Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras

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By erikasbat

Após trancarmos a casa, eu e Astrakhanov seguimos o guarda civil pela trilha urbana, pontilhada de postes de iluminação, cujos topos brilhavam como vagalumes contra o céu azul profundo. Àquela hora já não havia mais arruído nas ruas, exceto por bares ainda abertos e frequentados, pelos quais passávamos aqui e ali. Seguimos por um caminho cheio de curvas e quebradas, que eu me esforcei para memorizar. Por saber que a pessoa que nos guiava era um agente da segurança pública, eu não tinha certeza se não era uma armadilha. Sim, ele acertara a senha, mas até aí podiam ter interceptado o verdadeiro contato, e...

Enfiando a mão na minha bolsa, apalpei o pequeno revólver que ali se ocultava — o que ficara na bagagem, escapando ao confisco de Lampião — respirei fundo, e consegui recobrar parcialmente a tranquilidade, rememorando os procedimentos de emergência. Qualquer coisa, atirar primeiro e perguntar depois. Ou melhor, atirar, correr, e não perguntar coisa nenhuma.

O caminho sinuoso, para minha grande surpresa, conduziu-nos a um lugar conhecido: a padaria de mais cedo. Aquele pedaço da rua era mal iluminado, mas consegui vislumbrar o letreiro com o nome "Palmeiras" e um desenho da respectiva árvore, identificando o estabelecimento.

Fiz menção de questionar o nosso guia, mas ele ainda fingia não nos conhecer, andando um tanto à frente, e Astrakhanov me impediu de abordá-lo. Paramos debaixo de um dos postes, e eu fiz menção de procurar algo na bolsa, simulando uma discussão com Astrakhanov, enquanto, de canto de olho, observávamos o Camarada Paiva bater na porta traseira da padaria em um padrão específico. A porta foi aberta e Paiva sumiu por ela. Esperamos um carroceiro que se aproximava ultrapassar o prédio, e nos dirigimos para lá também, repetindo o código de batidas que víramos Mário usar.

Logo, estávamos do lado de dentro, no sopé de uma escada estreita, e um homem de meia-idade portando uma vela nos conduziu para o andar superior. A escassa claridade amarelada da vela permitiu-me vislumbrar muitos sacos grandes, provavelmente de farinha, e meia dúzia de homens de aparências variadas, sentados ou recostados nos sacos, com idades entre vinte e quarenta anos.

Nosso guia apagou a vela antes que eu pudesse me deter no exame de seus rostos. Particularmente, achei a atitude incauta, porque se eu e Astrakhanov fôssemos infiltrados, poderíamos sacar nossas armas no escuro com tranquilidade, eliminar todos – naquele pequeno espaço, tiros aleatórios na altura do peito dariam conta do recado, independente de boa mira – e fugir sem pressa. Se abafássemos o som dos tiros, só no final da madrugada alguém descobriria os corpos, ao vir pegar farinha para o pão matinal, e a essa altura estaríamos longe, tendo dado cabo da conspiração comunista em Natal.

Com uma mente tão imaginativa, por sorte eu não trabalhava para a Polícia. Mas não fui a única a atinar com a inconveniência do apagar precipitado de nossa única luz.

– Camarada, acenda de novo, por favor – bronqueou uma voz um tanto enrouquecida. – Eu tenho coisa para ler.

O pedido foi atendido, e o portador da vela entregou-a a um homem de estatura média, pele morena avermelhada e traços indígenas, apesar do cabelo crespo. Descobri ser ele o autor da bronca, quando falou novamente:

– Boa noite, Camaradas. A reunião de hoje foi convocada em caráter extraordinário porque temos novidades muito importantes para nossa causa — ele introduziu o assunto, em voz baixa e tranquila, olhando em torno com seriedade. — Como sabem, eu fui ao Rio de Janeiro no mês passado, a chamado do Comitê Central, receber instruções de interesse da Revolução proletária brasileira, momento em que fui informado de que o Partido tem planos para um levante próximo, e que devíamos nos preparar, preparar para valer, com armas e tudo, para deflagrar esse levante tão logo sobrevenha o aval da diretoria do Partido.

