Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização

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By erikasbat


Capítulo na terça? Bem, sim. Hoje é dia dos namorados, e como estamos no meio daqueles raros ciclos de capítulos em que o Pavel aparece, achei que eles mereciam essa homenagem — apesar de não estar dando tudo certo para o ship. Assim já alegra quem — como eu — sempre amarga a solidão no dia 12 de junho (oh vida). A propósito, hoje também é Dia da Rússia, então nada mais justo que liberar capítulo em Dias Vermelhos.

Espero que tenham gostado da surpresinha.

***

Eu me virei para Pavel.

– E agora?

Ele encolheu os ombros.

– Acho que você vai ter que dormir lá em casa – disse.

– Sua mãe não vai achar muito transtorno? – eu perguntei, torcendo as mãos. Ele inclinou a cabeça para um lado.

– Ela vai ficar um pouco surpresa – disse, – mas não há o que fazer. Não se preocupe – tranquilizou. – Não vai ter problema. Vamos, agora até eu estou ficando com sono – bocejou.

Realmente, 'surpresa' foi uma caracterização exata da reação de Anna Anatolievna. A hora que chegamos em casa, apenas ela estava acordada, esperando o filho voltar. Ao me ver entrar junto dele, não conseguiu conter um levantar de sobrancelhas, e a expressão levemente consternada, quando explicamos o que tinha acontecido, aquela que a gente faz quando nos obrigam a lidar com um problema que não estava nos planos. Mas ela logo superou essa etapa e se propôs a arrumar um cantinho no quarto para mim.

– Não precisa, eu durmo aqui mesmo – obstei, apontando o divã perto da poltrona da sala. – Não quero incomodar.

– Não, filha, aqui não dá – Anna descartou minha solução com um aceno. – Gente transita por essa sala – acrescentou, certamente se referindo aos vizinhos. – Já damos um jeito nisso.

E ela rumou para o quarto, e eu fiquei esperando, sentada no divã. Dali a pouco, Anna Anatolievna apareceu na porta e me chamou.

Toda a família dormia naquele recinto, e ele era bem amplo, com duas janelas. O extremo mais distante estava ocupado por um sólido guarda-roupa de madeira, que provavelmente encerrava a totalidade das roupas da casa, ainda mais que homens não se vestem com muita variedade. A cama do casal fora encostada na parede ao lado da porta. Ivan Petrovitch ressonava baixinho ali. No espaço entre as duas janelas na parede oposta via-se um berço, já pequeno para a menina Dúnia, que ainda dormia nele, com o dedo na boca. De frente para a cama do casal se enfileiravam duas de solteiro, a mais próxima da porta, ocupada por Andriusha, e a outra vazia, já que Pavel fora ao banheiro, se preparar para dormir. Entre essa cama e o berço, embaixo da primeira janela, Anna Anatolievna improvisara um leito de cobertas. Eu me dirigi para lá, mas ela segurou meu pulso, e redirecionou meu trajeto.

– Não, não, você é uma moça, nada de dormir no chão – repreendeu.

– Eu nã-

– Rapazes precisam aprender a fazer concessões. Ele não vai se incomodar, fique tranquila.

Aparentemente, Pavel trouxera o problema, e por isso perdera o direito à cama. Ainda tentei discutir, mas Anna Anatolievna não me deu nem espaço para sair dali, então me resignei a tirar os sapatos, o casaco, e me acomodar na cama de Pavel. Anna Anatolievna seguiu para seu próprio leito, então, removendo o roupão de cima da camisola, antes de deitar-se com um gemido resultante de um dia cansativo.

Eu fiquei lá, com os olhos arregalados na escuridão. Era tão estranho estar na cama dele. Eu não sabia o que pensar a respeito, apenas sentir. Vi Pavel entrar, os cabelos despenteados, de calça e uma regata branca que lhe acentuava a estreiteza do tronco. Não sei se ele sentiu meus olhos em seus ombros angulosos, quando se abaixou para guardar a trouxinha da roupa diurna embaixo do travesseiro, mas virou a cabeça para o meu lado, e sorriu ao ver que eu ainda estava acordada.

– Bons sonhos – sussurrou, se acomodando, e o quarto mergulhou em quietude.

