Dias Vermelhos

By erikasbat

44.6K 6.9K 28.8K

Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café

347 69 421
By erikasbat

– Faz bastante tempo que eu estou longe, mas ainda sinto falta.

Era o meio de julho. Na União Soviética, o verão ainda estava em seu pico, mas eu e Carmen Orestos tomávamos chá, cuidando para não derramar o líquido aromático nas dezenas de folhas espalhadas e livros abertos em cima da mesa.

Ela falava do chimarrão. Carmen era gaúcha, como eu tinha descoberto nos nossos primeiros contatos, graças ao sotaque forte preservado. Estava na URSS havia mais tempo que eu; viera em 1931 e não morava na ELI, mas com sua família, em um apartamento próprio, alugado. Eles tinham emigrado em massa. Carmen falou vagamente sobre perseguição, mas não me disse de quem, nem por quê. Nada demais, afinal, eu ainda era uma estranha.

– Eu também sinto falta. Não do chimarrão, mas do café. Do Brasil. Da comida, das pessoas. Até das picuinhas da direção do Partido. Até hoje recebi apenas uma carta da minha família. Navios são horrivelmente lentos – eu respondi, pousando minha xícara perto do dicionário de russo-português.

– Sempre há o correio aéreo – apontou Carmen.

– Só funciona dentro do país – retruquei. – Pelo menos no Brasil é assim.

– É verdade. Confesso que tinha esquecido. Ainda estavam começando a implantar o sistema quando eu saí de lá. Como você traduziria "narkompros"?

– Comissariado do Povo de Educação. É o que significa a sigla, não é?

– Estou vendo que esse texto vai de duas páginas para quinze – Carmen observou, sacudindo a cabeça, enquanto anotava a palavra na nossa tabela de padronização de jargão.

Estávamos trabalhando na tradução de alguns textos curtos do Camarada Lenin, e do livro Salário, Preço e Lucro, do Marx, mas eu traduzia para o português, e Carmen para o espanhol: seriam os textos dela que utilizaríamos em sala de aula. Usávamos as traduções para russo, francês e inglês como base. Considerando que Marx não escrevia em nenhuma dessas línguas, mas em alemão, a chance de dar confusão era gigante, e tentávamos evitar equívocos de tradução consultando várias versões e uma quantidade enorme de dicionários, e confeccionando nossos próprios sistemas de organização. A tabela de padronização de termos técnicos, já extensa, fora necessária por causa do grande número de palavras e siglas novas, próprias dos últimos quinze anos de governo soviético, que ainda não constavam dos dicionários que possuíamos.

– Também não recebi muitas notícias do Partido – eu disse, retomando a conversa após meia hora de absorção no trabalho. – Nos enviam uns poucos jornais de vez em quando, e Suarez, quando veio, falou da chegada anunciada de um novo instrutor enviado da Internacional Comunista, isso ainda no ano passado. É estranho não saber o que está acontecendo no Partido. Parece que me cortaram as raízes. Você não se sente assim? – perguntei.

– Eu não sou filiada – Carmen disse, após um momento, com a voz tranquila, e os olhos em seu trabalho. Os meus, por outro lado, se arregalaram.

Como assim? Como uma pessoa não filiada ao PCB podia estudar na ELI? Talvez tivesse entrado pela cota da Juventude Comunista... Mas não, José Maria e Jaime já eram da UJC, não devia ter muitas vagas mais. Minha língua coçava de vontade de perguntar, mas sabia que eu não ia obter respostas, então fiquei quieta.

– Mas eu sei algumas coisas sobre o que está acontecendo por lá – ela continuou, quando eu já não esperava mais nenhuma palavra. – Foi ordenada uma purga na liderança.

– Mais uma? – Espantei-me. Havia uns três ou quatro anos, antes de eu ingressar nas fileiras do PCB, já tinha ocorrido uma reformulação dos quadros, e muitos cabeças foram expulsos por tendências trotskistas ou socialdemocratas.

– Uhum. Esse mês acontece o Congresso anual do Partido, não é? Novos líderes seriam eleitos de qualquer jeito.

Carmen deu de ombros, tomando um gole do chá, que a essa altura já devia ter esfriado. Eu, por outro lado, não conseguia voltar para o meu trabalho, e continuava olhando para aquela mulher enigmática.

