Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga

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By erikasbat


Era obviamente inexequível a intenção de Astrakhanov de concluirmos nossa missão conjunta com Silo até o final de semana.

A complexa tarefa de encontrar alguém que soubesse onde estava nosso alvo e topasse nos levar até ele ficou a cargo de Caetano Machado, que era mais entrosado com os sertanejos da região. E até ele encontrou dificuldades. Perguntar às pessoas se elas sabiam por onde andava o bando do Lampião acarretava duas reações possíveis: uma cusparada, uma persignação e um raivoso "que o tinhoso o carregue!" ou uma cusparada, uma persignação e um "tá me achando com cara de cagueta?!"

As pessoas deviam estar com os nervos muito aflorados para confundirem Caetano com um policial.

A busca seguia sem resultados e nos encalhava em Pernambuco. Para evitar problemas com a Great Western Brazil, Silo arranjou um médico simpatizante para assinar um atestado dizendo que John Stuart estava com caxumba, e recomendando-lhe quinze dias de descanso.

Minha consciência doeu um pouco de apresentarmos um atestado falso, mas aí eu lembrei que todos os nossos documentos eram falsos, de qualquer forma, então tanto fazia. Aliás, o próprio trabalho de John era de fachada, John era de fachada, e, portanto, o atestado estava muito adequado a toda essa farsa. Astrakhanov só protestou por ser justo caxumba a doença. O médico explicou que era proposital: assim os homens da empresa quereriam manter distância dele, para evitar contaminação.

Dito e feito. Encaminhamos o atestado e no mesmo dia recebemos um telegrama desejando melhoras e garantindo que ele não precisava (e nem devia) se apresentar para o trabalho até que estivesse completamente curado (em maiúsculas).

Com essa questão resolvida, pudemos relaxar, e aproveitei a folga para combinar com Silo as diretrizes do jornal que rodaríamos. Numa noite, ele nos apresentou a um camarada que cuidaria da nossa "gráfica" ilegal — isto é, que operaria o mimeógrafo e esconderia as cópias prontas até que fossem distribuídas. No dia seguinte, saímos para comprar uma máquina de escrever.

Confesso que esse foi um momento bem prazeroso pra mim. Eu tinha feito uma breve cadeira de datilografia na escola; era uma disciplina optativa, para que aquelas de nós que não conseguissem colocação como professoras pudessem tentar a carreira de secretária. Eu não era uma datilógrafa muito boa, escrevia catando milho, e após tanto tempo sem chegar perto de um daqueles mecanismos, estava enferrujada. Apesar disso, ouvir os estalos rítmicos das teclas e o "plin!" do rolo das folhas chegando ao fim me dava uma inexplicável sensação de tranquilidade.

Assim, no dia seguinte à aquisição da máquina, eu acordei cedo, mas permaneci no quarto, a despeito do dia lindo que fazia lá fora, divertindo-me com o equipamento novo. Usei algumas folhas do pacote de papel ofício que tínhamos comprado para datilografar uma missiva para minha mãe, alguns poemas que sabia de cor e outros fragmentos de texto. Redigi até uma carta para Pavel, aproveitando que Astrakhanov não estava prestando atenção, pois continuava absorvido nas suas leituras sobre trens, trilhos e bitolas. Eu não pretendia enviar, até porque estava em português e Pasha nada entenderia, mas era uma tentativa de amenizar a culpa pela promessa de escrever, até agora descumprida, e que eu dificilmente poderia cumprir.

Dei fim em todos os meus rascunhos e voltei ao meu posto após o café da manhã, agora a sério, para praticar a colocação da matriz no rolo da máquina de escrever. O combinado é que eu já mandaria o jornalzinho datilografado na matriz, para agilizar sua impressão. Não era fácil encaixar as folhas de modo que não ficassem tortas ou que a parte roxa borrasse e impedisse a leitura. Eu ainda batia cabeça planejando a diagramação dos nossos textos quando uma buzina soou lá fora, seguida de um chamado relativamente discreto na voz grave de Silo:

— Anita! John!

