Dias Vermelhos

erikasbat tarafından

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... Daha Fazla

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 35 - Efêmero Idílio

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erikasbat tarafından

As revistas femininas diziam que você não deve deixar seu namorado circundar seus ombros com o braço no cinema. Não era decente. Eu não costumava ler essas revistas, mas não conseguia evitar pensar na cara que fariam suas redatoras – ou redatores – se me vissem naquele momento, aboletada no colo de Pavel, trocando beijos intensos, enquanto um longa-metragem de drama se projetava na tela lá na frente.

A promessa de manter as mãos em terreno seguro, fielmente cumprida durante a semana, tinha acabado de ser esquecida, e ele tateava as laterais das minhas pernas, enquanto a boca descia pelo meu queixo e pelo pescoço.

Sabe aquela história de que os quietinhos são os piores? Quem disse isso sabia do que estava falando.

– Pasha, daqui a pouco vão nos expulsar! – eu sussurrei, emitindo o mínimo de som possível. Ele suspirou pesadamente, sua respiração fazendo cócegas em meu ombro, e me colocou de volta em meu lugar, mantendo apenas uma mão entrelaçada na minha.

– Perdão. É que é difícil lidar com o fato de que não vou te ver amanhã – ele murmurou. – E que não sei quando nos veremos novamente.

Suspirei.

– Nem me fale.

A semana fora gasta em escapadelas, toda vez que eu tinha uma hora livre. Carmen devia estar pensando o que teria acontecido comigo, pois eu não me dei o trabalho de deixar recado antes de simplesmente não aparecer nas nossas sessões de tradução. Mas tudo bem, eu inventaria alguma desculpa depois. Recuperaria as tarefas atrasadas depois, também; agora, todo minuto era precioso, ainda mais sabendo que cada encontro era um encontro a menos, numa irritante contagem regressiva semanal. Hoje finalmente tínhamos o dia inteiro para nós, e, no entanto, a consciência perene de que aquelas eram nossas últimas horas juntos até segunda ordem manchava com certa dose de agonia o prazer da convivência.

Era como se, atrás de cada palavra doce, pudéssemos ouvir o apito do trem noturno, anunciando a partida.

– Vamos só... prestar atenção no filme, e depois a gente pensa nisso – eu pedi, tentando me concentrar na tela lá embaixo. Mas é claro que um filme chamado Noite em Petersburgo e baseado na obra de Dostoievski não serviria para nos distrair do fato de que ele tinha que voltar para Leningrado – a antiga São Petersburgo – naquela mesma noite.

Justiça nos seja feita de que aquele filme não fora nossa primeira escolha. Não seríamos tão estúpidos. Entramos no cinema para assistir uma comédia muda chamada "Acordem a Lena!", sobre uma menina que fica lendo até tarde e nunca consegue chegar a tempo na escola. Se eu escolhi por identificação com a personagem? Talvez. Pavel também gostava de filmes mudos; ele e os amigos tinham tocado a trilha sonora de um deles uma vez. Mas o filme durava menos de meia-hora, o cinema estava tão quentinho e as cadeiras tão confortáveis que resolvemos ficar para a próxima sessão.

E foi assim que o drama entrou nas nossas vidas.

– Ouso dizer que eu não preciso de mais nada triste para hoje – Pasha murmurou, após uns minutos vãos tentando se concentrar no enredo. – Um parque de diversões seria melhor para o meu humor.

– Bem, vamos encontrar um, então – eu propus.

– Ou um circo, ou algo do tipo.

– Circo não – retruquei. – Não gosto de palhaços.

Nos levantamos e nos esgueiramos o mais discretamente possível para fora. Recebemos um olhar estranho do lanterninha ao passar por ele, e preferi não me indagar o que ele teria visto, e pior, o que teria imaginado.

Vagando pela cidade e perguntando aqui e ali, não encontramos nenhum parque de diversões ou circo, mas fomos dar por acaso com uma feira, uma exposição das conquistas da Juventude Comunista. Afinal de contas, era preciso ocupar a juventude comunista com alguma coisa no dia de folga, e de preferência com algo que viabilizasse o acréscimo de novas fileiras aos contingentes dessa juventude.

O evento tinha sido organizado pelo pessoal do Komsomol e pelos Pioneiros, e no início eu andava meio escondida atrás de Pavel, temendo me deparar com alguém da ELI, porque aquele era exatamente o tipo de feira que eles frequentariam. As atrações iam desde apresentações artísticas ou instrutivas – exposição de inventos industriais ou fotos de construções por todo o país – até barracas de brincadeiras, na sua versão "proletária". Havia, por exemplo, uma tenda chamada "Derrube o banqueiro!", e um pobre coitado fantasiado de gordo burguês, com direito a cartola e almofadas no lugar da barriga, se equilibrava em uma tábua estreita, cujo suporte devíamos derrubar com um par de tiros de uma espingarda de pressão, para fazer o fantasiado cair numa piscina.