Se ela não integrava o Partido – e era verdade que eu nunca a tinha visto antes – como sabia tanto sobre as nossas disposições internas? Será que era uma espiã? Eles faziam uma checagem de antecedentes tão rígida antes de admitir alguém na Escola. Seria impossível que tivéssemos um infiltrado nas nossas fileiras. Ou não? De onde raios surgira essa mulher, assim, no meio do ano, sem pertencer a nenhuma turma específica, fazendo algumas aulas aqui e ali, sem residir na escola e apenas vagamente vinculada ao nosso setor? Para quem permitiriam tantas exceções? Quem era ela, afinal?

Céus, eu estava ficando paranoica.

Uma imagem voltou a minha mente, da primeira vez que eu vira Carmen, na reunião do Setor L. Silo a cumprimentara com familiaridade, e se assentara perto dela, permanecendo ali até o fim da sessão. Parece que alguém a conhecia, no fim das contas.

– De onde você conhece o Mendoza? – minha boca perguntou, antes que eu pudesse fechá-la. Carmen ergueu os olhos castanhos e franziu as sobrancelhas.

– Quem? – questionou, levemente impaciente.

– O Silo – tornei. – Silo Meireles.

– Oh... É um amigo da família – retrucou, simplesmente, desviando o olhar. Eu fiz menção de perguntar mais alguma coisa, mas desisti. Tentaria espremer a outra fonte mais tarde, provavelmente com maior eficiência.

Mergulhei de fato no trabalho, interrompendo a leitura e a escrita só para discutir algumas questões de termos específicos, e beliscar os biscoitos de um prato sobre a mesa. Já estávamos atrasadas para a entrega daquele livro, o que nos obrigava a perder os dias lindos que fazia lá fora, a fim de que pudéssemos concluir a tradução a tempo de entregá-la ao editor para a impressão já agendada dos primeiros exemplares. Nossos colegas esperavam esses exemplares avidamente, e não podíamos deixá-los na mão. Estávamos acabando, mas ah!, como eu queria ter mais tempo. As tarefas se acumulavam e eu me sentia soterrada por elas, como se caminhasse de dever em dever em dever... Nesse ritmo, as coisas que poderiam ser prazerosas se tornavam um tédio.

Curiosamente, esbarrei numa passagem em que Marx falava justo sobre isso:

O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia.

Tirando a parte de produzir riqueza alheia, eu não me sentia muito longe de uma besta de carga. Ou antes, uma besta-intelectual, besta-teórica, besta de produção textual. Só mais uma tradução, só mais um relatório, só mais um artigo científico ou opinativo. Nunca pensei que diria isso, mas eu estava cansada de livros.

Por uma associação mental, lembrei da pequena distopia escondida embaixo do meu travesseiro, que eu ainda nem tivera tempo de abrir. Nós. E de quem a tinha emprestado para mim. Tive saudade de junho. Das férias, que não eram férias – pois, afinal, eu trabalhava – mas que, ao mesmo tempo, eram sim. Apesar de todas as pedras carregadas e paredes pintadas, sobrava tempo para descanso e diversão, pontes e violinos.

Mas pontes e violinos não faziam revolução. Uma base teórica impecável e uma boa pontaria faziam, e era esse raciocínio que motivava o meu eu morto-vivo a subir no ônibus às seis da manhã do dia seguinte, para rumarmos ao campo de tiro.

– Traduzindo até tarde de novo, Liza? – perguntou Jaime, pulando para o banco ao meu lado, e me obrigando a abrir os olhos, alarmada.

– Uhm? Ahn? Ah, sim – respondi, atordoada. – Às vezes me arrependo de ter me oferecido – resmunguei.

– Quem mandou querer se exibir. Eu falo francês e inglês e russo – ele me arremedou. – Agora aguenta.

Fechei a cara para ele.

– Eu não estava me exibindo. Vi a necessidade do grupo e procurei atendê-la. Esse é o espírito do socialismo, Camarada Suarez, e se não o compreende, melhor repensar seus princípios.

– Ai, calma, não precisa ficar brava – ele disse. Pegou no tecido branco do bolso da sua camisa e levantou-o um pouco – Olha, paz. Eu só estava brincando.

Apesar da vontade de rir do gesto, eu ia manter a postura severa mais um pouco e bronqueá-lo sobre brincadeira ter hora, mas Astrakhanov entrou no ônibus, energizado como se não fossem seis da manhã e ele não tivesse duas turmas de estudantes ineptos para ensinar a atirar de fuzil – nós e os tchecos.

– Muito bom dia, Camaradas! Todos prontos para esburacar nossos homenzinhos de madeira? Hoje vocês aprenderão a atirar em movimento... Mas, como dizem, pustói meshók stoiát ne budet, então primeiro vamos tomar café-da-manhã.

