Dias Vermelhos

By erikasbat

44.6K 6.9K 28.8K

Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 27 - Eliminatórias

383 72 582
By erikasbat

As águas do Pequeno Nevá cercavam completamente a ilhota fluvial em que estava situado o Estádio Petróvski, e o sol refletia nelas, resplandecendo intensamente sobre a arena, como se ele mesmo estivesse a fim de assistir as competições que teriam lugar ali dentro de alguns minutos.

Era quarta-feira, e as multidões livres do trabalho lotavam as arquibancadas do recém-restruturado estádio, ávidas por assistir às eliminatórias leningradenses do Campeonato Interdepartamental Pan-soviético de Atletismo. Eu, Anna Anatolievna, Ivan Petrovitch, Andriusha e Dúnia nos espremíamos numa das fileiras mais próximas do campo. Não era a melhor acomodação em termos de visão global, mas Anna queria ficar num lugar de onde pudesse avistar o filho, e que ele pudesse ouvir seus gritos também. Pétia conhecia o pessoal da organização, e tinha conseguido isso para nós. Ele e Elena – uma lourinha simpática que podia passar por irmã de seu marido – tinham chegado mais cedo, e nos entregaram uns cartazes para apoiar Pasha e Kólia. Anna Anatolievna olhou enfezada para os cartazes e se recusou a segurar algum, considerando que as palavras de estímulo grafadas neles não eram das mais elogiosas.

Antes que ela tivesse tempo de bronquear Pétia pelas brincadeiras sem graça, Andriusha cutucou a mãe e apontou para a extremidade mais próxima do estádio. Os atletas vinham saindo do portal que levava aos vestiários. Anna esqueceu imediatamente o louro baixinho e se virou para o outro lado, começando a torcer com gritos e hurras antecipados, cuja altura obrigou Pavel a vir até nós, pedir para ela maneirar no tom.

Ao mesmo tempo em que experimentava sensações esquisitas ao vê-lo novamente de regata, eu tive que cobrir a boca com a mão para me impedir de rir das pernas esguias expostas pelo short e quase tão brancas quanto o tecido, naquele tom de pele que minha mãe chamava de "lagartixa transparente". Kólia, por seu turno, era visível à distância, no meio dos demais atletas, comprovando que aqueles uniformes não favoreciam ninguém cujo corpo fugisse do padrão deus-grego.

Pasha nos alcançou, e meu olhar subiu dos ombros para o rosto dele.

– Você pode querer guardar o fôlego para mais tarde, mãe – ele sugeriu, em tom suave. – Ainda temos uma tarde inteira de provas pela frente.

– Ai, mas eu já sei que você vai ganhar todas, meu filho! – ela exclamou com ar confiante, juntando as mãos. Pavel ergueu as sobrancelhas, enquanto Andriusha roncava uma risada.

– É bastante improvável, – Pasha falou, – mas se eu ganhar em alguma das modalidades, já fico feliz. As finais são em Moscou – ele comentou casualmente, para mim.

– Vai ganhar sim, Pasha, você leva jeito – estimulou Ivan, num tom tão calmo como o do filho. – Na grande guerra imperialista, costumavam me usar de mensageiro, porque eu era quem corria mais rápido no regimento – contou, não sem uma ponta de orgulho.

– Eh, para alguma coisa essas pernas compridas têm que servir – Pétia opinou, levando um olhar feio de Anna Anatolievna.

– Em quais modalidades você está competindo? – Lena perguntou.

– Corrida. Cem, duzentos e quatrocentos metros rasos, mil e quinhentos metros e o revezamento.

– Você não ia disputar arremesso de martelo também? – Andriusha estranhou.

– Ia, mas para essa preferiram escalar o Kólia – Pavel respondeu, olhando por cima do ombro para o amigo, que se aproximava. – Por motivos óbvios – ele riu.

– Você precisa comer mais, filho – Anna Anatolievna aconselhou.

– É o que eu sempre digo para ele – Kólia reiterou.

– Ele come o bastante, Anna – defendeu Ivan, levemente impaciente. – É uma questão de genética.

– A sua genética.

Eu vi a palavra otchevidno – obviamente – se formar nos lábios de Ivan Petrovitch, mas ele não seria louco de emiti-la em forma sonora. Em vez disso, saiu com Dúnia em direção ao vendedor de algodão-doce; desde que o avistara, ao entrar no estádio, a menininha estava pedindo o doce. Andriusha, decidindo que não feria sua dignidade adolescente regredir à infância num momento desses, saiu correndo atrás. Anna Anatolievna se virou para gritar-lhe que cuidasse para não tropeçar no meio do povo, ao mesmo tempo em que o treinador chamava Pasha e Kólia de volta para junto dos outros atletas.

