Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 50 - Novas Nordestinas

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By erikasbat

Só faltava ele pegar uma régua para aperfeiçoar aquela risca.

Eu, apoiada no umbral, de braços cruzados, com a bolsa pendendo de um deles, observava com impaciência Astrakhanov terminar sua toilette. No espelho do vestíbulo, ele perscrutara o próprio terno em busca de algum grão de poeira ou fio de cabelo, e agora terminava de ajeitar o cabelo num penteado impecável. Isso porque tinha aposentado os óculos de John Stuart – decidira dizer que eram para descanso, pois usá-los o tempo inteiro lhe incomodava o dorso do nariz. Não fosse assim, ele ainda permaneceria um minuto ajeitando os óculos para deixá-los perfeitamente retos.

Eu e meus cabelos mal escovados não entendíamos esse perfeccionismo todo. E havia outras coisas que eu não entendia sobre Astrakhanov.

Não era a primeira vez que ele demonstrava interesse por mim. Mas convenhamos que carecia de lógica destilar veneno sobre Pavel, num despropositado acesso de ciúmes, ao mesmo tempo em que cantava loas de saudade de sua ex-noiva. Os comportamentos eram mutuamente excludentes.

Achei melhor enterrar o assunto, e Astrakhanov também não tocou mais nele. Assim que voltamos da praia, ele se encerrou em seu quarto e só tornei a vê-lo no dia seguinte, quando me deixou dormir um pouco além do usual e bateu na minha porta apenas às nove da manhã. Eu saí do quarto para encontrar a mesa do café repleta, e o tenente em nenhum lugar à vista. Minha impressão é que ele estava em parte envergonhado do seu comportamento, e tampouco entendia muito bem as próprias razões, ou o que se passava dentro dele.

Astrakhanov era bem sensível à presença feminina. Nossa proximidade forçada – do tipo que o obrigava a me carregar no colo durante uma viagem de táxi – devia estar bagunçando suas ideias.

Bem, eu não podia fazer nada; uma missão é uma missão, e como militar ele devia saber disso melhor que ninguém. Que se controlasse, então. E que se apressasse: já estávamos quase atrasados para o encontro com os camaradas, graças àquela arrumação digna de uma noiva.

– Vamos? – eu pedi, entediada.

Astrakhanov relanceou um olhar para o relógio, e se sobressaltou. A pontualidade ganhou do perfeccionismo, e ele correu para a porta, fechando-a atrás de nós e verificando duas vezes a fechadura, antes de acenar para que eu o seguisse escada abaixo.

Dirigimo-nos apressadamente para a casa de Gruber, onde seria a reunião. O apartamento dele era muito conveniente, pois era possível entrar direto pela garagem, sem ter que dar satisfações aos porteiros. Por isso, Berger costumava marcar as reuniões gerais lá. A daquela noite seria particularmente importante, a se julgar pelo bilhete que ele havia nos mandado.

Aparentemente haviam chegado instruções da Maison, e notícias dos colegas que estavam nos postos avançados no nordeste, que nos obrigariam a definir (ou redefinir) nossas estratégias – especialmente considerando que a combatida Lei de Segurança Nacional fora aprovada no começo do mês, tornando cada passo nosso ainda mais vigiado.

Tudo chegava, tudo mudava... e nada de Prestes.

Bom, precisaríamos ir nos virando sem ele, ou os acontecimentos caminhariam à nossa revelia.

Eu e Astrakhanov alcançamos a rua escura e silenciosa nos fundos do prédio de Gruber, e, em meio minuto, adentrávamos o apartamento. Erna nos abriu a porta. Já estavam quase todos lá, faltávamos apenas nós e Altobelli. Gruber, sentado na poltrona, ainda tinha ataduras nas mãos; as do rosto haviam sido removidas, deixando exposta a pele vermelha sobre a qual as bolhas começavam a secar. Berger andava de um lado para o outro, obviamente ansioso, e uma mulher morena de meia-idade, nariz comprido e olhos pequenos estava sentada com o cotovelo apoiado no braço do sofá e o queixo na mão, observando placidamente a agitação dele. Devia ser a Sra. Berger, que ainda não tínhamos encontrado pessoalmente.