Eu tentava não me revirar na cama, para não fazer barulho, mas estava difícil adormecer com a consciência de que o odor que me cercava era o cheiro dele nos lençóis. Havia algo de sensual nisso, ainda que o próprio Pavel não estivesse deitado na cama comigo, mas no chão, próximo à janela.

Passei uns bons minutos assim, lutando para respirar mais baixo. De repente, uma sutil atenuada na obscuridade do quarto me fez olhar para aquele lado. Pavel também não estava dormindo. Afastara um pouco a cortina e observava o lado de fora, seu rosto concentrado plenamente visível à luz de um intenso luar.

– O que está fazendo? – eu sussurrei, sem conseguir me conter, e depois tapei а boca, quando ouvi Anna Anatolievna se mexendo.

Pavel voltou o rosto para mim, e acenou para que eu me aproximasse. Levantei silenciosamente e fui na ponta dos pés até onde ele estava, deitando de bruços ao lado dele, no chão.

– As estrelas estão muito bonitas hoje – ele sussurrou no meu ouvido. – Nem sempre dá para ver aqui em Leningrado, por causa da chuva frequente, então eu gosto de aproveitar quando o céu está assim. Olhe.

De onde eu estava, não dava para ver o vão revelado, e ele não podia afastar muito a cortina, para não iluminar demais o quarto. Não tive escolha a não ser me aproximar um pouco mais e praticamente me debruçar sobre ele para olhar para fora.

Pavel tinha razão. O céu parecia um manto real bem escuro, cravejado de diamantes, uns pequenos, outros graúdos, arrumados numa desordem que talvez formasse um desenho gigantesco, que éramos muito pequenos para entender.

– Realmente – murmurei, após um instante. – Dá vontade de ficar olhando sem piscar.

E, sem reparar, pousei a cabeça no peito magro dele, meus olhos ainda presos lá fora. Ele estremeceu levemente uma vez, e foi assim que eu me dei conta do que estava fazendo. Mas não tive vontade de me levantar. Estava tão bom ali.

– Incomodo? – sussurrei.

– Não – Pavel tornou, após um momento. Acheguei-me melhor a ele, sentindo a quentura da lateral do seu corpo, e o sono finalmente resolveu me visitar. De repente, dedos longos se entremearam em meu cabelo, dançando lentamente sobre o couro cabeludo.

– Incomodo? – ele perguntou, por sua vez.

– Não – eu bocejei. – Fale-me sobre elas – pedi, indicando as estrelas com o queixo. Sabia que ele se interessava por astronomia. A grandeza e o mistério do universo o fascinavam.

– Aquela é a Ursa Maior... – Pavel não demorou a me atender. Seus sussurros faziam leves cócegas em meu ouvido, enquanto a ponta dos dedos ainda brincava com meus cabelos. O cheiro dele estava obviamente mais presente ali do que nos lençóis, mas isso não foi óbice a que eu pegasse no sono, sentindo-me segura e aquecida, os olhos mirando os brilhos do céu até eles borrarem todos, escoando para dentro de um sonho mirabolante.

Alguma coisa apertando meu nariz me fez despertar. Abri os olhos atordoados para dar com um rosto pequenino, encimado por cachos louros, me encarando com curiosidade.

Devushka – balbuciou a menininha. – Kto?

A vozinha aguda despertou Pavel também. Ele se sentou e a pegou no colo, libertando-me das mãozinhas que puxavam meus cabelos.

– Essa é a Masha, Duniasha.

Os olhos claros continuavam me inspecionando.

Mama? – ela perguntou, em seguida. Pavel riu.

– Não. Você só tem uma mamãe. Ela chama toda mulher de "mamãe" – acrescentou, para mim. – Essa não é a mamãe – repetiu, para a menininha.

Bem, eu poderia ser. Não mãe dela, claro, mas poderia bem ter uma filha de três ou quatro aninhos, se tivesse me casado cedo, como todas as minhas colegas. E Pavel também poderia já ser pai a essa altura. Um bom pai, provavelmente, pelo carinho com que tratava a irmãzinha.

Observei-o brincar com ela, amaldiçoando a ternura que começava a encher todas as minhas veias. Isso lá era hora de despertar o sentimento maternal? Logo após o pequeno balde de água fria do dia anterior? Suspirei profundamente, ainda mergulhada na observação, o que me fez levar um susto ao ouvir a voz de Anna Anatolievna.