Ele fez uma pausa e olhou em torno outra vez, aguardando os murmúrios que indicavam que os ouvintes estavam cientes e lembrados desses fatos anteriores, antes de prosseguir.

— Quando estive por lá, perguntaram das nossas necessidades, e coisa e tal, eu falei das armas e das pessoas, porque tem muitos camaradas bem dispostos por aqui, mas pouca gente com... conhecimento teórico mesmo, é gente muito simples, a maioria sem instrução, enfim, um reforço não faria mal a ninguém, foi o que eu disse. Eles me mandaram algumas armas, mas parece que não há muitas por lá também, vamos ter que arranjar aqui mesmo. E mandaram o Camarada Santa, que vocês já conhecem — ele recapitulou, gesticulando em direção a um jovem negro, magro e alto, de chapéu, que acenou com a cabeça, anuindo ao testemunho do colega. — Ficaram de enviar mais alguém quando possível. Pois bem. Ontem recebi um telegrama do Secretário-Geral avisando da chegada de reforços do Rio de Janeiro, mais especificamente, avisando que os reforços já estavam na cidade, só não sabiam a quem se reportar, e com a ajuda do Camarada Quatro, que trabalha na ferrovia, localizei as pessoas, que são esses que acabaram de chegar, o Camarada Stuart e sua esposa Anita. Camaradas, em nome do Partido Comunista de Natal, sejam bem-vindos — o homem finalizou, pela primeira vez dirigindo-se diretamente a mim e a Astrakhanov.

Respondemos aos cumprimentos, e trocamos apertos de mão com os comunistas presentes, que murmuraram saudações. Além de Paiva, do homem qualificado como "Santa", e do condutor da reunião, que apresentou a si mesmo como Praxedes, sapateiro ("José Praxedes", ele disse, "Mas são tantos José e João aqui que nem vale a pena contar o nome de batismo"), estavam na reunião o dono da padaria, José Fagundes, um homem de meia idade gorduchinho e grisalho, o tal Camarada Quatro (apelido de "Torquato", fiquei sabendo mais tarde), que contatara Astrakhanov, e, para minha grande surpresa, o diretor da prisão local, um jovem baixinho e calvo chamado Lauro Lago.

Praxedes e Lago faziam parte da direção estadual do Partido, conforme nos explicaram em seguida, junto com dois camaradas de Mossoró. O Partido local sofrera uma reestruturação no mês anterior, quando Praxedes retornou do Rio, a fim de se aparelhar melhor para a projetada Revolução. É aquilo: uma revolução desejada num futuro incerto é uma coisa; quando ela ganha data, ainda que aproximada, nos obriga a escolhas e atitudes práticas. Eu sabia disso melhor que ninguém. E, por falar em atitudes práticas, os camaradas de Natal pareciam esperar que Astrakhanov e eu trouxéssemos a receita exata do que deviam fazer, pelo modo como ficaram nos observando ao fim das apresentações.

Coitados.

— Então, Camarada Stuart — Praxedes estimulou, vendo que permanecíamos calados. — Quais são as diretivas do Comitê Central?

Eu e Astrakhanov nos entreolhamos. Para não desapontar os colegas demonstrando que estávamos quase tão sem instruções quanto eles, puxei da blusa a carta de Vallée, e fiz uma cara bem séria, percorrendo com o olhar as linhas decodificadas, em busca das informações que podíamos revelar ao Partido.

— Bem, camaradas, creio que a principal questão que nos foi repassada da Capital diz respeito à ANL. Uma semana atrás houve outro grande comício e, segundo entende o... a liderança, os fins da instituição começam a se harmonizar com os nossos, não em tudo, claro, mas eles acreditam que se possa chegar a um entendimento para enfim... tomar o poder. O Camarada Luiz Carlos Prestes encaminhou uma carta que insinuava nossa participação no movimento de massa que ora se levanta, e parece que a recepção foi boa.

