crocantes, estalavam nos dentes, mas traziam igual satisfação.

Nos pequerruchos, a uniformidade do elemento humano transparecia mais evidente, livre dos muitos véus culturais com que a embrulhamos ao longo da vida, camada sobre camada aumentando o abismo que nos separa dos outros.

Meu pensamento, que já se encaminhava para a lua, ou talvez mais longe – para as dimensões filosóficas – foi puxado de volta aos doces quando Zé veio pegar-se às calças de seu pai e implorar-lhe um pé de moleque:

– Ara, rapaz... Sim, chegando lá a gente vê, mas me largue as calças, se não eu tropeço!

– Pra mim também, pai? – o mini-Quatro se aproximou na rabeira do irmão.

– Se o Zé ganha, claro que você ganha também, aqui é na base da igualdade – garantiu o operário, e a sua esposa riu baixinho, quando os meninos correram na nossa frente, mais saltitantes e alegres do que nunca.

Quatro virou-se para Astrakhanov.

– Sabe como é, né colega, a gente já vem preparado pra comprar o quanto der de gostosura, pras crianças aproveitarem bem a festa. Mas não pode contar antes, que daí eles não largam do pé pedindo mais e mais coisa – e ele tamborilou na própria têmpora, exibindo sua esperteza em matéria de criação de filhos.

– E o que tem para comer lá? – Astrakhanov perguntou, afagando a própria barriga. – Saímos sem tomar café da manhã, e já estou com fome.

– Aaaah tem tanta coisa que aposto que você nunca viu. Bolo de fubá, cuscuz, pamonha, cocada, curau... Diga, Zefinha, o que mais, que eu me esqueci.

– Tem arroz doce... Pipoca... Maçã-do-amor... Vai me comprar uma maçã-do-amor, né, Quatro? – ela pediu, dengosa.

– Vamos ver se a senhora merece – ele fingiu uma cara séria, depois caiu na risada. – Olha, estamos chegando! – exclamou, ao erguer os olhos, e avistar as bandeirinhas coloridas. Elas ondulavam penduradas em barbantes cuja outra ponta estava atada aos postes do outro lado da rua. – E eu que nem senti a caminhada.

A Rua Frei Miguelinho emendava em outras, que, seguidas sempre em linha reta, nos levaram ao bairro Cidade Alta que, segundo Quatro informou, era o berço da cidade de Natal. Perdi a chance de reparar no caminho ou nos edifícios que ele apontava, porque estava olhando as crianças. Pesquei com o canto do olho apenas a padaria Palmeiras, pela qual passamos não muito depois de sair de casa. Minha atenção só voltou para o nosso guia quando ele disse que a igrejinha que víamos no coração da praça fora uma das primeiras construções a ser erguida na cidade, no estado e até no Brasil, por volta de 1600.

Em Campinas, São Paulo ou no Rio eu nunca tinha visto um prédio tão velho, então observei esse com interesse. O tamanho reduzido para uma catedral atestava sua idade – afinal, não precisava muito espaço pra abrigar um colonizador, dois jesuítas, e meia dúzia de índios e escravos africanos. A fachada de cor clara e detalhes brancos nas esquinas e umbrais era assimétrica, com uma torre baixinha e uma alta, que, segundo Zefinha, fora construída só no tempo do seu avô.

– Ele até participou da construção... Pena que não por vontade própria. Ele ainda nasceu antes da lei do ven...

As duas torres tinham sinos, que começaram a tocar nesse exato instante, abafando as últimas palavras da esposa do operário. Desistindo de ser entendida, ela gritou pelos filhos.

– Torquato! Zezinho! Venham cá. Se aquietem, meninos – bronqueou, abaixando-se para alisar suas roupas, já meio bagunçadas das brincadeiras. – Respeito na casa do Senhor.