– Ah, vocês acordaram – a mulher estava na porta, já de avental e colher de pau na mão. – Resolvi deixar dormirem mais um pouco, porque ontem foi um dia puxado, mas já estava vindo chamá-los, caso contrário você vai perder a hora, filho. Masha, você quer ir se arrumar primeiro? O banheiro é no fim do corredor.

Peguei algumas coisas na minha mala e segui na direção indicada. Os azulejos que revestiam o pequeno recinto eram impecavelmente limpos, e uma cortina turquesa separava a parte com a banheira e uma ducha da metade do banheiro ocupada pelo sanitário e pela pia, sobre a qual pendia um espelhinho de moldura cor de laranja. Eu estava terminando de ajeitar o cabelo, ficando na ponta do pé para me enxergar nesse espelho, quando ouvi rumores do lado de fora.

– Quem é que está aí? Que eternidade! Há outras pessoas que querem usar.

– Você está de pé desde as cinco horas da manhã, Yulia Mikhailovna, podia ter ocupado o banheiro à vontade – ouviu-se a réplica azeda de Anna Anatolievna.

– Como se já não tivesse gente o suficiente aqui para você ainda ficar trazendo estranhos – a vizinha retrucou.

– Acho bom você ir se acostumando com essa ideia, Yulia, porque qualquer dia desses Pasha vai acabar se casando, e vai ter outra família vivendo aqui, sim.

"Será que ela está contando comigo para isso?", especulei, interessada. Yulia Mikhailovna, por outro lado, soltou uma gargalhada.

– Ah sim, a esperança é a última que morre – zombou. – É bom que você tenha uma filha pequena, porque os netos vão demorar. Seu filho é esquisito, Anna Anatolievna, aceite. Ninguém vai querer ele. Vai acontecer que nem da última vez.

Eu queria muito saber o que tinha acontecido "da última vez" e que última vez fora essa, mas já tinha permanecido tempo demais no banheiro.

– Ah! Dobre a língua antes de falar do Pasha, isso é puro despeito porque ele não quis namorar aquela lambisgoia da sua irmã e...

– A minha irmã...

– Bom dia.

Isso fui eu, saindo do banheiro. E também foi Pavel, aparecendo na outra ponta do corredor. As duas mulheres que discutiam trocaram um último olhar de "Isso não acabou" e se calaram, cada uma com mais ar de dignidade.

– Yulia Mikhailovna, se importa se eu passar na sua frente? – Pavel pediu, tranquilo. – Estou com o tempo um pouco apertado para chegar no trabalho.

Ela acenou em direção ao banheiro, sem olhar para Pavel, e ele se trancou lá, lançando-me um pequeno sorriso divertido ao passar por mim.

– Vamos, Mashenka, antes que o chá esfrie – e eu segui Anna Anatolievna, embora soubesse que o chá não poderia ficar mais frio que o tom dela, enquanto ela jogava o pano de prato sobre o ombro e um último olhar para a oponente, abandonando o corredor.

A conversa na mesa do café da manhã foi capitaneada por Ivan Petrovitch, e embora sua esposa ainda resmungasse de si para si, irritada, a refeição transcorreu tranquilamente. Pavel claramente herdara o temperamento do pai. Nós não demoramos a partir, já que ele pretendia me deixar em meu ponto de encontro com os colegas antes de ir para seu próprio trabalho.

– Ah, vocês foram mandados para o Komsomol – o rapaz observou, ao ler o endereço no papel que me tinha sido entregue na ELI. – Acho que você vai trabalhar com o Ióssif – disse. – Ele andou mesmo comentando algo sobre tarefas extras.

Pavel estava com a razão. No Komsomol, vi-me novamente de frente com o fã de Ostap Bender, que também me reconheceu e me recepcionou com um sorriso e um aceno de cabeça, quando me viu entre os colegas para quem ele designava as tarefas diárias a partir de uma lista datilografada.

Ele concluiu as designações e se voltou para mim, com uma sobrancelha erguida. Todos partiam, e eu me sentia na aula de educação física do primário de novo, sempre a última a ser escolhida. Ou acabava fazendo dupla com a professora, o que, ao que parecia, estava prestes a acontecer mais uma vez.