— Ah sim, a carta do Camarada Prestes, ficamos sabendo — José Praxedes comentou, frustrando minha novidade. Logo descobri que eles estavam melhor informados que eu sobre esse assunto. — O Santa tem um jornal em que saiu a carta dele todinha. Você trouxe, Santa?

O camarada convocado confirmou, puxando um par de folhas dobradas do forro de seu terno claro. A um sinal de Praxedes, entregou-me a folha, dizendo:

— Ainda não foi lido em reunião, mostrei só pro Praxedes. Os camaradas da Lloyd Brasileiro me trouxeram ele ontem. Se a camarada fizer o favor, já que está com a vela...

— Lloyd Brasileiro?

— É, dos navios. Sempre mandamos nossa correspondência por eles, melhor que arriscar os Correios e ser interceptado. O pessoal da estiva faz a ponte.

— Há muitos dos nossos nos navios — observou Praxedes. — Foram eles que me ajudaram a escapar da última vez que fui preso.

Essa informação sobre formas alternativas de comunicação veio muito a calhar, já que Vallée aludia a uma necessidade de diminuir a frequência das cartas. Os códigos que tínhamos, segundo ele, despertavam suspeitas se usados o tempo todo, e a Maison já nos puxara a orelha por causa disso, apesar de ser um problema generalizado do Komintern. Fazendo uma nota mental para mencionar a companhia naval na minha carta de resposta, eu abri o jornal e dei de cara com uma reportagem de duas páginas que me fez arregalar os olhos.

— Precisa ler tudo não — Praxedes aparteou, percebendo minha reação. — Só confirma se teve algum sinal de que podemos nos apoiar na Aliança.

Anuí, aliviada, e retornei às letras miúdas.

— Miséria... Vargas fascista... mmm... Imperialismo... latifundistas... latifúndio sustenta imperialismo, temos que lutar... mmmm... Opa, nacionalização de fábricas e fragmentação de latifúndios, já começa a falar nossa língua. "Aproximam-se, no Brasil, os dias de lutas decisivas e cabe à A.N.L. mobilizar e organizar as massas para o momento histórico que se avizinha". Lutas, organização das massas... isso me parece uma insinuação, um tanto tímida, mas ainda assim... O que acham? — ergui os olhos para os colegas.

Murmúrios e caretas se seguiram, expressando a mesma dúvida que eu sentia, mas Santa estimulou:

— Segue lendo que fica melhor.

Realmente.

— Olha, ele fala em proletariado aqui. Nossa! — a exclamação foi inevitável ante as linhas seguintes, que li com as mãos trêmulas de empolgação e surpresa por Prestes ter tido coragem de declarar aquelas coisas em documento público: — "Nestas lutas o proletariado se consolidou como classe, e está, incontestavelmente, já hoje à frente dos grandes movimentos pela libertação nacional do jugo imperialista e da barbárie feudal. A radicalização das grandes massas manifesta-se claramente, entre outros fatos, pela influência crescente do Partido Comunista, e a própria aclamação do meu nome nos comícios da Aliança é um indício de tal influência, porque não só os dirigentes da Aliança, mas as grandes massas que os apoiam, sabem que sou comunista e membro do PCB". Fato — pontuei. Voltando-me para Astrakhanov, adicionei: — Lembra quando fomos ao Comício, John, como eu te falei que o aclamarem era um bom sinal?

Astrakhanov confirmou em silêncio. Prossegui na leitura:

— "E a direção do proletariado é indispensável para garantir o sucesso da luta que empreendem pela libertação nacional as grandes massas trabalhadoras do país." E ele fala do s... da União Soviética — acrescentei, animada, ainda me dirigindo a Astrakhanov.