Enquanto alguém resmungava "Pelo menos isso", eu me admirava que eles também tivessem exatamente o provérbio "Saco vazio não para em pé". E não era a primeira vez que eu via uma coincidência do tipo. Parece que, em muitas coisas, cada uma por seus meios, as nações tinham chegado às mesmas conclusões.

Refeita pela refeição matinal, eu já estava desperta quando voltamos ao ônibus, para seguir viagem. Pisei no primeiro degrau, e de repente uma voz chamou minha atenção.

– Liza? É você mesmo?

Olhei para a esquerda, de onde viera o chamado, e meus olhos se arregalaram ao dar de cara com Ivan. Estava distante alguns metros, e carregava uma sacolinha, provavelmente contendo o almoço ou um lanche. Devia estar rumando para o trabalho. Sem responder nada, entrei rapidamente no ônibus, e corri para o meu lugar, abaixando-me no assento, para que ele não pudesse me ver pela janela. Ao mesmo tempo, ouvi um tropel de passos do lado de fora, e a voz séria de Astrakhanov na porta do ônibus:

– A entrada não é permitida, camarada. Este é um veículo oficial.

– Desculpe, é que acho que vi uma amiga minha entrando aqui.

– E quem seria?

– Liza... Elizavieta. Esqueci o sobrenome.

– Não há ninguém aqui com esse nome, camarada.

De certa forma, era verdade.

– Mas eu vi...

– É cedo, provavelmente o senhor confundiu.

Houve silêncio. Ivan não estava convencido, mas o tamanho, a farda e o ar um tanto ameaçador de Astrakhanov dissuadiram-no de teimar.

– Talvez.

– Certamente. Tenha um bom dia.

E Astrakhanov entrou no ônibus, cerrando a porta e mandando o motorista seguir. Eu permaneci abaixada no meu lugar, com Jaime ao lado, me olhando com ar de quem estava formulando questionamentos sobre minha saúde mental. Ouvi rangidos de botas se aproximando, enquanto o veículo se distanciava do meu perseguidor, e logo Astrakhanov assomou no corredor.

Eu me ergui lentamente, voltando a sentar na poltrona, sob o olhar perscrutador do tenente.

– O namorado de Leningrado sabe sobre esse aqui?

Girei os olhos e não me dei o trabalho de repetir que Pasha não era meu namorado.

– Quem é a figura? – ele perguntou, ao ver que eu permanecia em silêncio. – Não tenho nada com a sua vida particular, é verdade, mas a partir do momento em que alguém aborda o ônibus da escola à sua procura, o problema passa a ser meu. Quem é? – pressionou.

Os olhos de Jaime migravam de mim para o tenente e de volta, sem ele soltar um pio.

– É o irmão de uma amiga minha – respondi, de má vontade. – Ele é infernalmente curioso.

O rosto de Astrakhanov ficou sério.

– Devo me preocupar? – perguntou, erguendo uma sobrancelha.

– Não, eu tenho tudo sob controle.

– Espero que tenha – disse, num tom que deixava claro que ele, naquele momento, não era meu professor ranzinza, mas simpático, e sim um oficial do governo zeloso dos seus deveres. Se afastou, então, voltando à frente do ônibus e tomando assento ao lado de Ludmila.

Fechei a cara para Jaime, quando ele fez menção de abrir a boca, e ele puxou um jornal do bolso, escondendo o rosto no periódico. Eu encostei a cabeça no espaldar e ressonei até chegarmos à aula.

No retorno, encontrei Carmen na biblioteca após o jantar, e ainda traduzimos mais um pouco, até ficar muito tarde e ela precisar voltar para casa. Então rumei para o prédio-alojamento. Entrei no meu quarto, bocejando. Apenas Tatiana estava lá, imersa na leitura. Em cima da minha cama, com surpresa, encontrei um envelope aberto, e um pacote de papel pardo. Voei no envelope, antes de explorar o pacote, por reconhecer nele a letra da minha mãe.

Li a carta com as mãos trêmulas. Tive que me virar para o outro lado na cama, a fim de esconder de Tatiana as lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Eu já tinha passado vários anos longe de casa mesmo antes de vir para a União Soviética, mas havia muito que a saudade não me apertava daquela maneira. Talvez por eu ter falado no assunto no dia anterior, talvez por estar me sentindo tão cansada e sobrecarregada. Naquele momento eu queria muito um abraço de mãe.

[...] Ainda está nevando por aí? Não vá passar frio, minha filha! Estou mandando um cachecol e umas ervas daquelas que sua vó usava para fazer aquele chá que cura gripe. Por favor, não me deixe sem notícias. Eu sei que demora muito para as cartas virem, mas eu morro de aflição. Escreva o quanto puder, sim? Sei que você está feliz e está fazendo o que gosta, e eu fico feliz, apesar de teres levado um pedaço do meu coração junto com você aí para esse fim de mundo.