Particularmente cruel no outono, se bem que eu acho que aquele revestimento – e pelo jeito dele, alguns goles de vodca – davam conta de deixá-lo aquecido.

– Você quer um? – Pavel disse, ao me pegar olhando para a barraca. Eu estava analisando a brincadeira, mas ele decerto pensou que eu me interessara pelos prêmios. Sim, havia, eu nem tinha reparado neles. Reparei então, com surpresa, porque eram simples ursinhos de pelúcia, como em qualquer país capitalista. Única diferença é que tinham uma estrela vermelha bordada na barriga.

Por isso a barraca atraía tantos parzinhos.

Encolhi os ombros. Seria um presente fofo? Seria, eu até gostaria de ganhar, mas não fazia tanta questão de derrubar o pobre homem. Pavel interpretou meu dar de ombros como um sim, e se aproximou para comprar um bilhete.

– Obrigada, camarada; mais umas moedinhas para a excursão de verão dos Pioneiros! – agradeceu a garota sardenta de uns treze anos que controlava a tenda, jogando os copeques de Pasha em uma latinha, e entregando três papeizinhos para ele aguardar na fila.

Fui me postar ao lado dele. Logo chegou sua vez. Um Pioneiro alto entregou a carabina a Pasha, e ele se endireitou.

– Faz um tempinho que servi ao exército – ele comentou, com uma risada nervosa, antes de mirar o primeiro dos suportes.

Ele atirou no da direita, mas o tiro não passou nem perto. Usou seu segundo cupom para atirar de novo, mas o projetil meramente arranhou o suporte, cravando-se na tábua atrás. Suspirou e encarou o terceiro bilhete, pensando se ia fazer mesmo aquilo. Olhou os ursinhos. Os três rapazes na nossa frente tinham conseguido um, e o banqueiro, encharcado, estava rindo da cara de Pavel pelo seu insucesso. Aquela risada abafada me irritou, e eu toquei no ombro de Pasha, na hora em que ele apontava o rifle novamente.

– Posso tentar? – pedi. Pavel me olhou, espantado. Mas uma coisa – bem lisonjeira, na verdade – que eu tinha já aprendido é que ele nunca me negava nada. Repassou-me a espingarda, e abriu caminho.

A risada do banqueiro ficou ainda mais forte, considerando que eu tinha uns bons trinta centímetros a menos que Pavel, e precisava apontar para cima para mirar nos suportes. Logo, porém, o som daquela risada tornou-se um tanto borbulhante, conforme ele mais uma vez despencava na piscininha. Ouvi palmas, não tão surpresas, pois eu não fora a primeira garota nem a única a atirar. Mas o importante é que eu conseguira. "Bravo!" – um Astrakhanov na minha cabeça me deu uns tapinhas nas costas, enquanto eu devolvia a espingarda ao Pioneiro, e ele me entregava um ursinho marrom. O banqueiro, resignado, voltou para o seu posto, após outro organizador ter recolocado o suporte e a tábua no lugar.

– Estou triste – Pavel disse, observando-me acariciar o bichinho e cheirar a pelúcia, enquanto nos afastávamos. – Não fui eu que ganhei ele para você – e franziu as sobrancelhas para o bichinho.

– Bem, você pagou pelo bilhete – respondi. – Dá no mesmo.

– Não exatamente – ele sorriu, enfiando as mãos nos bolsos. – Mas vamos fingir que sim.

– Você pode ficar com ele – propus, estendendo o ursinho para Pasha. – Já que tudo foi feito meio ao contrário.

Pavel relanceou o olhar para o presente, mas sacudiu a cabeça.

– Andriusha pegaria no meu pé para sempre.

– Diga que é para Dúnia – falei. – Ou dê para ela, para ela lembrar de mim.

Sob essas condições, Pavel aceitou o bichinho, acomodando-o debaixo do braço. Continuamos nosso passeio, parando ocasionalmente para ouvir as explicações dos expositores.

– Não sabia que você atirava – Pasha comentou, pouco depois.

– Pois atiro – respondi, na falta de algo melhor. Ou antes, na impossibilidade de estender o assunto, por se tratar das disciplinas da ELI. – Há muita coisa que você ainda não sabe sobre mim – brinquei.