Observei de canto de olho o peito do tenente inchar enquanto eu citava os elogios de Prestes à realidade que tinha conhecido em seu exílio na União Soviética. Não podia culpá-lo pelo orgulho, mas era melhor ele utilizar logo seu poder de neutralizar a expressão, antes que os colegas brasileiros notassem. Não que eles fossem se opor à presença de um soviético, provavelmente ficariam entusiasmados, e honrados, mas... ninguém disse que podíamos revelar o disfarce para eles.

— "...consequência do regime soviético, é a melhor das demonstrações do que é capaz o proletariado, dirigido pelo seu partido de classe – o grande partido de Lenin e Stalin" — arrematei. — É, isso foi bem... direto. Se leram isso na frente de seis mil pessoas e ninguém saiu preso, temos um avanço. E faz sentido — observei, devolvendo o jornal a Santa e retomando a carta de Valleé — que o Partido tenha finalmente decidido aderir à ANL, como informam aqui.

— Finalmente, como assim? — Praxedes franziu as sobrancelhas. — Aqui já aderimos mês passado. Na verdade, fomos nós que organizamos e boa parte dos aliancistas daqui são dos nossos.

Eu e Astrakhanov nos entreolhamos novamente.

— Segundo soubemos, a diretoria nacional não tinha adotado ainda uma posição oficial — ele comentou, cauteloso.

— Sim, mas permitiram que as seccionais decidissem seu posicionamento sobre a organização — ouviu-se a voz ligeiramente rascante do diretor do presídio, que tinha estado quieto até então. — Acho que porque a própria ANL varia bastante de cidade para cidade.

— Foi o que eu escutei também — apoiou outro camarada. — Tem lugar em que eles só enfrentam milícia integralista, na Capital tentam derrubar a Lei Monstro, aqui pra cima ela tem sido importante pra denunciarmos as manobras dos coronéis. Parece que em Minas e em São Paulo estão tendo um trabalho grande até pra se constituir regularmente.

— São Paulo é pesado — murmurou Santa.

— O importante é que aqui, que é o nosso campo de ação, ela já está constituída — Praxedes nos puxou de volta para a pauta — e podemos usar para chegar nos trabalhadores que se esquivam de nós por causa da nossa ilegalidade.

— Sim, é exatamente o que sugerem — eu concordei, balançando a carta do Rio do lado do rosto. — Que continuemos o trabalho dentro da Aliança, sondando as pessoas que estariam dispostas à luta, a buscar mudanças mais profundas, e procuremos aliciá-las ao Partido. Enfatizam muito a ANL; dizem que logo ela pode se tornar vital.

A carta dizia um pouco mais, na verdade. Falava que a Maison tinha cobrado novamente a adoção da palavra de ordem "Todo poder à ANL", mas Berger e Prestes, na impossibilidade de continuar dando silêncio por resposta, tentaram ganhar tempo pedindo a repetição das instruções, dizendo que vieram incompletas. Mas isso era questão de Estado-Maior. Aos camaradas de Natal bastava saber que precisavam se infiltrar na ANL e preparar o terreno para ações maiores.

Eles trocaram olhares e acenos de aprovação.

— Podemos fazer isso. É como o Partido aqui tem sempre crescido, na verdade, trabalho de formiguinha — comentou Praxedes. — Foi assim que começamos, no seio dos sindicatos moderados — acrescentou, deixando transparecer uma gota de nostalgia. Fiquei curiosa para ter uma conversa com ele; parecia ser um camarada experiente, e devia ter muito para contar. Mas agora não era o momento.

— Falando em sindicatos, como está nossa penetração neles? — aproveitei a deixa para pedir uma contextualização da situação local.

— Até que boa — Praxedes murmurou, cauteloso. — Sabe como é, tem sindicatos e sindicatos. Temos gente nossa em todos, e inclusive ajudamos a fundar a maioria. Alguns nós dominamos, como o Estiva Livre, o dos ferroviários, e o das salinas, mais pra dentro do estado. Em outros temos que disputar espaço com aquele demagogo do Café Filho — narrou, com um quê de ressentimento ao mencionar a figura.