A porta mal tinha fechado atrás de nós, e escutou-se nova batida. Era Altobelli que chegava, e também acompanhado de uma mulher morena. Eu nem sabia que a esposa dele também participava da conspiração. Ou que havia uma militante fazendo as vezes de esposa dele: a autenticidade dos casais do Komintern era sempre algo a se questionar.

Hoje, ao contrário dos nossos breves encontros anteriores, Altobelli estava usando óculos, e eu repentinamente o reconheci de um retrato que vira vários anos atrás num jornal esquerdista: era Rodolfo Ghioldi, o célebre comunista argentino. Ele era amigo de Prestes, pelo pouco que eu sabia, o responsável por apresentar-lhe o marxismo-leninismo; fazia todo sentido estar ali entre nós, então, e também estava explicado o portunhol.

Guardei minha observação para mim, porém. Não era nada que tivesse relevância para os nossos assuntos diários, e se alguém ali não sabia a identidade verdadeira dele, é porque não lhe cabia saber.

A chegada do argentino e da esposa despertou Berger de seu transe meditativo. Ele estacou no meio de uma volta pela sala, olhou para o lado onde nos amontoávamos, e comentou:

– Ah, finalmente. Sentem-se, camaradas, temos muito para conversar.

Ele mesmo tomou lugar ao lado da esposa, enquanto nos espalhávamos nos lugares restantes nos sofás. Erna foi à cozinha e voltou com uma cadeira para si, e outra que ofereceu a Astrakhanov.

– Certo... Eu não sei nem por onde começar – confessou Berger, coçando a cabeça.

– Você disse que temos instruções da Maison... – Gruber se manifestou, lá da sua poltrona. Berger olhou para ele e confirmou com um aceno, enquanto tateava os próprios bolsos à procura de alguma coisa. A mulher ao lado dele riu baixinho e puxou alguns papeis de dentro da blusa, entregando-os ao marido.

– Ah, obrigado, Sabo. Esqueci que tinha te pedido para guardar. Muito bem.

Berger enfiou os papeis maiores no bolso do paletó, e abriu o menorzinho.

– A Maison ficou bem impressionada com nosso relatório sobre o comício da Aliança Nacional Libertadora – ele introduziu. – Mesmo de longe eles reconheceram o potencial da organização, e inclusive... bom, acho que eles se empolgaram um pouco demais.

– Como assim? – Erna franziu as sobrancelhas.

Berger e a esposa se entreolharam.

– Eles recomendam a adoção da palavra de ordem "Todo poder à ANL".

– Quê? Mas já? – a esposa de Altobelli exclamou, incrédula.

– Eu também achei um tanto precipitado – Berger disse, contrariado. – Afinal, eles acabaram de ter seu primeiro comício oficial.

– E na semana seguinte o presidente assinou aquela lei – a esposa de Altobelli pontuou. – Imagine-se o que ele não vai fazer se a Aliança sair com uma proposta dessas.

– Reação haverá de qualquer forma, Carmen – Sabo, a esposa de Berger, retrucou. – A questão é se nós teríamos condições de enfrentar essa reação e manter nosso posicionamento.

E nisso ela olhou para mim, assim como todos os demais, esperando meu parecer, já que tínhamos sido eu e Astrakhanov a comparecer ao comício, e provavelmente fôramos os responsáveis indiretos por essa última ordem da Maison, graças aos nossos informes otimistas.

– Eu... não sei. O pessoal estava mesmo animado. Muito. Eu achei que era um bom começo – falei, cautelosamente – Mas era isso, um começo. A Aliança ainda precisa se firmar e se desenvolver.