– Certamente que há – Pavel respondeu, tranquilamente. Abri a boca, mas ele se antecipou: – Não se preocupe, já sei sobre o que posso ou não posso perguntar. Apenas alimento uma esperança de que, um dia, você me contará tudo.

– Eu também alimento essa esperança, Pasha – retruquei, tocada. – Alimento muito.

– E já que estamos falando de alimentar... – ele apontou uma barraquinha de comida que oferecia pãezinhos e chá.

Pareceu-me uma proposta excelente, e rumamos para lá. Refestelamo-nos com os quitutes, enquanto escutávamos duas moças vindas do campo contarem sobre a produção do trigo e dos outros ingredientes que tinham usado para fazer a refeição que vendiam. Elas pareciam felizes e bastante deslumbradas de terem sido selecionadas para vir a Moscou, representar sua vila na feira, graças ao seu trabalho exemplar, provavelmente. Seus rostos redondos circundados por tranças louras reluziam, e elas cercaram Pasha de tantas atenções que, lembrando como ele tinha boas recordações do campo, eu achei pertinente entrelaçar meus dedos nos dele novamente, mesmo que estivéssemos em público. Uma questão de marcar território.

Ele ainda mastigava um último bolinho quando eu o puxei dali.

– O que vamos fazer agora? – perguntei.

Antes que ele tivesse tempo de engolir, porém, encontrei eu mesma a resposta. Uma fila longuinha levava a uma das poucas atrações em que havia um senhor de idade trabalhando. Ele tinha uma câmera fotográfica, um pequeno cenário, e uma tendinha toda negra ao lado. Uma placa em frente à tenda anunciava fotografias instantâneas. Intrigada sobre a possibilidade disso – até onde eu sabia, fotos levam um bom tempo para serem reveladas – arrastei Pavel para a fila.

– Como vocês vão querer, meus filhos? – o homenzinho de voz entrecortada perguntou, apontando o cenário dele, basicamente um pano branco ao fundo, um banquinho, e um vaso de girassóis. – A moça sentada e você de pé atrás, o que acha? – falou para Pavel.

Tentamos desse jeito, mas não deu certo. Ou o fotógrafo cortava a cabeça de Pasha, ou as nossas canelas. Então Pavel se sentou, e eu fiquei de pé atrás, apoiada no ombro dele. Melhorou, mas ele não gostou. Disse que não me queria atrás dele, eu nem ia ficar visível. Puxou-me, então, para dividirmos o banquinho, que era bem estreito, nos obrigando a se equilibrar um pouco. Colocou o ursinho no meu colo e disse para o fotógrafo que estávamos prontos.

O homem enfiou a cabeça na sua caixa preta, e não demorou a nos liberar. Disse para voltarmos no fim da feira, para pegar os resultados. Eu vi que ele fechou a barraca não muito depois disso; fomos sortudos de pegar o final do trabalho.

Zanzamos a tarde inteira por ali, nos cansamos, fomos passear nas ruas em volta e retornamos, como recomendado, quando já estavam desmontando tudo.

– Ah, achei que não vinham. Só falta mais um par de fotos para entregar – comentou o velhinho, quando nos viu chegando. Eu me afobei e já fui pegando a foto da mão dele. Não pude evitar um sorriso. Nosso arranjo com o banquinho resultara engraçado.

– Vou ficar com ela – avisei Pavel, guardando a foto no bolso, quando ele fez menção de pegá-la.

– Não é justo – ele se queixou debilmente. – Também quero uma lembrança.

– Você já tem o ursinho.

– Ora...

– Se acalmem, crianças, tem outra – e o velhinho entregou uma segunda foto a Pavel, que eu espiei, para ver se não preferia aquela, mas era idêntica. – Duas pessoas, duas fotos – concluiu, quando fizemos menção de perguntar.

Com nosso pequeno desacordo apaziguado, partimos alegres.

– Sabe, acho que foi uma boa ideia comermos na feira – Pavel comentou, quando íamos voltando para o apartamento de Natália Petrovna. – Acho que a minha tia não tinha em casa nada que servisse para jantar, hoje. E, na verdade, duvido que ela tenha pensado em arranjar.

A previsão fora acurada. Natalia Petrovna havia descido para jantar com seus colegas em um restaurante próximo, e sequer se lembrara de nós. Ficou um pouco embaraçada, mas logo esqueceu, depois que a tranquilizamos quanto ao assunto.

Com esses amigos, ela tinha, todavia, nos arranjado outra coisa, e bem interessante.