Eu corri para a janela do nosso quarto, que dava para a rua em frente da pensão, e dei de cara com um caminhão pequeno e velho estacionado logo abaixo, em cuja carroceria Silo estava de pé, perscrutando a parede do estabelecimento. Chamei, e ele me viu. Caetano acenou também, aparecendo um segundo na janela do carona.

— Cata o essencial e desce! — Silo pediu. — Não, melhor. Tragam toda a bagagem de vocês. Eu vou sair aqui e já peço para a estalajadeira fechar a conta.

— Acharam...? — eu questionei, num sussurro seminaudível. Silo anuiu brevemente, antes de descer da carroceria e entrar na pensão.

Astrakhanov viera à janela atrás de mim, e já começou a organizar as poucas coisas que tinha tirado da mala. Eu também não fizera muita bagunça, então o trabalho maior foi espremer as minhas coisas num canto para poder acomodar a máquina e o material de escritório na mala. Em menos de quinze minutos, estávamos na carroceria do caminhão, já apresentados ao motorista, com despesas pagas e malas acomodadas.

— Vocês podem deixar as coisas na casa do Caetano — Silo sugeriu, apontando a bagagem — ou podem levar... Dá para negociar que o motorista leve vocês direto pra Natal, na volta.

— Na volta de onde? — perguntei, alteando um pouco a voz para sobrepor o ronco do caminhão, que dava partida.

— Do meio do mato — ele respondeu. Aproximando a cabeça de nós em tom conspiratório, murmurou: — Se estivermos com sorte e a informação que nos passaram não for fria, ele anda lá pelas voltas de Juazeiro do Norte.

Olhou para nossa bagagem mais uma vez, indicando-a com o queixo.

— Tem algo de comprometedor aí?

— Não. Dei fim no hotel em tudo o que não poderia ser encontrado — respondi. Meditando um instante, acrescentei — Encontrarem a máquina de escrever e as matrizes vazias poderia despertar perguntas... Mas sou professora; qualquer coisa alego que estou preparando material educativo para voltar à ativa.

— Você tem um diploma em nome de Anita também, caso queiram comprovação?

— Hm... não. Mas conheço a profissão, e se me interrogarem saberei dar as respostas adequadas.

Meu colega brasileiro acenou em aprovação.

— Talvez possam deixá-las na hospedagem em Juazeiro. Teremos que fazer uma parada lá, porque, pela hora que estamos saindo, vamos chegar muito tarde para se embrenhar na caatinga.

— Na verdade, a cobertura da noite seria conveniente para ocultar esse encontro — ouviu-se a voz de Astrakhanov pela primeira vez na conversa.

— Seria, se eu tivesse certeza de que o camarada que nos informou sobre a localização conseguiu combinar um encontro com o bando. Chegar de surpresa é suicídio; seríamos recebidos na bala. De noite todos os gatos são pardos, e os uniformes também; nos tomariam pela Polícia, e, por via das dúvidas, nos transformariam em peneiras.

A verdade dessas palavras não podia ser contestada, e o silêncio caiu sobre nós por um momento. O caminhão rodou pelas ruas de Recife em direção à periferia, atraindo olhares pouco interessados por onde passava: transporte em caminhões era comum por aquelas bandas, embora geralmente estivessem mais cheios.

Logo chegamos à casa de Caetano, em um dos subúrbios mais próximos do Centro. Ele saltou da boleia e se aproximou da carroceria para falar conosco.

– E então, vão deixar as coisas aqui ou vão tocar direto?

– Acho que vamos levar – ponderei, mirando as nossas malas.