– O melhor seria aguardarmos um momento para ver se não é fogo de palha – Astrakhanov completou, sumarizando minha opinião melhor do que eu.

Sim – apoiei, enfática. – Porque brasileiros são empolgados, de modo geral – eu tentei explicar. – Mas nem sempre essa empolgação tem raízes profundas.

– Concordo com a Camarada Anita – pontuou Altobelli. – Foi o que pude notar da minha convivência com os hermanos brasileños.

– Ainda mais na febre de indignação em que estamos, com tudo o que vem sendo empurrado goela abaixo da população – acrescentei.

– Mas isso é prova de que a indignação tem raízes – Sabo observou. – E pelo que eu fiquei sabendo sobre o histórico dos trabalhadores no seu país, são raízes bem profundas, sim.

– As raízes dos problemas, sem dúvida – concordou o marido dela, – mas eu entendo o que a Camarada Anita quer dizer. Ela está falando das raízes do movimento.

– Da Aliança?

– Uhum.

– Eu comentei com vocês... pelo menos tenho certeza que comentei com o Camarada Gruber... – eu disse – que, embora tenha muita gente honrada e corajosa lá, algumas das pessoas que estão na cabeça do movimento são oportunistas conhecidos.

– Ah, isso é outra coisa que sempre vai ter – Altobelli observou. – Às vezes, até dentro do Partido.

– Sim, sim, mas... – eu balbuciei, sem saber como expressar minhas preocupações.

– Acredito que a questão é saber – Gruber interpôs – se, a despeito dos oportunistas, há gente dos nossos o suficiente lá para que o movimento não se desvirtue, não perca o caráter popular e vire uma cópia daquele outro movimento sobre o qual a camarada comentou, que aconteceu há cinco anos.

– A Aliança Liberal – eu completei. – Sim, apesar de que aquele nunca teve nenhuma afinidade conosco – dei de ombros.

– Mas enfim, há gente dos nossos o suficiente lá? – cortou Astrakhanov, antes que começássemos a girar em torno das mesmas questões. Ele olhava para Berger, que mais uma vez fez uma careta incerta.

– Há sim... mais ou menos – seu titubeio encontrou nossas expressões impacientes, e ele explicou: – Martins me garante que há muitos militantes alistados, mas o Partido ainda não aderiu oficialmente.

– E nem deveria – Altobelli se manifestou. – O Partido está na ilegalidade, só daria mais desculpas ao governo para aumentar a vigilância em cima da Aliança.

– Sim, sim. Mas estou falando internamente. Creio que haveria mais adesões do pessoal, dos militantes em si, se o Partido adotasse uma postura de apoio à Aliança. E em vez disso, Miranda me sai publicando esse tipo de coisa – Berger concluiu, um pouco agastado, pegando um jornal da mesinha de centro à sua frente e jogando-o para Altobelli.

Era um exemplar do A Classe Operária, órgão de imprensa oficial do Partido. Altobelli folheou-o atrás do editorial redigido por Miranda, e logo leu para nossos ouvidos pasmos uma conclamação aos comunistas para que abandonassem todas as alianças perniciosas com sociais-democratas, direcionando seus esforços à revolução socialista, a única que nos salvaria no momento presente, e possibilitando a hegemonia do proletariado por meio da formação de sovietes de camponeses e trabalhadores.

– Bom, pelo menos ele é ortodoxo – Altobelli comentou, sem conseguir conter uma risada. Berger olhou para ele com ar de censura.

– E sem nenhum senso de oportunidade, porque se isso chega às mãos dos aliancistas, podem começar a nos olhar com desconfiança – comentou, ácido. – Se é que se pode considerar ortodoxa uma pessoa que não entende que uma revolução democrática e anti-imperialista deve preceder a revolução socialista – acrescentou.

– Dê um desconto a ele – Gruber comentou, apoiando o rosto preguiçosamente na mão enfaixada, e fazendo uma careta de dor – a linha do Partido muda tão rápido às vezes que nem eu consigo acompanhar.