Seu pai e seus irmãos todos mandam beijos. Te amamos muito.

E assim terminava a carta. No final, meu pai e minhas irmãs e irmão tinham assinado, cada um escrevendo umas poucas palavras para mim. Tudo sobre saudades e sentimentos, aquelas coisas que eu estava tentando sufocar no momento.

Larguei o papel e abri o pacote, que obviamente já tinha sido desfeito e embrulhado novamente. Além do cachecol e das ervas prometidas, fiquei feliz de encontrar um pacotinho de café junto. Será que mães preveem o futuro? Ou elas simplesmente estão tão sintonizadas conosco que conseguem deduzir as nossas necessidades, como que por instinto?

Abri uma fresta no invólucro do café e inalei o aroma daquele pó preto. As lágrimas deram lugar ao riso, e senti um novo ânimo me invadir. Seu envio fora como que providencial. Era um pedacinho de casa que eu poderia ter ali comigo – afinal, o que havia de mais brasileiro do que café, atualmente? – e me ajudaria a ficar acordada até mais tarde, para dar conta das minhas tarefas multiplicadas.

Pensava sobre a conveniência de preparar um pouco de café naquele exato momento, quando ouvi uma batida na porta. Eram os rapazes.

– Temos novidades, Camarada – José Maria anunciou, empolgado. – Recebi carta do Partido hoje, e... isso aí é café? – os olhos dele brilharam, ao dar com o conteúdo do recipiente em minhas mãos.

– É – falei. – É meu – avisei.

– Poxa, pra quê ser tão egoísta – ele lamentou, fazendo beicinho. Virei os olhos; meus colegas às vezes nem pareciam homens feitos. Se bem que, tirando Silo, eles eram tão jovens quanto eu.

– Eu não rejeitaria um pouco de café – Silo concordou, então.

– Faz um bule para a gente – José Maria propôs, seu belo rosto negro se abrindo em um sorriso. – A gente toma enquanto discute as novidades. Prometo que vale a pena.

Havia uma micro cozinha no alojamento, para emergências, apesar de fazermos as refeições no outro prédio. Descemos para lá, e enquanto Silo procurava algo que pudéssemos usar como bule, eu me dei conta de que não tínhamos coador. Discutimos brevemente usar uma meia para fazer as vezes desse utensílio, e fui vencida no meu voto contra. Voltei para pegar meia minha, pelo menos; jamais tomaria um café passado nas meias daqueles homens. Quando voltei, a água já estava fervendo em um samovar, e fiquei ao lado, aguardando o momento de desligá-lo, enquanto José Maria abria a carta que tinha recebido e alisava o papel sobre a mesa.

– Ok, eu ainda não desvendei tudo – admitiu – mas são senhoras notícias.

– Desvendou? – repeti.

– A carta está criptografada – Jaime explicou.

– Ah. Naturalmente.

– Vou ler para vocês como está, e depois explico os códigos que eu conheço.

A carta tinha a forma de um relato de um pai para um filho, acerca do gerenciamento dos negócios de uma empresa familiar de tamanho médio. Falava-se em filiais e gerentes, e reuniões gerais da diretoria – e, na verdade, achei o código genial, porque nem precisávamos adaptar muito a linguagem. Na reunião anual dos sócios, dizia a carta, foram eleitas pessoas muito competentes para os principais cargos da empresa. Pretendiam operar uma mudança pragmática, relembrando os funcionários acerca da filosofia do empreendimento, para que os esforços da companhia se direcionassem ao alcance definitivo das metas do negócio. Se o filho conhecia os novos executivos? Provavelmente. Tratava-se de um tal Queiroz, e um sócio chamado apenas de "Milionário", que havia um bom tempo vinha contribuindo com capital para as atividades empresariais.

– São o Miranda e o Martins – decodificou José Maria, pausando a leitura nesse ponto. Vi que a água tinha fervido, e levantei para continuar a preparação do nosso néctar.

– E quem virou o quê?

– Pela sequência, Miranda é o chefe-máximo, o Secretário-Geral, e Martins eu não sei. Tesoureiro, talvez.

– Secretário Nacional – corrigiu Silo. – É o segundo cargo.