— Café Filho? — repetiu Astrakhanov. Seu tom de estranhamento se devia muito mais ao nome, que lhe soara engraçado, do que a alguma curiosidade quanto à identidade do homem, mas eu fui a única a interpretar corretamente.

— Meu chefe — pela primeira vez desde que ele batera na nossa porta mais cedo, ouvi a voz tranquila do Camarada Paiva. Estava alguns passos à minha esquerda, recostado nos sacos de farinha, num canto mais ensombrecido. — O Chefe de Polícia. Posa de amigo dos trabalhadores, mas na verdade só quer é uma cadeira no Palácio do Governador. E os cafeístas tudo lá do trabalho morriam por ele, se precisasse. Bando de fanáticos idiotas.

— Esse nome não me é estranho — confessei, puxando pela memória. — Ele não andou pelos jornais uns anos atrás?

A risada foi generalizada.

— Claro que andou, ele até tem o jornal dele — comentou Paiva. — Vive em comício, discursando pelas praças, até mais do que fica na delegacia. Adora aparecer.

— Quando chegou por aqui, ele trabalhava junto com a gente, porque o outro lado eram os coronéis, bem abusados, não queriam saber de novato, sabe? Ainda mais algum que falasse em "direitos", e Café é advogado de profissão. Mas nunca confiamos, porque já deu pra perceber de cara que ele só bancava de oposição porque não tinha lugar pra ele entre os cupinchas dos coronéis.

— Tanto que ele tentou assumir o governo depois — meteu-se o padeiro e anfitrião, pela primeira vez se animando para opinar. — Em 1930, quando as tropas entraram, ele se acoitou fora da cidade, esperou elas chegarem e entrou junto. Os puxa-sacos o aclamaram governador, sendo que não tinha dado um prego numa barra de sabão, tudo foi o povo que fez, expulsou o desavergonhado do Juvenal Lamartine e esvaziou o palácio. Enfim, os militares recusaram lhe dar o governo, apesar do coro de imbecis apoiando, e ele foi lá no comando do exército exigir o cargo. Deve ser isso que a moça ouviu contar, porque foi um alvoroço grande.

— E pra conciliar, o nomearam chefe de polícia — completou Paiva.

— ...com a condição de entregar nossas cabeças — completou o camarada ferroviário, — o que ele vem tentando fazer desde então, mesmo a gente o tendo ajudado e ocultado quando queriam lhe comer o couro.

— Já mandou me prender três vezes, o filho de uma égua — Praxedes resmungou, elucidando a razão do ressentimento em que eu tinha reparado. — Na segunda fez me levarem para o xadrez só pra "pedir uma trégua", vê se pode. Até meu patrão ficou de cara e perdeu o respeito por ele ao me ver voltando, livre, leve e solto, depois do auê que aprontaram vindo me buscar na fábrica.

— É claro que ele queria uma trégua — opinou o baixinho Lauro Lago. — Não dá pra lutar em dois fronts ao mesmo tempo. Agora ele está todo enredado nas encrencas do interventor com os velhos donos do estado.

— E a gente na mão deles é fermento pra intriga. Uns vivem indo até Vargas e acusando o outro lado de "ajudar os comunistas". Quem dera tivéssemos essa ajuda toda — riu o Camarada Quatro.

— Estamos é entre a cruz e a caldeirinha — lamentou Praxedes. — Dois bandos de urubus se digladiando pra ver quem come a carne do trabalhador.

Um silêncio pesado caiu entre nós, carregado de melancolia, que o cantar dos grilos lá fora só fazia acentuar. Ao perceber que o silêncio se prolongava demais e que perigávamos ser tragados pelo desânimo ao contemplarmos a trágica situação do país e as dificuldades que nos aguardavam, Astrakhanov decidiu nos chamar de volta aos planejamentos.