Astrakhanov pareceu incomodado com aquela afirmação. Pigarreou, vermelho, e se endireitou na cadeira, com ar de dignidade ofendida – afinal, ele era o soviético ali. Berger achou melhor tomar as rédeas do assunto.

– Enfim, o fato é que nós já recebemos instruções para mudar de linha, que agora é o momento de romper o jugo do governo que está aí, e que se for preciso é para nos aliarmos com os mencheviques brasileiros, por assim dizer... repassamos a informação para o Miranda, e ele continua teimando – ele disse, gesticulando em direção ao jornal, que voltara a seu lugar na mesinha de centro. – Imagina a dificuldade de convencê-lo a apoiar algo como "Todo o poder à ANL". Vai dizer que nós estamos traindo o proletariado.

– Miranda é uma pessoa só – Erna observou.

– Mas é o Secretário-Geral do Partido, e os camaradas respeitam a hierarquia. Até certo ponto. A opinião dele influencia os outros, e não só isso, ela reflete a opinião dos demais. Se já está sendo difícil fazer uma pessoa mudar de estratégia, imagine o Partido inteiro. Eles não nos ouviriam.

– Ouviriam Prestes – eu pontuei.

– Pois é – Altobelli comentou, vertendo uma indignação que já vinha acumulando – mas Prestes está em algum lugar desse planeta que nós não fazemos ideia de qual seja. Ou fazemos? – ele indagou, olhando para Berger.

Berger abanou a cabeça.

– A última coisa que eu soube foi que em fevereiro ele estava em Paris. Nada de lá para cá.

O silêncio caiu entre nós, e durou um momento, cada um expressando apenas mentalmente suas frustrações com nossa situação atual.

Aproveitando a pausa espontânea na reunião, Erna levantou e foi até a cozinha, de onde voltou com uma bandeja com lanchinhos – pequenos sanduíches e suco de laranja. Quem sabe os estômagos acalmados restaurassem os ânimos. Foi uma feliz ideia, recepcionada com muitos agradecimentos. Ela desenfaixou a mão direita de Gruber, para que as ataduras não sujassem a comida – e vice-versa – e, enquanto nos servíamos, reintroduziu de leve a pauta da reunião.

– Bom, supondo que nós comecemos a implantar imediatamente a palavra de ordem – a loura especulou, – quais seriam as principais dificuldades que enfrentaríamos?

– Espalhar – Berger respondeu, de boca cheia. Fechou uma mão na frente da boca e engoliu a comida, antes de continuar: – Fazer com que essa diretiva seja abraçada em todas as partes do país – disse, gesticulando amplamente, como se apontasse lugares em um grande mapa.

– Mas, Harry – Sabo disse, tomando um gole de suco, – me parece que essa dificuldade nós vamos enfrentar qualquer que seja a linha adotada.

Berger suspirou, obrigado a concordar com a cabeça.

– É, isso era outra coisa que tínhamos que tratar hoje – ele disse, puxando do bolso do paletó os papéis que enfiara lá anteriormente. – Acho que precisaremos enviar reforços para o Nordeste. Os relatórios que vieram de lá não são os melhores. Chegaram esta manhã. Camarada Anita, se não se importa – e ele me entregou uma das cartas, estendendo a outra para Astrakhanov. Presumi que queria que nós lêssemos os documentos para os demais, como Altobelli tinha lido a reportagem.

– Olha, é do Mendoza – murmurou Astrakhanov, ao abrir sua carta.

Hm, quer dizer que Silo também tinha vindo... Dada sua amizade com Prestes, não era de se surpreender. Perguntei-me mentalmente se José Maria e Jaime haviam igualmente retornado para a Pátria e estavam trabalhando conosco.