– A distância é a mesma daqui para lá e de lá para Natal. Não faz mesmo sentido retornar, só acrescentaria quatro horas de estrada à toa – Caetano opinou. Concordei com um aceno. – Bom, nesse caso, boa sorte lá no Rio Grande – ele desejou, trepando nas tábuas da carroceria e estendendo sua mão calosa primeiro para mim, depois para Astrakhanov. – Foi um prazer conhecê-los. Espero que a gente se reveja logo e com o país em melhores condições.

– Você não vai conosco? – perguntou Astrakhanov. Às vezes ele demorava um pouco para entender o que Caetano falava, por causa do fortíssimo sotaque do pernambucano.

– Não; alguém tem que ficar vivo para avisar o Rio, caso a missão dê errado – ele brincou, e nós tentamos rir, apesar da graça um pouco estragada pelo fundo de verdade.

Caetano saltou para o chão, entrou em casa, e o caminhão partiu.

– Quem exatamente é esse homem que nós vamos procurar – perguntou Astrakhanov, alguns minutos depois, arrancando a mim e a Silo do estado meditabundo em que tínhamos caído – e por que vocês parecem tão perturbados com a perspectiva de encontrá-lo?

Troquei um olhar com Silo, e ele deu um sorriso torto, pescando um cigarro do bolso. Voltando-me para Astrakhanov, que ainda nos encarava em expectativa, tentei explicar:

– O problema nem é ele em si, é o bando.

– Ele sozinho já bota medo, sim – discordou Silo, com a dicção um pouco atrapalhada pelo cigarro preso entre os dentes. Ele tragou e soltou uma baforada, antes de se voltar para Astrakhanov. – É que não é fácil definir o homem. Tem quem o tenha por facínora – complementou, – o que ele provavelmente é. Lampião, pelo que eu soube, é um cabra até que culto, mas comanda um bando de calhordas sem qualquer freio, que saem por aí fazendo sua vontade na base da bala. Roubam, torturam, executam, violam as mulheres...

— Ou pelo menos é o que os jornais dizem deles – aparteei, levantando-me de onde estava, e cruzei a carroceria, indo me encostar na cabine do caminhão para fugir do sol escaldante. — Mas até aí, os jornais dizem isso de nós também.

— Sim, mas não são apenas os jornais que falam essas coisas sobre o bando do Lampião – Silo rebateu. – Converse com as pessoas por aqui, e eles te contarão muitos casos.

— E muitas lendas também, aposto.

Silo riu.

— Se não quiser lendas e quinze menções ao Padre Cícero, nem sente para conversar com um sertanejo.

— Mas se eles são só um grupo de indisciplinados, por que nos mandaram fazer aliança com eles? – Astrakhanov questionou, intrigado e levemente agastado. – Não seria antes o caso de deixar para cuidar deles e reformá-los depois que estivermos com o Estado sob controle?

— Reformá-los? – Silo soltou uma gargalhada, que soou um pouco tétrica em sua voz rouca. – Não sei se seria possível. Mas desde que recebi a comunicação da missão venho me perguntando a mesma coisa. Onde é que os líderes estavam com a cabeça para nos mandar lá? Onde é que Prestes estava com a cabeça, especialmente depois de... — e ele se interrompeu, voltando a atenção para seu cigarro, já quase todo consumido.

— Acho — eu especulei, cautelosa — que foi meio na política "o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo". Eles lutam contra o governo, sabem? E vencem. Têm sua organização paralela. Cedo ou tarde teríamos que lidar com eles.

— É exatamente o que me preocupa — comentou Silo, apagando o toco do cigarro e atirando-o por sobre o ombro. — Quer dizer, o homem já tem seu pequeno império. Não chega a ser rico, mas tem tudo o que precisa e vive como bem entende, com poder de vida e morte sobre muita gente. Ele tem autonomia pra decidir se aceita uma aliança ou não, e pelo que tenho visto, sempre decide com base no que lhe trará alguma vantagem. Soube que já até se associou com oligarcas, que andaram aliciando os cangaceiros pra enfrentar os interventores do Vargas. Como vê, ele não faz as coisas por princípio, mas por ambição e influência. E como é que vamos barganhar uma aliança? O que temos para oferecer? Mesmo promessas para o futuro me parecem temerárias. Especialmente elas, na verdade.