— O que pretendem fazer para conquistar os sindicatos em que ainda não há uma maioria comunista?

Choveram ideias, mas nada exatamente novo. O proselitismo boca a boca continuava sendo o método mais eficiente disponível. Os camaradas se queixaram muito de não terem um órgão da imprensa do Partido no estado, ficando dependentes dos poucos exemplares do "Classe Operária" que os marinheiros do Lloyd Brasileiro contrabandeavam para lá. Claro que era útil, mas gostariam de folhetos que abordassem as questões locais; despertariam mais fácil o interesse da população ao falar das coisas com que ela se deparava diariamente. Por mais que fosse arriscado ser pego na posse de propaganda comunista, especialmente agora sob a Lei Monstro, a palavra escrita se difundia mais rápido e ia mais longe.

— Eu tinha um reco-reco, tempo atrás — contou Praxedes, — e a gente imprimia uma coisinha ou outra. Mas numa das minhas prisões eles levaram e deram fim.

— Será que conseguimos outro equipamento do tipo? — perguntei, contando-lhes que ficara encarregada de escrever para o jornal de Pernambuco. Prometi conversar com Silo e Caetano sobre tratarmos dos problemas dos dois estados no nosso periódico. Mas como o vai e volta dos impressos nos arranjaria novo problema, seria preferível imprimirmos simultaneaneamente nos dois estados. Para Pernambuco, eu mandaria apenas a matriz, como combinado de início.

Praxedes e Lago ficaram encarregados de tentar conseguir uma prensa. Como todos estavam empolgados com a ideia do jornal, aproveitei para estabelecer alguns postulados sobre o conteúdo do que escreveríamos. Isso porque Valleé contara em sua carta sobre a bronca que Miranda tinha levado da Maison por causa dos artigos em que mencionara "sovietes". Era melhor não incorrermos no mesmo erro. Os camaradas ficaram um pouco surpresos; segundo eles, a última instrução que tinham recebido de Miranda e companhia era que o levante próximo devia, justamente, objetivar a formação de sovietes.

Essa era a única revolução possível, afinal. A nossa revolução proletária.

— Eu sei, camaradas, mas existe tempo para tudo, e precisamos ser sensíveis às flutuações da opinião pública e às oportunidades que aparecem. A Revolução se dá em dois momentos para países semicoloniais como o nosso. Primeiro precisamos sacudir de nossas costas o jugo feudal e imperialista, e nessa fase, se necessário, a gente faz alianças. Por isso toda essa ênfase na adesão a uma frente popular ampla, como a ANL.

Murmúrios de concordância soaram por todo o pequeno espaço que ocupávamos, vibrando o ar que já estava denso pela falta de renovação.

Pela primeira vez eu usava o leninismo absorvido na ELI para fazer meus colegas engolirem explicações que nem eu tinha certeza se concordava; mas que eram as que havia. Questionamentos causariam apenas dúvidas, divisões, e enfraquecimento, e não era o momento de enfraquecer.

Não com tantos inimigos à nossa volta.

Seguindo na linha leninista da utilização de todos os meios a nosso alcance, legais ou ilegais, eu e Astrakhanov insistimos na questão dos sindicatos. Se fossem bem fortalecidos, já nos serviriam de germe da sociedade do futuro.

Perguntamos se todas as categorias importantes da cidade já estavam sindicalizadas e como os sindicatos existentes se interligavam e resolviam questões comuns a todos os trabalhadores. O Camarada Quatro mencionou uma reunião pró unidade sindical que aconteceria no mês seguinte e abordaria esses pontos, e convidou Astrakhanov para comparecer com ele.

— Assim o Camarada Stuart pode fazer uma avaliação direta da situação — ele disse, e nos pareceu uma boa solução.