Astrakhanov começou a ler a carta, e o seu conteúdo sim me surpreendeu. Silo, que sempre apoiara a entrada de Prestes no Partido, se mostrava contra o prestismo, isto é, contra aquela onda nacional que se refletira no primeiro grande comício da ANL e parecia considerar o ex-general da Coluna como o Messias esperado. Ele confiava plenamente na capacidade do Camarada Prestes, dizia, mas era muito peso e muita expectativa em cima de uma pessoa só.

Além disso, ele compartilhava da minha opinião sobre o perigo dos líderes oportunistas da Aliança. Achava que o partido não possuía agilidade e organização para enfrentar a demagogia deles e sustentar sua independência dentro do movimento. "É preciso um mínimo para entrar nisso, e ouso dizer a vocês, com muita franqueza, que esse mínimo ainda não existe".

Ele afirmava que os acontecimentos estavam sendo precipitados. Apesar de haver muita insatisfação e necessidade de levar adiante as lutas populares, achava que não tínhamos condições nem sequer materiais para dirigi-las.

– "Não parece um perigo tremendo dar corpo e amplitude a tais lutas, sem uma direção efetiva do partido?" – leu Astrakhanov.

– Bom que agora podemos escrever a ele e dizer que temos uma direção efetiva: todo poder à ANL – comentou Gruber, com ironia.

Berger soltou um riso nervoso, enquanto escutava o relato franco da precariedade das nossas forças em Pernambuco. Faltava dinheiro: tinham apenas um conto de réis, fornecido por um médico simpatizante. Faltava comunicação: o Partido não tinha imprensa oficial lá, "fora uma maquineta descoberta, enferrujada, e um mimeógrafo comprado há uma semana". Faltava gente: as células comunistas existentes tinham recém sido fundadas, e eram fragilmente ligadas à massa operária.

"Mal podemos dizer que o partido existe. Me parece que vamos armar um Viva Villa," Silo concluía, numa alusão a um filme de faroeste do ano anterior sobre a espontânea, porém desordenada Revolução Mexicana do início do século.

Naquele clima de enterro que ficou após a carta de Silo, comecei eu a ler a que estava comigo, do Camarada Caetano Machado, que também estava em Pernambuco, e cujas novas tampouco eram animadoras. A única boa notícia era que Tapajós – um dos militantes treinados por Gruber – chegara lá e já tinham conseguido um lugar para a fabricação das bombas – "bombons", segundo a carta – embora faltasse dinheiro para comprar os materiais.

"O resto está tudo muito mal", Caetano dizia. "Pedi a Miranda que me mande o L. ou algum desempregado, aqui tem muito comodismo e acúmulo de funções. O pessoal que vocês mandaram não foi de grande ajuda. Um deles está bastante doente e afetadíssimo dos nervos, o outro também com dores de cabeça, o da agitprop diz abertamente não poder ser dirigente, pois tem medo de qualquer barreira, S. nem sabe como funciona uma célula. No setor militar, até mesmo para ligar a algum elemento, eu mesmo fui catar, e já temos em mãos três companheiros do Exército. Na polícia, nada existe, porém já estou estudando um elemento, que vou falar com ele, na Guarda Civil tem uma célula, um guarda civil, um inspetor de veículos, um guarda-noturno. Estão imprimindo um manifesto. Há cheiro de provocador no ar, pois tudo o que se discutia na mesma hora estava nas barracas, nas esquinas e nos cafés. Todos os donos de tipografia aqui têm medo".

Sobre as novas adesões de civis, o camarada trazia interessantes relatos, por assim dizer:

"Apareceu um caudilho camponês em Jatobá do Tacaratu. Disse que se o partido não der autorização, ele começa a luta sozinho. Se ele não está cagando goma, podia começar com três grupos de dez homens cada um. Tem outro caudilho também, das margens do rio São Francisco, mas o problema é que ele está enrolado com uma mulher e enquanto não resolver isso não sabemos qual será o curso".

Quando eu terminei de ler, o silêncio se prolongou um pouco mais.