Ele deu um profundo suspiro, e ficou quieto por um momento.

— Mas tem quem o tenha por herói, também – prosseguiu, então — Como o Robin Hood da lenda, conhece? — Astrakhanov assentiu. — Porque contam casos em que ele e os companheiros saquearam fazendas de ricos e deram do produto do saque para os camponeses pobres. Bom, essas histórias devem ter chegado aos ouvidos do pessoal da Maison, e eles ficaram pensando que o cangaço tem algo coisa a ver com a luta de classes. A verdade é que muitos dos nossos compartilham essa opinião e a externam tanto nos artigos, quanto nos discursos e conversas. O Jaime era um que vivia cantando loas aos cangaceiros, lá na escola.

— Por onde ele anda, você sabe? — questionei, recordando com saudade do jovem orelhudo e atrapalhado com quem eu costumava compartilhar as viagens de ônibus. — Veio também, está na conspiração?

— Pelo que me consta, está em São Paulo — Silo falou, abraçando um dos joelhos. — Ele voltou na mesma época que a gente. Chamaram ele pra dar aula numa escola do Partido. Não sei se está em alguma das muitas pontas da nossa rede, mas certamente vai acabar participando, se conseguirmos mesmo levantar as massas.

— O Jaime professor, quem diria! — ergui as sobrancelhas e cruzei os braços, acenando em aprovação.

— Pois é!

— Ele não era tão ruim — Astrakhanov opinou, os olhos semicerrados, sentado preguiçosamente, uma das pernas dobrada e o braço apoiado nela. — Tinha dificuldades, mas também tinha determinação. E era bem fiel à linha ideológica do Partido. Eles valorizam isso na hora de designar instrutores.

— Bom, isso sim — Silo concordou. — Chegava a me irritar às vezes.

— E o Zé Maria, que fim levou? — perguntei, abafando a última observação de Silo, para evitar algum desgaste com Astrakhanov e seu respeito pela hierarquia e a ortodoxia partidária.

— Olha, esse eu acho que ficou por lá, viu. Deixaram ele para participar do Congresso que vai ter esse ano. Não sei no que vão ocupá-lo nesse meio tempo; talvez o tenham inscrito para continuar na ELI ou designaram pra algum cargo temporário no Partido e um trabalho permanente na montadora em que a gente trabalhava. Ele ia voltar, mas já que determinaram, respeitou. Mas não deve ter achado ruim, não. A búlgara certamente não achou — e Silo soltou um riso malicioso.

Estava eu ocupada a invejar José Maria, em cujo colo tinha caído o exato destino que eu ambicionara para mim, quando algo estalou na minha cabeça.

— Búlgara? Que búlgara?

— Não lembro o nome. Aquela que era sua colega de quarto.

— Ludmila?

— Isso, essa mesmo.

Levei um minuto inteiro para absorver a informação.

— Você está dizendo que Ludmila tinha um caso com o José Maria? — repeti, ainda incrédula.

Lancei um olhar de esguelha para Astrakhanov. Ele não olhava para o meu lado, e não fez qualquer comentário; eu poderia pensar que ele nem estava prestando atenção na conversa, se não fosse pelo sutil ar de triunfo e pelos lábios comprimidos, obviamente segurando uma risada.

— Sim, você não sabia? Certo que ela pediu a ele para manter em segredo, pra não arranjar encrenca com o búlgaro que achava que tinha algum direito sobre ela, mas imaginei que você devia ter visto as escapadas no meio da noite. Foi assim que nós pegamos ele, no fim das contas. Pensamos que estava metido com informantes anticomunistas, o colocamos contra a parede, e ele cuspiu a história toda.