– Ao Bolshoi?! – exclamei, quando Natalia Petrovna nos convidou. Se tinha vontade de ir? Nossa, muito. Quase um ano em Moscou e ainda não tivera oportunidade. Mas a proposta me pegou de surpresa. – Eu não tenho nem roupa adequada... – balbuciei.

– Que roupa adequada? – Natália franziu as sobrancelhas. Então compreendeu – Ah querida, não precisamos dessas bobagens burguesas! – ela descartou, pegando meu pulso e começando a me puxar em direção à porta. – Hoje as pessoas vão lá por causa da arte, e não para um concurso de quem aparece mais. Venham, o espetáculo de hoje é sensacional, vocês não podem perder.

E, trocando um olhar com Pasha, que apenas encolheu os ombros, eu me deixei arrastar.

Conforme guardávamos os casacos e subíamos as elegantes escadarias, ainda encimadas pelos lustres do antigo regime, minha timidez quanto ao nosso vestuário se agravava. Afinal eu não apenas não estava com roupa de gala, como também não tinha nenhuma na mala, e não lembrava de jamais ter tido, até porque eu não frequentava os eventos que as exigiam. Os casamentos de duas das minhas irmãs tinham sido simples, campestres. Eu concordava com Natália Petrovna que a razão certa para ir ao teatro é apreciar a arte, mas não queria ser objeto do olhar reprovador geral.

Para minha sorte, ela estava com razão em mais de um sentido. Descobri que Natália não se referira apenas a nós, ao dizer aquelas coisas, mas a todo o público do Bolshoi. As galerias de veludo vermelho e poltronas fofas estavam lotadas de gente de todos os tipos, famílias inteiras, velhinhos solitários, bandos de moças e rapazes – todos trajados com suas roupas comuns. Não havia sinal de escalonamento social na distribuição da plateia, nem mesmo a reserva dos melhores lugares para líderes do Partido, e eu juro que cheguei a ficar emocionada.

Nos acomodamos e, até a cortina subir, fiquei em silêncio admirando o público, sem prestar atenção na conversa entre Pasha e sua tia.

O espetáculo era um balé, o mesmo A Era de Ouro, cuja música Natália Petrovna adorava. A trilha sonora fazia muito mais sentido, agora, encaixada nas cenas. A peça começava com uma apresentação do teatro propagandista da juventude, encenando a derrota do capitalismo, representada nas figuras caricatas de um banqueiro, um oficial do exército, e um Pope ortodoxo, varridos para longe pelos bailarinos-trabalhadores. No meio dessa confusão, a heroína e o mocinho se conheciam, ela, a única de vestido vermelho e ele de trajes brancos, para diferenciá-los dos outros atores, que vestiam roupas com essas duas cores mescladas. Todas roupas muito coladas, exageradamente coladas, inclusive.

O rapaz, aparentemente, era um pescador, e a moça – para sua surpresa, quando ele a reencontrou – uma dançarina no restaurante que dava nome à peça, e que tinha aquela atmosfera meio burguesa dos anos 20, dos tempos da Nova Política Econômica. Outra dançarina e um rapaz desse bar faziam as vezes de vilões, junto com um grupo aleatório de bandidos. O resto do enredo era bem típico: paixão, desaparecimentos, reencontros, dois homens disputando a moça, brigas estilo pastelão e o amor vencendo no final. Natália Petrovna não despregou os olhos do palco um só instante; aparentemente já sabia tudo de cor, mas torceu pelos mocinhos como se fosse a primeira vez. Pavel estava mais interessado na orquestra, e eu segui o desenrolar dos acontecimentos com atenção, menos nas cenas românticas, que meio que me deram sono.

O que posso fazer se as luzes baixavam e a música ficava mais lenta?

A experiência no teatro fora, certamente, irrepetível, porém uma parte de mim a trocaria por um pouco mais de tempo para viver minhas próprias cenas românticas.

Mas agora já era hora de Pavel ir embora.

O apartamento de Natália Petrovna não ficava muito longe do Bolshoi. Voltamos lá para Pavel pegar sua mala, e dali rumamos direto para a estação. Agora estávamos Pasha e eu abrigados do vento perto de uma das vigas que sustentava o teto da plataforma, e Natália Petrovna sentada em um banco mais adiante. Preferira nos conceder aqueles momentos a sós, o breve intervalo entre a chegada do trem e a sua nova partida. O frio que fazia na estação impedia outras pessoas de xeretarem: os funcionários permaneciam andando para cima e para baixo, para se esquentar, e novos passageiros já chegavam e entravam direto em seus vagões, sem vontade de se demorar lá fora.