Os alto-falantes que transmitiriam as instruções e a narração da competição emitiram um guincho agudo. O evento ia começar.

Go Laurel e Hardy! – gritou Pétia, girando o punho fechado no ar, e Kólia fez-lhe um gesto obsceno, sem nem se virar.

– Boa sorte, Pasha! – eu desejei, também num grito, debruçando-me no parapeito da arquibancada, para que fosse ouvida em meio à algaravia da multidão. Ele olhou por sobre o ombro e abriu um breve, mas amplo sorriso.

Pasha e Kólia competiam pelo coletivo dos construtores, contra o dos estivadores, o dos operários da indústria pesada e mais alguns setores produtivos bastante presentes – ou não – em Leningrado. Uma série de homens de todos os tipos físicos se agrupava num dos extremos do estádio, assim como um grupo menor de mulheres, não muito distante, se aquecendo. Enquanto isso, o pessoal da organização corria de um lado para o outro, checando os equipamentos, conferindo marcações, ajeitando faixas.

Novo apito agudo foi emitido pelos alto-falantes, que cessaram de transmitir uma marchinha alegre para dar lugar à voz do mestre-cerimônias, anunciando as modalidades da tarde, após breves palavras sobre a utilidade do esporte para a conservação da saúde e, consequentemente, para a construção do socialismo.

A competição começou logo com os cem metros rasos. Foram feitas duas etapas classificatórias, até que restaram apenas competidores suficientes para as oito raias. Pavel chegou a essa etapa, mas terminou a corrida em quinto lugar.

– Foi muito bem para uma primeira vez, filho – Ivan Petrovitch procurou animar Pavel, quando ele chegou perto da arquibancada, mais para aproveitar a sombra do que para estar perto da gente, segundo me pareceu.

– A gente sabe que você só estava se aquecendo – complementou Pétia. Pavel riu. Ele não parecia muito perturbado por essa primeira derrota. Preferia se concentrar no resto das provas a ficar se lamentando. Logo voltou para junto do técnico.

Eu nunca fui uma fã de esportes, e é fato inegável que estava ali somente por causa de Pasha, então exigir de mim uma descrição acurada e pormenorizada dos eventos daquela tarde é querer demais. Por sorte, eram todos esportes de regras simples – saltar mais alto, chegar primeiro, jogar mais longe os objetos – então até eu podia entender quando alguém estava ganhando, diferente do que acontecia no tênis, por exemplo.

Os organizadores foram inteligentes em alternar as modalidades, porque eram vários os atletas que competiam em mais de uma categoria. Assim, os corredores descansavam enquanto assistiam os saltadores, e esses recuperavam o fôlego para o próximo pulo observando dardos e discos voarem.

Esse cuidado, todavia, não ajudou Pavel. Realmente, não era seu dia de sorte. Ele terminou os duzentos metros rasos em sexto lugar, e os quatrocentos de maneira ainda mais aflitiva, em quarto. A essa altura acho que ele estava com um pouco de vergonha, tanto que nem se aproximava mais da arquibancada, permanecendo no banco com os colegas, o ar desanimado visível à distância. Nós da torcida estávamos divididos entre gritar mais alto para animá-lo ou permanecer quietos, fingindo que nada víamos, a fim de não aumentar seu embaraço. Pétia nos convenceu muito sabiamente a escolher a segunda alternativa.

– Isso é falta de energia, Pasha – Anna Anatolievna repreendeu, tentando forçar-lhe um dos sanduíches que trouxera, no intervalo do meio da tarde, fixado para que a organização do evento também pudesse descansar uns quinze minutinhos. Ele afastou o sanduíche do rosto com uma careta.

– Se ele não quer, eu quero, Anna Anatolievna – Kólia disse.

– Pegue sim, Kólia, fiz bastante para todo mundo – a mulher estendeu para o rapaz sua sacola de lona, já bastante esvaziada, pois todos nós da torcida tínhamos aceitado os sanduíches com muito prazer. O cheiro de pão recheado subiu da sacola, e Pavel acabou pegando um lanche também.

– Pense pelo lado bom, na última você quase levou medalha – Andriusha falou. A mãe e o pai lhe lançaram um olhar mortífero, e ele se defendeu – Eu quero dizer que ele está pegando o jeito. Pode ser que vença na próxima – concluiu, encolhendo os ombros.