Eu também ajeitei minha indumentária, puxando o xale para a cabeça, e nos juntamos ao rebanho humano que refluía às estreitas portas da Igreja Matriz Nossa Senhora da Apresentação. Como por mágica, o ruído baixo que acompanhava a multidão se transformava em silêncio respeitoso tão logo cruzavam o limiar, em direção aos banquinhos de madeira escura que guarneciam a alva e estreita nave central. Acomodamos-nos num dos bancos traseiros, aguardando enquanto o restante dos assentos se enchia, assim como as galerias sobre as naves laterais, resguardadas por grades verdes. Quando o movimento no interior da igreja parecia ter cessado, ouviu-se um tilintar, e o sacerdote entrou, todo paramentado para a solenidade, com um incensário nas mãos e um par de coroinhas atrás, também trazendo objetos dourados cujo nome me escapa.

O padre era jovem, e parecia muito nervoso. Chegou a tropeçar na fímbria da batina, e quase que vai incensário voando junto com incenso e padre e tudo. Ele ficou um pouco vermelho, agravando para cor de pimentão quando alguns risinhos se fizeram ouvir, principalmente – mas não só – de crianças. Torquato Filho levou um puxão de orelha por causa disso.

Completando o percurso com expressão torturada, o padre se pôs atrás da mesinha e endireitou o rosto, assumindo um ar de resignação. Disse lá seus latinórios, convocou os fiéis para alguns "Aaaamém!" e, depois de um par de cânticos, abriu a Bíblia para contar a história do santo homenageado.

A pouca segurança que ele tinha recuperado durante a liturgia decorada fugiu como num passe de mágica agora que ele precisava dizer ao povo ao menos algumas palavras numa língua que eles entendiam, antes de retornar para o latim.

– São João Batista foi uma grande pessoa... Um homem justo, mártir, mestre... Ele... enfim, seu pai... Sua mãe...

O padre suspirou. Via-se que ele até tinha conhecimento do assunto, mas centenas de olhos atentos sobre si deixavam-no perturbado. Preferia que eles estivessem semiadormecidos, como nas partes incompreensíveis do ritual. Perdeu-se folheando as finas páginas do livro sagrado e precisou da ajuda de um de seus assistentes para encontrar a passagem que estava buscando. Tratava-se de um curto trecho do Evangelho segundo São Lucas, mais especificamente de seu terceiro capítulo, que continha um bom exemplo da pregação de São João Batista, segundo o padre. Ele leu primeiro em latim, como mandava o figurino, e depois traduziu, o mais fielmente que conseguiu de improviso. Era algo nessas linhas:

"E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois? E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer? E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado. E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo".

O padre limpou a garganta e olhou em volta para os rostos da multidão intrigada com a escolha do texto. Eu também olhei e reparei que a leitura perturbara alguns militares que tinham vindo à cerimônia ostentando orgulhosamente suas fardas e agora não conseguiam escapar da acusação no "a ninguém trateis mal". Não só eles, aliás. O prefeito, o governador e outros dignitários, nos lugares de honra, também rebolavam na cadeira como se ela estivesse coberta de formigas. Algumas pessoas lá na frente, em ternos e vestidos elegantes, cochichavam entre si, com ares de desagrado. Eu não podia ouvir o que diziam, mas tinha quase certeza que versava sobre a parte de repartir a roupa e a comida.

"Como assim São João Batista era comunista?", devia estar cruzando suas mentes indignadas. E as palavras seguintes do padre, atrapalhadas e gaguejadas, acabaram aumentando essa impressão.

– São João Batista, como eu disse, era um grande homem. Um mestre, um mártir, um... err... Enfim, ele recebeu uma missão divina, já nasceu com ela, na verdade, mas quando a entendeu, se dedicou com todas as suas forças. Foi para o deserto e se internou lá, comendo e vestindo-se nas condições mais precárias, dormindo ao relento para se tornar resistente, como um verdadeiro guerrilheiro!

Várias costas se enrijeceram. Entre o povo miúdo, a atenção redobrou. Astrakhanov olhou para mim, perguntando sem emitir som "Ele disse mesmo o que eu entendi?" e eu apenas confirmei com a cabeça. O padre, por sua vez, parecia ter encontrado um fio na meada de seu conhecimento esparso sobre João Batista, e estava disposto a segui-lo, sem se dar conta das caretas que começavam a enfeitar as fuças das dignidades.