– Pois bem, Camarada, como você se chama agora, mesmo? Ah sim, Elizavieta. Camarada Elizavieta, perdoe-me aqui a atrapalhação, mas tenho que confessar que é a primeira vez que me mandam uma garota – ele disse, erguendo as mãos em sinal de impotência. – E ainda por cima, sem manual de instrução. Brincadeira. Em parte. Não me disseram para onde eu devia te enviar, não me disseram sobre nenhum, na verdade, mas, veja bem, sempre posso mandar os rapazes carregarem pedra – ele encolheu os ombros.

– Também posso carregar pedra – eu disse, cruzando os braços. Ióssif apenas deu uma risadinha. Uma risadinha que me irritou profundamente.

– Não, tenho uma ideia melhor. Eu preciso fazer algumas vistorias, verificar se está tudo certo com alguns empreendimentos prontos para serem entregues. Você vem comigo, e, enquanto isso, posso praticar meu português.

Eu não tinha, realmente, escolha. E o programa também não me parecia ruim. Era interessante saber por que testes de qualidade passavam os edifícios, para assegurar que era possível às pessoas habitar neles. Ióssif pegou umas pastas, me entregou alguns envelopes, e acenou para que eu o seguisse.

Nós saímos do prédio do Komsomol, mas, em vez de nos encaminharmos ao ponto de ônibus, adentramos um carro oficial, que Ióssif parecia bem orgulhoso em dirigir. Enquanto tagarelava sem parar sobre coisas sem importância, ele ia me instruindo a respeito da minha tarefa, então eu tinha que prestar dupla atenção para não perder alguma instrução importante no meio da baboseira.

– ...não precisa escrever nada, realmente, basta fazer uma cara séria e fingir que está anotando. Olha, olha isso! – ele gritou, gesticulando com raiva, quando teve que frear repentinamente para evitar atropelar uma velhinha que cruzava a rua. – Por que ela não olha para os dois lados? Depois a gente passa por cima, e ainda temos que enfrentar a polícia. É justo, isso? E às vezes eu vou olhar para você com ar grave e acenar, e você apenas levante as sobrancelhas, faça cara de preocupação, essas coisas. Caviar a esse preço? Uau, preciso lembrar de voltar aqui depois! Que rua é essa? Eu também posso falar coisas meio sem sentido, uns termos técnicos, você não precisa entender, apenas responda com outras palavras difíceis e tal.

Era bom que eu não precisasse entender, porque não estava entendendo nada. Logo paramos em frente ao primeiro prédio a visitar. Logo mesmo – Ióssif guiava a uma velocidade que eu duvido que a polícia teria aprovado.

A edificação que nos aguardava era rosada, de dois andares, espalhada e cheia de portas. Parado junto a uma delas estava um homenzinho de óculos que me lembrou vagamente Tabanov.

– Bom dia, Camarada Fiscal! – ele gritou, correndo para nos encontrar e apertando a mão de Ióssif efusivamente, com ambas as suas. – Senhorita – ele me cumprimentou com um toque no chapéu, e voltou novamente a atenção para meu chefe temporário. – Acredito que o senhor vá gostar muito do que foi feito por aqui. Os rapazes trabalharam com o maior afinco... Mas vamos entrando, vamos entrando!... Não, por aqui – ele me pegou pelo braço e tirou-me do arco pelo qual eu ia passando, conduzindo-me e a Ióssif para a entrada principal.

Afora um resmungar indistinto em resposta ao bom-dia, Ióssif não dissera nada, e assim permaneceu enquanto percorríamos as várias salas e corredores do andar inferior, com o homenzinho – que eu descobri ser o engenheiro responsável – explicando a função de cada sala.

O prédio em questão era uma creche. A construção de várias estava em andamento, para que as mulheres pudessem ter onde deixar seus filhos, enquanto se dedicavam à indústria. Já era a terceira que aquele engenheiro entregava esse ano, pelo que eu pude entender. E ele parecia bem ansioso, por algum motivo. Gaguejava um pouco, e não parava de enxugar as mãos no terno.