– Vou fingir que isso faz sentido, Andrei.

– Meu palpite é no revezamento – eu falei, engolindo um naco de pão. – Sinto que você vai bem nessa prova.

Eu não sentia coisa nenhuma, mas não aguentava ver aquela cara abatida, precisava dizer alguma coisa. Os olhos cinzentos se voltaram para mim.

– Tentarei, prometo – ele falou, com um pequeno sorriso.

– Vai levar no revezamento, sim. Nessa parte da tarde eu estou competindo, e sou praticamente um pé de coelho ambulante. Agora vamos, que o dever nos chama – Kólia abaixou-se e pegou Pavel pela cintura levantando-o com um urro, e o fazendo soltar uma exclamação surpresa, enquanto nós outros ríamos. – Vamos buscar nossos louros.

O otimismo de Kólia, todavia, não se justificou. Na corrida de meio-fundo, de mil e quinhentos metros, Pavel ficou para trás já na segunda volta, e nem chegou a se classificar. O próprio Kólia, apesar de todo o espalhafato em torno da sua própria força, conseguiu apenas a quarta melhor marca na sua modalidade, atrás de três homens singularmente miúdos. Ele teve sorte, porém, porque o terceiro havia saído do círculo-limite antes de o martelo tocar o chão, e foi desclassificado, repassando a Kólia – Nikolai Karganov, como anunciou o locutor – o direito à medalha de bronze.

A última prova da tarde foi o revezamento 4 por 400. O céu já ia mudando de uma cor clara e sorridente para um azul mais profundo. As equipes se enfileiraram nas raias, cada competidor na marca que lhe fora destinada. Pavel era o terceiro de sua equipe, e estava bem longe das nossas vistas.

A largada foi dada com um tiro. Queimaram, e foi preciso atirar de novo. Agora sim. Um rapaz moreno de tamanho médio era o primeiro corredor do time de Pasha, e fez um tempo decente, mas não entregou o bastão ao segundo com grande dianteira. Esse outro – um rapaz que tinha vencido no salto em altura mais cedo – se atrapalhou um pouco, e acabou perdendo terreno para a equipe. Ele passou o bastão a Pavel, e com alegria vimos nosso amigo disparar, suas pernas compridas movendo-se como o vento, e ultrapassar os que corriam nas demais raias, ganhando distância de preciosos segundos em relação a eles. Parecia que minha descuidada profecia se cumpriria, e realmente eles ficariam em primeiro lugar no revezamento.

O sétimo time, porém, que mantivera um ritmo regular durante todo o percurso, revelou que tinha guardado seu trunfo para o final. O rapaz que pegou o bastão por último parecia ter rodas em vez de pernas, e deixou para trás com facilidade o companheiro de Pavel, que perdeu ânimo, diminuiu a carreira, e acabou perdendo o pódio para a sua equipe.

Ah, o quase. A dor do quase.

Enquanto a Internacional tocava, durante a premiação dos trabalhadores-competidores, as engrenagens da minha cabeça giravam, pensando em palavras confortadoras, que nunca tinham sido muito o meu forte. Eu costumava reagir com um "Puxa" sempre que me contavam uma história triste, pois... não parecem ridículos todos os consolos, quando a gente está chateada? Eu também não era do tipo que oferecia abraços ou ombro amigo, mas preciso dizer que, no momento, essa opção me parecia a mais atraente. Por inúmeros motivos. Mas eu dificilmente teria a coragem requerida para o uso dessa técnica, então melhor ir cunhando o discurso desde já.

Encontramos Pavel do lado de fora do estádio. Kólia estava junto, e eu fiquei pensando se ele não tinha família na cidade. Pelo menos tivera sensibilidade, e sua própria medalha não estava em nenhum lugar à vista. Provavelmente repousava tranquila em algum dos bolsos do terno; sim, os dois já haviam trocado de roupa, para alívio visual dos circunstantes. E para que Pétia parasse de chamá-los de Laurel e Hardy, é claro.

Fomos andando em silêncio, deixando a ilhazinha por uma das pontes que a ligava à cidade. Dúnia ressonava tranquilamente, com a cabeça no ombro do pai, e nós, pessoas crescidas e conscientes, tentávamos sublimar o assunto do fracasso completo de nosso ente querido. Pétia falava sem parar sobre algum assunto sem importância, os outros interviam aqui e ali, até que Anna Anatolievna parou com as mãos na cintura – obrigando todos a pararem no meio da ponte também – e se virou para olhar o filho.