Por fim, Praxedes ia dando por encerrada a reunião, quando o Camarada Lauro o cutucou, lançando-lhe um olhar enfático. Praxedes fez uma careta incomodada, eles tiveram um pequeno duelo de olhares, mas o sapateiro perdeu. Coçando a garganta e pigarreando, murmurou:

— Camarada Anita, veja bem... quando me mandaram voltar com aquele pingo de armas... bem, o Miranda e o Martins e o Bangu me prometeram enviar algum dinheiro, sabe, para comprarmos algumas armas por aqui mesmo, de cangaceiros, da polícia, exército, ou de quem quisesse contrabandear... ou nem que sejam peças, sabe, o material pra fazer bomba, enfim... não dá pra fazer Revolução com enxadas, não é? Na verdade, dar dá, mas é bem mais complicado...

A voz dele foi morrendo, visivelmente sem desejo de falar de dinheiro mal tendo nos conhecido, mas fazer o quê, eram os ossos do ofício. Foi a vez de eu me mexer incomodada, tendo os olhos de todos sobre mim. Argh, eu odiava até ser a encarregada do dinheiro nas coletas para as festinhas de fim de ano dos alunos, no tempo que dava aula. Mas entendia a impaciência deles. O drama é que não tínhamos dinheiro nem para nós, no momento.

Respirei fundo.

— Camaradas, preciso explicar uma coisa. Eu e John não estamos diretamente subordinados ao Camarada Miranda. Eu, é lógico, sou filiada ao PCB, e John é filiado ao Partido Comunista do seu país — expliquei, rapidamente, — mas respondemos diretamente ao Camarada Prestes.

Será que era errado aquele prazer que me inundou ao sentir os olhares impressionados sobre mim? Subimos de imediato no conceito deles. Se soubesse que esse seria o efeito, teria mencionado esse particular logo no começo da noite, e quem sabe até evitaria alguns questionamentos.

— Algum dinheiro será mandado sim, e por nós — eu expliquei, — mas ainda não chegou. Nos disseram que encaminhariam em breve, via Pernambuco, mas não deram data. Espero que não demore, inclusive, porque dependemos disso para pagar a alimentação, pelo menos até que o John receba o primeiro ordenado na Great Western. Assim que chegar, garanto que prestarei contas e encaminharei toda parte destinada ao esforço revolucionário para o tesoureiro da Diretoria Estadual.

Essa explicação pareceu satisfazê-los, e a reunião findou. Por óbvio, não pudemos sair todos ao mesmo tempo. O Camarada Fagundes ficou controlando as saídas individuais, com intervalos de uns cinco minutos. Ele usou a vela para ir conduzindo o pessoal lá para baixo, e ficava espreitando por uma fendinha da porta até ver um companheiro se distanciar, antes de subir para buscar outro. Eu e Astrakhanov ficamos em uma das últimas levas, já que ele queria combinar com Quatro a visita à conferência da unidade sindical. Combinarem no trabalho seria muito mais arriscado. Logo Quatro também foi levado, porém, e restamos apenas nós e o Camarada Santa, que parecia descontente. Sem resistir à curiosidade, perguntei-lhe o que o incomodava.

— É que eu fiquei encarregado de passar as novidades pros grupos dos postes — ele resmungou, tirando o chapéu por um momento e coçando a cabeça, antes de recolocá-lo.

— Grupos dos postes? — estranhei.

— É, vocês não os viram quando vieram para cá? — acenei negativamente, sem fazer ideia do que ele estava falando. — Bom, talvez não tivessem se reunido ainda, sabiam que a reunião ia acabar tarde. Aqui não se reúnem em grupos muito grandes, pra não facilitar o trabalho da polícia, sabe? De apanhar todos numa operação só. Hoje, de certa forma, foi exceção. Enfim, precisamos repassar ao resto do Partido o que fica decidido, então alguns emissários se ajuntam em grupos de no máximo três perto dos postes de luz e esperam alguém que esteve na reunião ir de poste em poste cochichando as resoluções tomadas. Depois o pessoal dos postes repassa para as células das suas fábricas e tal.