Percorremos quase todo o prédio, e Ióssif ainda sem dar uma palavra, apenas olhava tudo detidamente, e com ar sério. Eu ainda tentava rabiscar algumas coisas que o engenheiro dizia, quando ele olhava para mim com cara de "essa informação é relevante, anote moça". O lugar era meio que um labirinto. Salas de tamanho médio, interligadas por corredores, e com várias saídas diretas para a rua, pelo andar de baixo. Cada sala devia comportar umas cinco crianças, no máximo. "Uma questão de saúde e higiene", ressaltou o gêmeo perdido de Tabanov. "Você não pode colocar muitas crianças numa sala só. É praticamente a receita para uma epidemia". O andar de baixo funcionaria como jardim de infância – havia um pátio interno com um playground – e no andar de cima ficavam o refeitório e as salas da creche. "Em sua plena capacidade, o lugar deve atender quarenta crianças!", concluiu o homem, não sem uma ponta de orgulho.

– Então você constrói praticamente uma mansão para abrigar apenas quarenta ticos de gente? – foi a primeira manifestação de Ióssif, num tom reprovador.

O engenheiro empalideceu. Sua resposta saiu ainda mais gaguejada.

– M-mas... eu usei o projeto padrão... aprovado em Moscou – balbuciou. Ióssif bufou pelo nariz.

– Eles lá em Moscou não conhecem nossa realidade – retrucou. – As mulheres continuam parindo, e se a gente ficar usando esse tanto de espaço para cada creche, daqui a pouco vamos ter que começar a construir em cima dos rios. Você sabe que o Czar Pedro já fez isso, né? E sabe o que aconteceu? Aposto que você sabe o que aconteceu, você é engenheiro...

– O que aconteceu? – eu sussurrei, curiosa como se estivesse ouvindo uma radionovela de suspense. Ióssif olhou de mim para o engenheiro.

– Conte para ela – estimulou.

– Pessoas morreram – disse o homem. – Há lendas que dizem que a cidade foi construída sobre os ossos dos que trabalharam nela – ele narrou, pouco à vontade. – Embora o czar não tenha construído exatamente em cima dos rios. Apenas o terreno é pantanoso e não muito favorável.

– É exatamente o meu ponto, exatamente! – exaltou-se Ióssif, sacudindo os braços no ar. – Não há tantos terrenos favoráveis aqui para você desperdiçar um... assim! A administração municipal vai ter que saber disso.

– Não! – exclamou o homem. – Certo, eu... eu prometo que da próxima vez vou dirigir um questionamento a Moscou sobre se podemos adaptar o projeto. Deixemos essa como está. Por favor. Eu preciso entregá-la depois de amanhã, e os papéis têm que estar todos regulares.

– Olhe, eu não sei... – Ióssif cruzou as mãos atrás das costas, com ar hesitante. – Como poderemos te confiar outro projeto, se...

– Eu juro que vou me adaptar.

Ióssif olhou para ele, pensativo.

– Passe no meu escritório amanhã à tarde. Vamos dar um jeito nisso.

– Ah, muito obrigado, muito obrigado Camarada Siberianov. Não vai se arrepender. Da próxima vez garanto que faço tudo certo.

Depois desse ajuste, Ióssif voltou à sua normalidade tagarela, e se despediu do engenheiro em termos amigáveis. Seguimos para mais um prédio a vistoriar. Aparentemente estava planejado para ser um hospital, e ainda estava em construção. Dessa vez Ióssif falou sem parar com o mestre de obras, criticou os rapazes que não usavam o equipamento de segurança, e ameaçou denunciar todo mundo no sindicato. Mais um encontro foi marcado para a tarde seguinte.

– Ah, se não fosse por mim, nada saía direito nessa cidade – ele suspirou alto, quando paramos para almoçar, numa cantinazinha à beira do Fontanka.

– Achei que você fosse apenas supervisor dos construtores do Komsomol – eu comentei. – Que você ia fiscalizar apenas como eles estavam sendo tratados ou o que estavam fazendo, coisa assim.

Ióssif ergueu os olhos brevemente do seu prato de borsch.