— Eu via as escapadas no meio da noite sim, mas não tinha intimidade com ela para perguntar nada — foi tudo o que respondi, pondo fim ao assunto.

Na verdade, eu via, mas imaginava que ela fosse se encontrar com outra pessoa.

Olhei para Astrakhanov novamente. Ele tirara a carteira do bolso, e estava brincando de abri-la e fechá-la, ainda com um sorriso discreto pairando nos lábios. Bom, eu é que não ia pedir desculpas. Ele podia não ter se envolvido fisicamente com Ludmila, mas é inegável que vivia cortejando várias alunas. E, na verdade, o fato de Ludmila namorar José Maria não a impedia de ter tido alguma coisa com Astrakhanov antes ou num momento de fraqueza do relacionamento com Zé, ou até durante, como é que eu ia saber? Não conhecia o caráter dela. Ela nunca me dera abertura para investigar.

Mas não dá para negar que a reputação do tenente foi um pouquinho restaurada aos meus olhos, após essa descoberta.

Nós ficamos em silêncio, depois conversamos novamente, jogamos baralho, papeamos aos berros com o motorista, e nada de alcançarmos o destino. O caminhão continuava a sacolejar pelas estradinhas de terra, levantando poeira e testando nos pedregulhos a resistência da borracha dos pneus.

Passamos por algumas cidadezinhas bastante similares, povoados constituídos de um par de cabanas e uma capela, e até casas isoladas de sertanejos. De vez em quando se via um rebanho magro em meio à vegetação retorcida e baixa da beira do caminho. A paisagem era bastante uniforme, e não nos daríamos conta de que tínhamos mudado de estado, se o motorista não avisasse, dizendo que ia fazer um desvio por fora da estrada para evitar o posto de fronteira. "Se segurem!", foi a recomendação.

O sol foi declinando devagar, e só decidiu se esconder mesmo lá pelas oito da noite; mas nós, que saíramos de Recife por volta das duas da tarde, ainda rodamos mais três horas na plena escuridão. O motorista perguntou se eu queria passar para a boleia, quando a noite caiu, a fim de me proteger do sereno; mas, como só tínhamos sido apresentados naquela tarde, por via das dúvidas preferi ficar na carroceria com os homens que já conhecia havia um ano e meio.

Enfim, chegamos a Juazeiro do Norte. Fomos direto para a casa do camarada que devia nos levar até o bando de Lampião no dia seguinte, um sertanejo negro, miúdo, agitado e falador, que atendia pelo apelido de Perereca. Ele garantiu que confirmara o encontro com um dos jagunços do chefe cangaceiro. Assim, exaustos, e diante da perspectiva de acordar cedo no dia seguinte – o local do encontro ficava bem embrenhado na caatinga – nos limitamos a comer rapidamente a humilde refeição que nos foi oferecida, e nos estirarmos no chão para dormir, onde encontramos espaço.

Meus olhos carregados já se haviam cerrado e eu começava a escorregar para o reino do sono sem sonhos quando um peso em minha cintura me fez escancará-los, sentando-me de pronto.

O braço de Astrakhanov caiu da minha cintura para o meu colo.

– O que pensa que está fazendo? – rosnei, o mais baixo possível, para evitar acordar os outros, que já roncavam.

– Trabalhando – Astrakhanov bocejou, sem sequer se dar o trabalho de abrir os olhos. – Estamos na casa de estranhos, é preciso tomar precauções.

– Você sabe que guarda-costas é um termo metafórico, não é? – sussurrei. – Que você não precisa mesmo ficar atrás das minhas costas o tempo todo?

Ele bocejou novamente. Dessa vez, porém, lançou-me um olhar cansado, em que estava estampada a frase "deixe de ser difícil".