Isso nos dera certo grau de privacidade, que não sabíamos bem como gastar. Pavel estava apoiado na viga, um pé sobre a mala, os braços em torno da minha cintura. Eu o abraçava também, com o rosto apoiado em seu peito. Guardava silêncio para manter firme o queixo que estava louco para derreter. Também porque o silêncio prolonga os minutos, e esse era o efeito que mais queríamos no momento.

Havia assuntos de urgência, no entanto, e Pavel teve que quebrar o encanto.

– Sei que você não quis pensar nisso mais cedo, e nem eu queria, mas – ele sussurrou no meu ouvido – quando vamos nos ver novamente?

– Não é que eu não queria pensar – eu respondi, erguendo olhos tristes para ele – é que eu não tinha uma resposta. E ainda não tenho. Por mim, eu embarcava nesse trem agora, mas... não posso – grunhi, voltando a afundar o rosto no casaco dele.

Pavel riu, acariciando meus cabelos.

– Por causa dos estudos?

– Uhum.

– Eu também gostaria de ficar, mas... – e suspirou.

– Você não pode – completei, voltando a olhar para ele com uma careta – tem que trabalhar.

– É. Por que tínhamos que ser logo adultos responsáveis? – ele brincou, em tom de queixa, me fazendo rir.

– Dezembro – eu disse, então.

– O que tem dezembro?

– Meu curso acaba em dezembro. Acho que então poderei dar um jeito de ir te ver.

O rosto de Pavel, em vez de expressar alívio, transpareceu foi mais agonia. De início eu não entendi, mas:

– E depois? – as palavras dele saíram num fio de voz.

– Oh.

O fim do meu curso significava o meu retorno. Para ainda mais longe do que dez horas de trem. Muito mais longe, meses mais longe. Mas eu não podia ir, não já. Minha respiração acelerou, provavelmente para alimentar o funcionamento das engrenagens do cérebro, que rodavam a todo vapor, procurando uma saída.

– Eu posso, posso tentar prolongar o curso – eu disse, então. – Existem programas estendidos de dois ou três anos. E também existem cursos para a formação de mestres – apontei. – Necessitamos de mestres no meu país.

– E você seria uma professora novamente – ele sorriu, acariciando meu rosto. – Eu gosto dessas opções, embora elas não sejam muito definitivas.

Ouviu-se o primeiro apito anunciando a partida do trem.

– Resolvem nosso problema por um tempo – respondi, dando de ombros. – Claro que não depende só de mim; deve haver uma avaliação criteriosa, eles são muito criteriosos em tudo. Não sei bem como se faz isso, preciso me informar. Mas acredito que tenha nota para passar.

– Bom, se eles te recusarem – Pavel disse, nervoso, tão rapidamente que eu tive até dificuldades para entender – e você quiser permanecer no país, claro, podemos ver outras formas de você conseguir uma permissão para ficar. Deve haver outras opções, claro, mas em último caso, em último caso sempre tem o casamento.

Meus olhos saltaram para o rosto dele, e ele ficou ainda mais nervoso. Largou minha cintura e se endireitou.

– Isso não... não é uma proposta nem nada, não pense que eu... estou te pressionando ou – ele gaguejou um pouco – quero apressar as coisas, não! Eu...

O segundo apito soou.

– ...é apenas o estudo de uma alternativa técnica. Eu não me importaria de servir como seu, digamos, sua propiska, depois se fosse o caso é fácil conseguir um divórcio, apenas não descarte nenhuma possibilidade, porque... eu não quero que você vá embora – ele concluiu, com um pequeno sorriso desajeitado.

Espelhei o sorriso, e puxei-o pelo pescoço com minha mão enluvada, tocando seus lábios finos brevemente com os meus.

Foi minha única resposta. Eu tinha coisas demais dentro de mim para administrar; meu interior já estava bagunçado, e aquele ensaio acovardado de pedido de casamento lançara tudo num completo caos.

O terceiro apito soou. Era hora. Natália Petrovna tocou o ombro de Pavel, para lembrá-lo disso. Ele a abraçou rapidamente, abraçou-me também, pegou a mala e correu para o vagão, quando o funcionário já estava fechando a porta.

Eu e Natália ficamos contemplando enquanto a máquina seguia os trilhos em direção à distância, levando nosso querido Pasha de volta para seu lar que, infelizmente, não era ali conosco.

A névoa que enchia a noite logo engoliu o trem, e com ele, tudo o que acontecera na semana precedente, conferindo-lhe uma atmosfera de sonho.

Em poucas horas viria a manhã, e com ela mais um dia de trabalho. Mais um dia de rotina.

Era hora de acordar.

Okumaya devam et

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