José Maria concordou com um aceno, e prosseguiu na leitura. "O mercado nos obriga a contratar novos profissionais", continuava a carta. "Ofereceram como opção pessoa que dizem ter grande experiência no nosso ramo, mas de cuja fidelidade aos princípios da empresa nós, francamente, duvidamos. Trata-se do engenheiro Almeida; você provavelmente já ouviu falar dele. Fez fama no ramo alguns anos atrás, com técnicas ousadas, mas não muito ortodoxas".

– E agora, de quem eles estão falando? – perguntei.

– De Prestes – Silo respondeu, antes que José Maria pudesse abrir a boca. Repentinamente, ele pareceu bem agitado. – E então, vão aceitá-lo ou não? – pressionou. – Não dizem?

– Calma, homem. Vou lendo.

"Honestamente, o próprio mercado o rejeitava até pouco tempo, de modo que estamos muito receosos em aceitar os conselhos no sentido de recepcioná-lo. Mas esses conselhos são insistentes, e acho que não poderemos continuar a ignorá-los por muito tempo".

– Isso! – Silo exclamou, golpeando o ar com o punho fechado, numa comemoração. Olhamos para ele com estranheza. – O que foi? É uma força nova e um homem de princípios. O Partido estava bem precisando de alguém assim.

Ninguém se deu o trabalho de discutir. José Maria continuara a ler em silêncio e de repente deu quase um salto da cadeira.

– Escutem só essa! – ele por pouco não gritou. – "Há rumores do surgimento de uma empresa de capital aberto, do mesmo ramo da nossa. Parece ser um empreendimento de grande potencial, e pensamos que talvez seja mais inteligente procurarmos formar um grupo com ela, e entrar em acordos sobre a divisão do mercado, ao invés de nos colocarmos em posição de concorrência. Até porque o trabalho poderia ser feito de maneira colaborativa, e porque temos como opositores as mesmas empresas retrógradas que visam, entre seus objetivos, a uniformização de toda a produção. Seria interessante se você pudesse consultar a opinião dos especialistas em Paris a respeito".

– Paris? – repeti, espantada.

– É claro, é para lá que mandam as cartas – Jaime me explicou, como quem diz algo óbvio. – Achou mesmo que o Partido ia enviar papéis diretamente para Moscou? A Internacional se encarrega de fazer chegar aqui.

Acredito que fiquei vermelha com essa observação. Realmente, fora uma inocência injustificável da minha parte não considerar esses pormenores. Para disfarçar meu constrangimento, disse, com rispidez:

– Certo, mas o que tem de mais nesse parágrafo? Eu não entendi nada.

– Confesso que eu também não – Silo concordou.

– Uma empresa de capital aberto quer dizer um movimento social espontâneo. As empresas retrógradas que visam a uniformização da produção, a meu ver, são os fascistas. Quer dizer que surgiu um movimento social de resistência ao fascismo, e para terem citado na carta, não deve ser coisa pouca. E, esperem, tem mais. Mandaram alguém para lá. Não para o Brasil, para a Argentina, mas é para o escritório latino-americano, deve lidar com a gente também. Albert, não faço ideia de quem seja, mas pelo jeito é dos graúdos. É isso.

José Maria largou a carta e olhou para nós, os olhos novamente brilhantes, como quando enxergara o café. Mas agora enxergava algo mais – enxergava o futuro.

– Ah, minha gente! – Jaime gritou, alegre, tamborilando na mesa com ambas as mãos. – A libertação está próxima! Adeus às amarras do Capital!

– O povo brasileiro finalmente se levantará – Silo completou, com sua voz rouca, e um sorriso mais discreto que o dos outros, mas ainda assim contente.

Eu, que acabava de despejar o líquido preto e aromático em três xícaras e um copo – foi o que encontrei! – distribuí os vasilhames aos colegas, e ergui minha própria xícara no ar.

– Um brinde à grande revolução comunista brasileira! – Propus.

– Hurra!

E o café que nos desceu pela garganta tinha gosto de esperança. 

Continue Reading

You'll Also Like

453K 24.8K 31
Maia é dona de uma beleza exuberante, se muda para o Vidigal com sua irmã Estela. elas duas nunca tiveram vida facil desde pequenas sempre lutando pa...
2.4M 221K 84
Ela sempre sonhou em casar por amor, mas ao descobrir que foi prometida em casamento para unificar os negócios das famílias mais poderosas de Londres...
46.7K 11.3K 200
PARTE 2 - CAPS 201 AO 400 Tradução Concluída !
O dono do morro By Teixeira

Historical Fiction

1.2M 46.1K 140
Olá chamo me mirella tenho 16 anos e vivo com a minha tia. Os meus pais morreram quando tinha 10 anos e desde ai moro com a minha tia no morro da roc...