– Durma, Anita – disse, simplesmente, pondo a mão no meu estômago e me empurrando delicadamente para voltar a deitar. – Better safe than sorry.

Ele não tencionava me dar escolha, e eu nem tinha forças físicas para teimar, então escorreguei de uma vez para o sono, com braço de Astrakhanov na cintura e tudo.

O sol ainda não dera o ar de sua graça sobre o sertão, quando nós ganhamos a rua no dia seguinte, as barrigas recheadas de tapioca e café para aguentar a jornada do dia. O Camarada Perereca foi até um galpãozinho pegado à sua casa e voltou arrastando um burrico desnutrido.

– Dona Anita, suba pra cá! – instruiu. Analisei o animal, meio em dúvida se ele aguentaria meu peso; a mula magriça tinha jeito de que desabaria se tão-somente uma criança montasse nela. – Venha, que o caminho é longo e a caatinga não é pra pé de moça. Se tivesse um rebanho, eu arranjava montaria pros compadres – ele adicionou, para Silo e Astrakhanov, começando a puxar o jumento que já me carregava, – mas como só tenho esse aqui... a preferência é das senhoras, né.

Nós logo deixamos a zona rural de Juazeiro, e quando amanheceu, já tínhamos ingressado na vegetação da beira da estrada. Vegetação. Chegava a ser engraçado chamar assim aqueles arbustos crestados e recurvados como mãos de bruxa, cheias de dedos finos e esbranquiçados. Aqui e ali, alguns cactos acrescentavam pontos verdes à paisagem predominantemente bege e cinzenta. Pelo jeito, por sua relativa escassez, os cactos serviam de ponto de referência. Quando Perereca os avistava, ele geralmente parava e os analisava por um momento, às vezes mudando nosso curso em seguida.

Andamos por horas e horas por entre as veredas de arbustos que não protegiam do sol, cada vez mais escaldante. As sombras eram tão raras, que quase agradecíamos quando pássaros grandes e meio macabros apareciam e volteavam acima de nós brevemente. Pelo menos nos davam um refresquinho momentâneo. Eu devia ter trazido um chapéu.

A poeira do chão seco se pegava às nossas roupas e entrava no nariz, e o Camarada Perereca, no meio de sua tagarelice que nem a secura na garganta interrompia, sugeriu que cobríssemos os narizes com lenços nos trechos mais arenosos. A maior parte do caminho, porém, era pedregosa, por isso eu fiquei bem feliz de estar indo montada. Se estivesse usando botas, seria outra história, mas aqueles malditos sapatos urbanos femininos sempre tinham salto pra dificultar.

Tempos depois, já devia estar perto do meio-dia, nós adentramos numa região cheia de pedras altas com barrancos que formavam pequenos vales, ainda tomados por aquela vegetação. Passamos a atravessá-los. Bem no meio de um deles, Perereca parou, observou com atenção um rochedo baixo que se erguia à nossa direita, e, juntando as mãos, simulou um assobio de ave. Com alguns segundos de diferença, ouviu-se outro assobio em resposta.

– Parece que vieram nos buscar – Perereca informou, empolgado.

Logo, vimos surgir um par de cangaceiros de trás do rochedo.

Eles se pareciam com os retratos que estampavam alguns jornais que eu tinha visto antes de ir para a União Soviética, só que estavam mais enfeitados. Trajavam uma roupa de corte simples e mangas compridas, feita com mescla cinza-azulada cheia de bordados coloridos, e acessórios de couro – perneira, cinto, chapéu. Dos chapéus e cintos pendiam o que pareciam moedas, cujo metal combinava com as duas cartucheiras cruzando o peito, as peixeiras enfiadas em bainhas e os fuzis que eles traziam nos braços.

Apontados diretamente para nós.

Sua atitude não era hostil, porém. Era como se nos colocassem na mira por uma questão de rotina. Astrakhanov se mexeu, incomodado, quando um dos cangaceiros enfiou a ponta do fuzil quase debaixo do nariz dele.