– Não há de ser nada. Ninguém precisa de você atleta. Você começou essa história para se divertir, não foi? Pronto, se divertiu, e vai continuar se divertindo, é o que importa – disse, determinada. Pavel não falou nada, apenas sorriu. – No mais, eu tinha preparado uma torta de amora surpresa, era para comemorarmos, ou para qualquer eventualidade... mas enfim, comida não se desperdiça.

– É o melhor prêmio de consolação em que eu poderia pensar – admitiu Pavel, com uma gargalhada, que relaxou o clima de enterro, e logo o grupo se pôs em marcha novamente, com uma animação genuína, dessa vez.

Eu, porém, por mais que já estivesse sentindo o cheiro da torta de Anna Anatolievna em minha imaginação, não poderia desfrutá-la, porque tinha compromisso aquela noite. Quando chegamos ao fim da ponte, fiz menção de tomar o caminho oposto ao resto do grupo.

– Não vem conosco, Maria? – perguntou Ivan Petrovitch, notando meu desvio. Anna Anatolievna se virou também.

– O que foi, filha, não gosta de amora? – ela questionou. – Há amoras no seu país, não há? – complementou, em dúvida.

– Gosto sim, é que eu preciso encontrar meus colegas... de intercâmbio, essa noite, para elaborarmos um relatório acerca do que estamos aprendendo aqui em Leningrado – expliquei – e se eu for com vocês, não chegarei a tempo na reunião.

– Oh... É uma pena. Passe lá em casa amanhã, sim? Vou guardar um pedaço para você.

– Quer que eu te acompanhe até o local do encontro? – Pasha perguntou.

– Não precisa, vá lá aproveitar sua torta – eu neguei, embora parte de mim torcesse para ele reiterar o oferecimento. – Não é longe... e preciso passar na pensão antes, para pegar meus papéis.

– Eu te levo lá – ele decidiu, dando meia-volta também. – Assim mamãe pode contar os resultados para Yulia Mikhailovna e ela já despeja a maior parte dos comentários venenosos antes de eu chegar.

– Isso é uma boa estratégia – concordou Ivan Petrovitch, com um sorriso muito semelhante ao de Pavel.

Ainda houve um momento de hesitação geral quanto ao próximo passo, mas logo Pétia e Anna Anatolievna colocaram o grupo em movimento com palavras de ordem. Eu e Pasha seguimos na direção contrária.

– Parece que eu não irei a Moscou em agosto, no fim das contas – ele suspirou, quebrando o silêncio que acompanhara nossos primeiros dez passos.

– Você pode ir, só não vai competir – retorqui.

– Sim, claro. Mas seria tão mais fácil viajar com a delegação – respondeu o rapaz, enfiando as mãos nos bolsos do paletó. – Não teria que me preocupar com dinheiro e nem com conseguir uma semana de folga.

– Ah, isso sim – concordei, pensando em como eu mesma tinha aproveitado uma oportunidade semelhante. E em quão pouco controle temos sobre nossas próprias vidas. O quanto dependemos de circunstâncias externas, como tempo, dinheiro e as agendas dos outros para fazer o que realmente queremos. Dá vontade de rir do nosso eu criança que achava muito chato ter que obedecer aos pais. – Não se preocupe – eu continuei, arrancando-me à força da trilha de pensamentos, – ainda temos três semanas para descobrir como dar um sumiço nas três equipes que ficaram na sua frente.

Pavel riu.

– Dar sumiço em doze pessoas? Isso requer um gênio do crime.

– Talvez eu seja uma gênia do crime – brinquei.

– É por isso que você usa nome falso?

Estreitei os olhos para ele.

– Depende do que você considerar crime. Ou da resposta à pergunta "crime para quem" – divaguei, acariciando meu próprio queixo com um dedo. Afinal, o que pretendíamos fazer com o treinamento recebido era ilegal, do ponto de vista do meu governo.

– Vamos parar, isso está ficando complexo demais para o meu gosto.

Paramos. E paramos de andar também. Sem combinar, nem nada. Algo prendera nossos olhares. Em frente, e à esquerda, sobre o rio, o céu se revestia de uma parede de fogo que não deixava lugar para nenhum outro assunto. Era um pôr-do-sol daqueles que parecia dizer "Sh! Apenas olhem".

Nós cruzamos a rua em direção a um banco que havia na beira do rio. Confortavelmente instalados, assistimos o rio virar sangue, as nuvens dançarem, assumindo alternadamente os tons do espectro violeta, e o sol derramar sobre nossos rostos um último banho de luz, como um artista ciente de seu próprio valor, que condescende em atender os gritos de "bis!" da plateia, antes do fechar da cortina. Cerrei os olhos brevemente, apenas para enxergar alguns pontos de luz em um fundo vermelho, em vez de preto.