– Justamente – comentou, tranquilo. – Eu tenho que zelar pela segurança deles, e não tem noção de quantos encontro sem equipamento de segurança, em todas as vistorias. Além disso, preciso saber o que andam construindo. Não vou liberar construtores perfeitamente saudáveis para projetos esbanjadores de engenheiros idiotas – concluiu, com um pequeno sorriso.

Fazia sentido. Talvez. Voltei a me concentrar no meu prato, enquanto Ióssif continuava a falar, agora sobre o tempo. Aparentemente ia chover. Teríamos que terminar as vistorias mais cedo. Ninguém merece pisar no meio de cimento mole. Não tinha quem limpasse os sapatos depois.

– Amanhã – ele falou, por fim, ficando sério – eu tenho algumas reuniões, como você viu, e a minha secretária vai me ajudar com elas. Ela já tem mais experiência. Então precisamos de outra função para te ocupar. Tem alguma ideia, algo que gostaria de fazer? Talvez ajudar a arrumar uns arquivos de projetos...

– Na verdade – arrisquei – eu estava pensando em um contato mais direto. Qualquer um pode organizar arquivos.

– E qualquer um pode empilhar tijolos. Mas se é isso que você quer, não tenho problema em te enviar para algum prédio em andamento – ele deu de ombros. – Só tome cuidado com a roupa – acrescentou, indicando minha saia com o queixo. – Os rapazes já estavam olhando hoje, e isso que você apenas passou me acompanhando. Não quero ser acusado por nenhum incidente, depois, compreendido, señorita?

Eu girei os olhos, mas acenei que sim.

No período da tarde visitamos um prédio residencial de dez andares em que estava ocorrendo a instalação elétrica. O responsável por essa obra era um homenzinho bigodudo e baixinho de macacão, aparentemente já conhecia Siberianov e se dava bem com ele. Não houve necessidade de marcar reunião para o dia seguinte dessa vez.

A última obra do dia era outra creche. Nela, Ióssif criticou o engenheiro pelo tamanho exíguo dos ambientes. "Se uma criança espirrar aqui, outra fica doente daqui a três salas. E depois, quem é que dá conta de tratamento de saúde para essa criançada toda?", tempesteou.

Eu não tinha o melhor dos sensos de espaço e proporção, mas podia jurar que essa creche era praticamente igualzinha à outra que visitáramos de manhã, com a única diferença que era verde, e a fachada, mais sóbria. Mas o que eu sabia? Não era arquiteta, engenheira, nem nada.

Limitei-me a anotar o nome desse engenheiro também, com a indicação "17 horas" ao lado, e pensar muito sobre o assunto de noite, na pensão, enquanto procurava em minha bagagem a roupa mais adequada para trabalhar no pesado no dia seguinte.

Havia algo de podre no reino da Dinamarca.

E algo ainda mais esquisito no Komsomol de Leningrado.

***

Notas:

1. Devushka — a garota, a moça, a menina.

2. Kto? — Quem é?

3. Fontanka é um dos rios principais que cortam São Petersburgo (Leningrado).

4. Czar Pedro — Pedro I, o Grande. Czar russo famoso por sua tentativa de europeizar a Rússia. Quase causou uma guerra civil ao determinar que todos os nobres raspassem suas barbas (que para eles era sinal de honra) ao modo europeu, sob pena de pagar multas elevadas em caso de desobediência. O epíteto "O Grande" vinha tanto dos seus atos ambiciosos quanto da sua altura: ele tinha mais de dois metros, divergindo muito da média de altura da época. Construiu São Petersburgo para trazer a capital do país para mais perto da Europa, removendo-a de Moscou. Existe uma lenda que diz que a cidade foi construída sobre ossos, porque centenas de milhares de camponeses empregados à força na construção da cidade teriam falecido durante a construção, devido às suas péssimas condições meteorológicas. A História confirma que durante os primeiros anos de construção da cidade (1703-1717) houve emprego de mão-de-obra forçada; sobre os mortos, a soma total com registro em documentos é de aproximadamente 5000 mortos, durante todo o período da construção.

5. Criei uma playlist com a trilha sonora de #Marvel. Ainda está em composição (eu sempre acabo adicionando coisas nas minhas playlists), mas já tem algumas músicas que me lembram os dois. Ela está disponível no LINK EXTERNO.

6. E fiquem com a ilustração do capítulo :3

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