— Nossa — exclamei. — Estão de parabéns pela organização.

— Sim, também achei um bom esquema quando cheguei aqui.

— Verdade, se a cidade é mesmo tão policiada como ouvi dizer, essa é uma boa forma de driblar a vigilância — Astrakhanov opinou. — É claro que é preciso variar os postes em que ficam esperando, e, eventualmente, pensar uma forma alternativa de comunicação, porque cedo ou tarde a polícia vai reparar no padrão de comportamento.

Santa concordou com a cabeça.

— Mas por enquanto está dando certo, e time que tá ganhando não se mexe — ele fez uma pausa pensativa, e depois estalou a língua, desgostoso. — Odeio quando me deixam de mensageiro.

— Por quê? — indaguei. — O camarada parece ter experiência na parte de comunicação, se estava responsável pela ligação com o pessoal do Rio, e também com os camaradas dos navios...

— Isso é outra coisa — Santa descartou. — O problema é que um preto se aproximando de dois homens no meio da noite é chamariz de polícia.

Astrakhanov ensaiou rir do comentário, achando que fosse brincadeira, mas ao ver que eu e o rapaz permanecíamos sérios, seu sorriso se desfez num ar constrangido, e ele baixou a cabeça, com um murmúrio incompreensível.

— Se passa um guarda, já pensa logo que é assalto — Santa contou. — Não foi uma vez só que nos abordaram e os colegas tiveram trabalho pra convencer o guarda de que eu era amigo deles e que não estávamos tramando nenhum crime.

— Puxa... eu não sei nem... — murmurei.

Como reagir a uma revelação dessas? Palavras seriam vãs, um abraço seria pena, mas não era pena que eu sentia, era uma indignação por ele. E essa indignação também era vã, porque eu não estava na pele de Santa — literalmente — e não podia sentir em plena força o que ele passava todo dia só por ter nascido da cor que, quase cinquenta anos depois da abolição, ainda consideravam marca de escravo. E por falar na abolição, foi a ela que ele aludiu em seguida, pegando do bolso o jornal de mais cedo e contemplando a reportagem do comício da ANL, com um sorriso que era quase um esgar triste e irônico.

— Reparou no que eles estavam comemorando, Camarada? Por que marcaram o comício em 13 de maio? — perguntou, sacudindo de leve o jornal enrolado ao lado do rosto.

Acenei que sim.

— Não somos escravos, — ele murmurou, — mas também não somos livres.

— Nenhum de nós é. Ninguém é livre enquanto tem que vender sua força de trabalho para sobreviver.

Santa fez uma careta.

— Não somos mais coisa — disse, então, — mas também não somos gente. Não aos olhos de muitos por aí. Será que seremos gente na nova sociedade, Camarada Anita? — ele murmurou, suavemente, com um sorriso triste, quase infantil.

— Se não forem, Camarada Santa, eu serei a primeira para me levantar para destruí-la — garanti, séria. — Mesmo depois de todo o esforço que estamos fazendo para construí-la.

O rapaz abriu um sorriso, seus dentes muito brancos se destacando graças à escuridão que reinava no sótão. Quando ele fez menção de me responder, Fagundes apareceu na porta com a vela.

— Santa, sua vez. Vamos rápido, quero ver se durmo um pouco, logo já é hora de levantar pra fazer pão.

O emissário se despediu rapidamente de nós e desapareceu no limiar seguindo o padeiro. Vi suas costas desaparecerem, pensando em todas as classes oprimidas junto com os trabalhadores, e como eu esperava que nosso esforço revolucionário proporcionasse as condições para passar a humanidade a limpo com uma caneta de igualdade, eliminando todas as opressões.

Se isso não acontecesse, o que eu tinha prometido a Santa era sério: eu não hesitaria em amassar o rascunho e começar um esboço novo.

Experiência não me faltaria.

E nem vontade.

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