– São esses que querem prosear com o capitão, matuto? – um dos cangaceiros dirigiu a pergunta a Perereca, antes de qualquer saudação. Perereca acenou repetidamente com a cabeça.

– Sim senhor, senhor. É coisa rápida, eles juram. Coisa importante. Do exterior.

Troquei um olhar exasperado com Silo. Será que Caetano tinha dado com a língua nos dentes para seus contatos sobre nossa ligação com o Komintern? Ou Perereca inventara a parte do "exterior" sozinho, para impressionar? Eu o conhecia havia menos de vinte e quatro horas, mas a possibilidade parecia plausível.

– Hm. O capitão vai receber. Pé na estrada – e sem maiores provas de simpatia, o cangaceiro acenou para que o seguíssemos e deu-nos as costas, voltando a contornar o rochedo. O outro me olhou de cima a baixo, sem ocultar a curiosidade, e foi atrás do companheiro, conosco logo em seu encalço.

O trecho seguinte foi curto e menos complicado, mas ainda volteado o bastante para eu me perder se tentasse voltar sozinha. Bom, isso não era nenhuma façanha para quem tinha se perdido dentro de uma igreja em Moscou.

Logo adentramos uma espécie de clareira, se é que dá para falar em clareira numa vegetação que não é propriamente uma floresta. Tendas baixas se erguiam espaçadamente, formando um círculo, em cujo centro havia uma fogueira, acesa àquela hora do dia. Dois homens preparavam o almoço nela.

Um dos cangaceiros que tinham nos guiado voltou a apontar a arma para nós, enquanto o colega se enfiava em uma das tendas. A pedido de Perereca, eu desmontei, e ele entregou o burrico para outro cangaceiro que se aproximara, que carregou o animal para fora do acampamento. Disse que ia deixá-lo com as montarias do bando enquanto nós conversávamos.

Eu ainda me despedia do burrico quando uma agitação de Silo à minha esquerda me fez seguir a direção do olhar dele. Lampião acabara de sair de sua tenda, e caminhava em nossa direção, ladeado pelo cangaceiro que fora dar o recado. Era um homem magriço, até que altinho, e parecia prestes a vergar sob o peso das armas penduradas em seu corpo. A postura combativa contrastava com o ar um tanto intelectual conferido pelos óculos redondos que lhe enfeitavam o rosto pequeno e bronzeado, ladeado por cabelos negros na altura do queixo.

– Boas tardes, senhores comunistas, senhora – ele cumprimentou, com um toque no chapéu, parando a mais ou menos dois passos de nós. – Fiquei bem surpreso com a sua requisição de uma palestra – ele falava com um forte sotaque, mas parecia querer manter um léxico condizente com a "solenidade" do encontro. – Não imagino o que possam querer comigo. Mas antes de passarmos aos finalmentes, vamos tomar umas medidas de segurança.

Ele recuou um passo, fez sinal para um dos seus comandados, e sete deles nos cercaram, alguns surgidos sabe-se lá de onde, todos com os rifles apontados para nós. Quatro pares de mãos se ergueram instintivamente, Silo praguejou baixinho, e eu fiquei tentando acalmar meu coração, que tinha disparado.

– Façam favor de entregar as armas aos meus cabras – Lampião disse, tirando fumo e um papelote de uma bolsa a tiracolo, e enrolando um cigarro placidamente, enquanto um dos cangaceiros abordava Silo e depois Astrakhanov.

O rapaz gesticulou em direção ao cinto dos meus colegas. Silo suspirou e entregou a pistola que tinha escondida sob o paletó. Astrakhanov se fingiu de desentendido, de início, mas o som dos rifles sendo engatilhados fê-lo entregar a sua também. As armas foram colocadas num cesto de vime, e iam sendo levadas para Lampião, quando este negou com a cabeça.

– Todas. A da moça inclusive.