– Mas a missão dele não era qualquer missãozinha paramilitar, não. Era a maior missão... bom, a segunda maior missão que um homem já teve sobre a terra: preparar o caminho do Nosso Senhor. E como ele podia fazer isso? Bom, preparando os corações das pessoas para receber a Graça Divina, que viria por intermédio do sacrifício do Nosso Senhor sobre a cruz. Graça é perdão, então como preparar as pessoas para receber o perdão? Mostrando no que elas estavam erradas, claro – explicou o moço, gesticulando, empolgado. – Quem é que vai aceitar um perdão se acha que não aprontou nada demais? Por isso São João se postava assim na beira do caminho, nos espaços amplos, na margem do rio, gritando para quem quisesse ouvir o que eles tinham feito, e também como podiam consertar, porque quem se arrepende de verdade não quer continuar fazendo a mesma coisa.

Um homem na primeira fileira tinha cruzado os braços e os pés e pigarreou. Mas o sacerdote pigarreou ao mesmo tempo, a fim de limpar a garganta para prosseguir o discurso, e não escutou o graúdo com cara de poucos amigos.

– Como eu dizia, ele falava como cada um que o procurava tinha que se consertar. Foram as palavras que eu li para os senhores e as senhoras hoje. E, vejam, elas não são aplicáveis até hoje? Não há até hoje, aqui, quem poderia escutar esses conselhos e começar a fazer o que nosso santo homenageado recomendou? Percebam que ele apontou coisas que qualquer um pode fazer. Ora, quem hoje não tem duas túnicas? E se a pessoa que tem duas túnicas ou um pouco de comida pode repartir com o outro que não tem, quem dirá então quem tem... um armário cheio de vestidos ou um enorme rebanho de reses graúdas?

Agora, nitidamente, a igreja estava em polvorosa. O silêncio respeitoso fora abandonado, e pessoas cochichavam em todos os cantos. Uma senhora idosa e um homem se levantaram no banco da frente e acintosamente se ausentaram. Só então o padre percebeu que tinha feito – ou antes, dito – algo errado. Seu rosto desceu do avermelhado para um pálido doentio. Mas pelos olhos ingenuamente arregalados, via-se que ele ainda não compreendia por que o casal se ofendera. Então, após sacudir a cabeça, decidiu seguir seu discurso, que até então estava indo tão bem:

– E as pessoas, as pessoas vinham até ele, impressionadas com sua honestidade e sinceridade e seu destemor, também, porque São João não tremia diante de ninguém! Nem de pequeno, nem de grande, nem de escravo, nem de coronel! – o braço do padre sacudiu-se numa ampla negativa sobre sua cabeça. – Centurião, que coronel não existia – corrigiu, distraído, seguindo com o olhar mais um trio que se ausentava. Desviou os olhos deles e voltou a atenção para a multidão. – São João, na força da consciência pura, dizia o que tivesse que dizer até mesmo às autoridades, fossem elas autoridades eclesiásticas ou terrenas. Quem estivesse fazendo algo errado ouvia bronca, mesmo que fosse o rei! Ele disse na face de Herodes, não uma vez, nem duas, mas várias vezes que ele estava cometendo uma indecência inaceitável com a sua cunhada. De modo, meus irmãos, que podemos dizer que São João Batista era um santo verdadeiramente revolucionário – e o padre silenciou, pensativo, cruzando as mãos sobre o ventre ainda magro.

Outro cidadão, de ventre nada magro, corpanzil equivalente à barriga e cabelos grisalhos encimados por um amplo chapéu, pôs-se de pé, de repente. Mesmo de onde eu estava sentada era visível o trabuco no cinto que rodeava as calças cinzentas de tecido fino. Ele, porém, não pretendia sair em silêncio.

– E como todo revolucionário – declarou sem medir o tom, com um vozeirão de causar inveja em locutor de rádio – terminou com a cabeça numa bandeja.

E, dando as costas ao padre, saiu em passos imponentes, com as esporas tilintando ao se chocarem com o chão de pedra.

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