– É, precisamos mandar mais alguém para o nordeste – Sabo pontuou, de maneira enfática, após um momento.

– Isso é claro – Berger respondeu. – Mas quem?

Ninguém se voluntariou. Eu também não; não poderia julgá-los. Sair da capital, do centro dos acontecimentos, com a ANL pulsante ali, e a sede central do Partido, para ir se internar no sertão, logo depois de ter ouvido aqueles relatos extasiantes? Não, obrigada.

Mas pelo menos precisávamos disfarçar a má vontade.

– Acho que nós... somos todos necessários aqui – balbuciou Altobelli, após um momento. – Bem ou mal, cada um tem sua função... Gruber treina as pessoas, e o Camarada Stuart também... Você e eu cuidamos da organização e...

– Vamos falar com o Camarada Miranda e tentar encontrar gente do Partido que esteja em condições de ser enviada – Berger concordou. Não parecia disposto a renunciar a nenhum de nós. – De qualquer forma, temos aqui quem foi escolhido a dedo pelo Camarada Prestes, e não seria prudente remanejar ninguém até que ele mesmo possa emitir sua opinião sobre o assunto.

Murmúrios de concordância foram ouvidos por toda a sala, e Gruber logo alteou a voz para mudar de assunto:

– Então acho que só nos resta agora tratar de como conservar intacta esta equipe aqui, à luz da nova lei.

– Altobelli, você conseguiu uma cópia dela? – Berger perguntou.

O argentino confirmou, puxando uma folha do Diário Oficial da União do bolso interno do paletó.

– Eu já a li inteira – ele foi adiantando, enquanto desdobrava o papel – e, para ser franco, nem vale entrar em detalhes. Tudo o que fazemos ou pretendemos fazer, basicamente, é crime. Só não proibiram os comunistas de respirar porque ficaria muito evidente – ironizou.

Ele passou o papel pela roda, para que cada um pudesse dar uma olhada pessoalmente nos dispositivos legais.

A Lei Monstro já começava rugindo na nossa cara, ameaçando com seis a dez anos na cadeia quem tentasse mudar a constituição ou a forma de governo, pela força. Era como um dedo bem grande se movendo em frente ao nosso nariz. "Então vocês vão fazer uma Revolução? Aqui não, queridinhos!". Bem, até aí, nada de novo: improvável que a legislação de algum país permitisse a subversão da ordem constituída.

O Direito é conservador por natureza.

O problema é que a Lei Monstro ia um passo adiante: ela não deixava nem sequer as pessoas se expressarem sobre o que consideravam a melhor forma de governo, cercando cada passo que conduzisse à difusão de ideias ou organização de movimentações contrárias aos interesses das classes dominantes. Proibia greves, de servidores públicos ou empresas privadas, punia até os patrões que consentissem com paralizações do trabalho que não fossem motivadas por algum problema interno da empresa. Vedava a impressão e difusão, por qualquer maneira, de jornais, folhetos ou quaisquer outros escritos com ideias sobre a luta de classes, dentre outras coisas, e concedia às forças governamentais poderes bem amplos de recolher periódicos, destruí-los, fechar editoras, demitir servidores públicos e dissolver organizações políticas.

– Bom, vamos ter que reforçar a segurança – foi a conclusão tranquila de Astrakhanov, quando terminou de ler o papel, devolvendo-o a Altobelli, à sua esquerda. – Evitar encontros como este, para que não possam pegar todos de uma vez – ele gesticulou, abrangendo nosso grupo, – variar e renovar nossos códigos internos, definir senhas pessoais e trocá-las periodicamente, privilegiar as comunicações orais...

– ...queimar todos os papéis que já tivermos usado... – enfatizou Gruber, olhando direto para Berger, que se fingiu de desentendido.

– Sim, bem lembrado – Astrakhanov apoiou. – De preferência na mesma hora. Decorar a mensagem e queimar a prova.