O homem com o cesto ergueu as sobrancelhas e caminhou até mim, completando o ar de espanto ao ver a pequena semiautomática em minhas mãos. Eu a tinha tirado da liga da meia quando recebemos a primeira instrução, mas fora ignorada; provavelmente meus trajes de moça da cidade não criavam a impressão de pessoa perigosa. E eu nem era muito perigosa mesmo. Carregava aquela arma por insistência de Astrakhanov; por mim, só pegaria em armas nos dias de treinamento ou dos efetivos combates. Além disso, ela me incomodava a perna, mas onde mais escondê-la, em um vestido de verão?

Agora com a tarefa completada, o cabra voltou para junto do chefe, que estava perto da fogueira, onde fora acender o cigarro, e depositou o cesto ao lado dele. Ficamos esperando os sete jagunços desfazerem o cerco a nós, e eles, pelo jeito, ficaram esperando também, mas a ordem para isso não veio. Virgulino fumava, sem sinal de pressa, e nossa tensão aumentava. O cigarro estava quase no fim quando ele finalmente voltou a falar.

— Chegue mais perto — Lampião lançou-nos um olhar de esguelha. Eu, Silo e Astrakhanov nos entreolhamos, sem saber a quem ele se dirigia, com aquele verbo no singular. — O gringo — especificou o cangaceiro.

Astrakhanov, entendendo que falavam dele, deu uns passos cautelosos para frente, ainda com as mãos para cima, já que os capangas continuavam sem receber ordem de baixar as armas. Quando ele se alinhou com Virgulino, este se abaixou e pressionou a ponta do cigarro contra a terra, apagando-o. Demorou-se um instante no chão, e de onde eu estava, não pude ver o que ele fazia, só reparei que Astrakhanov empalidecera.

Lampião se ergueu de novo, com um pequeno revólver pendendo do indicador pelo gatilho, e as sobrancelhas erguidas. Eu não consegui conter uma exclamação de choque... e pavor.

Droga, Astrakhanov!

— Veja, meu senhor — disse o rei do cangaço, numa voz perigosamente tranquila, erguendo o queixo para mirar dentro dos olhos azuis do russo — eu sou um homem que anda armado. Por isso eu sei quando e onde alguém está escondendo uma arma.

Ele deu as costas a Astrakhanov e andou alguns passos em direção ao centro do acampamento, o revólver ainda pendurado no dedo. Virou-se para nós novamente, firmando as pernas em um V invertido, e encarou-nos, um por um. O camarada que nos conduzira até ali visivelmente morria de vontade de se persignar, só não fazendo isso por medo de abaixar as mãos. Parecia prestes a se desfazer em lágrimas. Meu próprio rosto devia estar desfigurado para corresponder ao pavor que eu sentia, os braços ainda erguidos e as pernas feitas em geleia, que mal conseguiam me sustentar de pé. Silo fitava Astrakhanov de esguelha, com óbvias ganas de pular no pescoço dele e estrangulá-lo pela enrascada em que sua mania de desconfiança nos colocara. Sim, pois, ainda que tentássemos nos defender, a disparidade numérica dificilmente nos permitiria sequer derrubar alguns oponentes, em especial agora que estávamos desarmados de todo.

— Digam-me, meus prezados comunistas — Lampião falou novamente, com um sorriso sem alegria enfeitando seu rosto, enquanto ele girava a arma no indicador. Era evidente que se deleitava na tortura mental que nos provocava, e por isso não se apressava em completar seu pensamento. — Seria prudente da minha parte continuar uma conversa que já começa com vocês tentando me enganar? Ou eu deveria dar um fim a ela agora mesmo? — concluiu, friamente, alçando o braço e apontando o pequeno revólver bem entre os olhos do tenente soviético.

***

(Música na mídia do capítulo: "Gerônimo" (Projeto Ítaca). Compositor: João Brito).

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