– Eu gosto do céu – Pavel comentou, num sussurro, como se temesse que a natureza se incomodasse com a conversa paralela e resolvesse pôr um fim antecipado ao espetáculo. – Assim, ou cinzento, ou estrelado. Ele é sempre... grande, maior, estável. Variável, mas estável. Dá certa calma. Como se...

– Nossas preocupações humanas fossem tão tolas e temporárias.

– Exato – ele retrucou, com um breve sorriso. – O que são algumas derrotas esportivas diante disso? – brincou. – Nós provavelmente estaremos todos mortos dentro de cem anos, e poucos vão se lembrar sequer que nós existimos, mas isso – e ele apontou o horizonte – Isso vai continuar acontecendo.

– Eu também gosto do céu – murmurei. – Principalmente das auroras e crepúsculos.

– São fenomenais. Poderíamos pintar a mesma tela durante a vida inteira e nunca atingiria esse nível de perfeição que se faz e desfaz em segundos.

– Verdade. Sabe o que eu gostaria? – perguntei, no mesmo tom de voz.

Pavel fez "Hm", sem desviar os olhos do céu. Eu tinha os meus no rosto dele. A luz amarelada destacava cada sarda, inflamava sua barba ruiva e avermelhava até os fios louros do cabelo que não estavam ocultos pela boina. O corpo meio curvado, inclinado para frente. A expressão era uma encantadora mistura de distração e concentração.

Não era só na pintura vespertina que a natureza acertava a mão.

– De lembrar disso tudo amanhã. Vi o sol se pôr de maneira incrível muitas vezes na vida, mas não lembro de nenhuma. A gente esquece tão rápido das coisas boas.

Será que eu tinha esperança de que ele dissesse, com a voz grossa de um locutor de radionovela "Então vamos fazer durar", tomasse meu rosto entre as mãos e me beijasse docemente, ou coisa do tipo? Confesso, envergonhada, que sim. Poentes são tão românticos; sempre tem um casal caminhando na praia ao pôr-do-sol nas histórias que contam para as menininhas. Não estávamos na praia e não éramos um casal, mas será que o ocaso e a água do rio não podiam trabalhar o clima?

– Desista, é impossível – ele tornou, com um sorriso, endireitando-se, sem nem reparar como eu estava inclinada em sua direção. – Não lembrar é parte da graça. Para podermos aproveitar com o mesmo gosto, da próxima vez.

Definitivamente, Pavel não fazia o tipo locutor de radionovela. E é provável que fosse por isso que eu gostava dele. Eu me endireitei também, cruzando os braços, com um profundo suspiro. Interpretando completamente errado a razão da minha frustração, ele pôs um braço em torno dos meus ombros, para me consolar.

– Esse pôr-do-sol foi especial, porque é um dos últimos da estação – falou, indicando o céu com o queixo. – Logo começam as noites brancas. Elas também são lindas, e não chegam a durar um mês. A questão é saber aproveitar o melhor de cada momento. O melhor do que tivermos em cada dia.

Eu resolvi seguir o conselho dele. Timidamente, encostei a cabeça em seu ombro, e, como não fui repelida, deixei-me ficar, contemplando de perto o rosto compenetrado no firmamento que se tingia de azul-escuro.

Era o melhor daquele momento.

E ainda havia três semanas de coisas boas pela frente.

***

Nota: Laurel e Hardy são os atores e comediantes que nós conhecemos por "O Gordo e o Magro", que estavam famosos bem nessa época das décadas de 1920-30. Aqui um clipezinho deles:

Continue Reading

You'll Also Like

46.7K 11.3K 200
PARTE 2 - CAPS 201 AO 400 Tradução Concluída !
VENNIA By SanCrys

Historical Fiction

552K 86.5K 62
❣ Livro vencedor do Wattys2020 na categoria Ficção Histórica. "Nunca confie em um Valentine", esta era a sentença que Vennia Lionheart ouvira durant...
2.5K 154 19
onde hyunjin trabalha com conteúdos adultos e acaba sendo descoberto por um universitário de sua faculdade. ou onde lee felix é apaixonado por um ato...
2.4M 221K 84
Ela sempre sonhou em casar por amor, mas ao descobrir que foi prometida em casamento para unificar os negócios das famílias mais poderosas de Londres...