– Certo, certo – Berger concordou. – Mas eu preciso de algumas coisas para manter tudo sob controle.

– Você é quem sabe – Astrakhanov apaziguou, mas lançou um olhar implorante a Sabo, que, pela cara que fez, entendeu a mensagem: o tenente queria que ela se certificasse de que Berger ia ficar mesmo só com o essencial.

Mais alguns procedimentos de segurança foram acordados, com Astrakhanov, Gruber e Sabo conduzindo essa parte da discussão, o resto de nós se limitando a ouvir e concordar. Já era tarde, próximo da meia-noite, quando finalmente deixamos o apartamento de Franz e Erna. Fomos saindo em turnos com espaço de cinco minutos entre uma dupla e outra.

Eu e Astrakhanov, que morávamos mais perto, saímos por último. O silêncio na rua era absoluto, e não havia vivalma circulando sob as luzes amareladas dos lampiões. Nós conversávamos aos sussurros sobre o que prepararíamos para comer; o lanche durante a reunião já ficara apenas na memória, os estômagos reclamando novo alimento, ou não nos deixariam dormir. Nossos armários estavam quase vazios, seria preciso ir à feira no dia seguinte.

No patamar escuro que dava para o nosso apartamento, eu já sonhava com os restos do bolo de fubá que tinha sobrado daquela manhã, a boca chegando a salivar. Esperava com impaciência que Astrakhanov abrisse a porta, e lancei um olhar irritado quando percebi que ele paralisou com a mão na maçaneta, após dar uma volta com a chave na fechadura.

– O que foi? – questionei, quase ríspida.

– Entraram aqui – ele sussurrou, pálido.

– Ah é – duvidei. – Para. Está tudo escuro. O porteiro não nos disse nada quando passamos por lá.

– Entraram, estou dizendo – ele insistiu. – Eu dei duas voltas na fechadura quando a gente saiu, agora a porta abriu com uma volta só.

– Stuart, você está ficando paranoico – eu censurei, fazendo menção de passar na frente dele para abrir o apartamento.

Ele não deixou. Sacando uma minúscula pistola do cinto, que eu nem sabia que ele estava carregando, abriu cautelosamente a porta e entrou na minha frente, apontando a pistola para a escuridão, mesmo ciente de que seria a maior tolice dessa terra atirar em quem quer que ele pudesse encontrar ali. Caminhou até o interruptor e iluminou o vestíbulo, mas ainda não deixou que eu entrasse, fazendo um gesto para que eu permanecesse no corredor, enquanto ele seguia para o interior do apartamento, acendendo todas as luzes do caminho.

Girando os olhos para o fiasco do tenente, eu entrei mesmo assim, e me dirigi diretamente à sala, na qual, é claro, não havia ninguém. Tirei a bolsa do ombro, depositando-a na poltrona, e me espreguicei, girando esse mesmo ombro num exercício para livrá-lo da tensão causada pelo peso pendurado nele até então. Enquanto fazia isso, corri os olhos ao redor distraidamente, até que eles pousaram sobre os livros na estante.

Foi a minha vez de paralisar.

Havia uma coisa muito, muito tola que eu tinha feito na prateleira. Eram poucos livros, totalmente aleatórios, abandonados ali pelos proprietários dos apartamentos. Procurando algo que prestasse para ler, outro dia, eu tinha percebido que as iniciais de alguns autores eram as mesmas letras de "Pavel" – com dois "a", e três "l", na verdade – e os arrumara na sequência correta.

Agora estavam fora de ordem.

Ouvi os passos de Astrakhanov, que voltavam para a sala. Escutei o pigarro de quem ia me bronquear, mas nem me virei para ele. Perguntei direto:

– Você mexeu nesses livros? Nos últimos três dias?

– Nem nos últimos três dias, nem nunca. Meus livros de português estão no meu quarto – ele respondeu.

Eu me virei para encará-lo.

– Entraram aqui – concordei.

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