– Eu só queria que ele soubesse que foi sem querer – lamentou-se Jaime, pela quinquagésima vez nas últimas duas semanas.
– Ele sabe, Suarez – eu consolei, mecanicamente.
– Até por que – a voz áspera de Silo complementou – você precisaria ser habilidoso e sortudo para fazer aquilo de propósito. E visivelmente você não é.
Jaime fechou a cara, e José Maria riu do comentário, enquanto mergulhava um pedaço de pão na sopa. Ludmila baixou a xícara de chá.
– Se quer saber, acho que ele deve estar até gostando de um tempinho livre da gente – ela falou, secando a boca com um guardanapo.
Jaime pareceu ter finalmente se convencido. Por agora. A ladainha seria repetida pelo menos mais uma vez antes de irmos dormir. Como agora era a penitência da hora do jantar, não era difícil prever sua próxima frase:
– Se eu pudesse pelo menos fazer alguma coisa para ajudar... mas ele não quer me ver nem pintado de ouro!
– Posso entender as razões dele – rosnou Ramón, lançando um olhar de esguelha a Jaime, apesar de, a essa altura, já estar sem a tipoia havia um bom tempo.
O momento que sucedeu o acidente na aula foi bastante confuso. Eu não reajo tão bem a sangue – devia ter pensado nisso antes de pensar em virar revolucionária profissional? Provavelmente – e então me voluntariei para ir correndo atrás do motorista do furgão que nos trouxera. Era um homem grandalhão e bem tranquilo. Ele e José Maria deram conta de transportar Astrakhanov, enquanto Silo, Suarez e um dos chineses amparava Ramón. Os dois foram colocados deitados no chão do veículo, e o restante de nós se acomodou em volta.
O tenente deu a chave do barracão ao outro chinês e mandou que guardasse as armas ("Com cuidado, por favor!"), missão em que ele foi auxiliado pelo italiano e pelo búlgaro. Quando eles voltaram, retornamos ao colégio numa pressa sensata, isto é, numa velocidade rápida, mas não a ponto de provocar outro acidente. Por mais que ainda estivesse pálido e que seu rosto demonstrasse dor ocasionalmente, Astrakhanov não parecia incomodado de ter todas as atenções das três garotas da turma em si.
Quando chegamos à enfermaria, o susto diminuiu um pouco. O ferimento de Ramón era bem superficial, e colocaram seu braço numa tipoia por precaução. "Um rapagão forte desse", disse a senhora enfermeira, "vai cicatrizar num instante. Você vai até ficar mais resistente depois, vai ver só. Levar um sustinho de vez em quando faz bem para o coração".
Com Astrakhanov já foi um pouco mais complicado. O tiro fora praticamente à queima-roupa, e a bala ficou alojada, mas felizmente não atingiu alguma parte crítica que pudesse roubar-lhe o movimento da perna. Recomendaram-lhe repouso por algumas semanas, todavia, e ele se afastou das aulas, passando quase o tempo todo em seu quarto.
Jaime estava olhando para mim, e eu sabia o que ele queria.
– Sim, eu levo. Mas você carrega até o prédio.
Esperei meu colega ir buscar um pote de sopa, e partimos todos juntos para o prédio-alojamento. A noite estava estrelada e até se ouviam grilos, cantando os rumores da primavera. O chão ainda estava recoberto pela lama dos derretimentos, e o vento ainda soprava gelado, por isso Jaime escondeu o prato debaixo da aba do sobretudo, entregando-me a marmita somente quando já estávamos no nosso corredor.
– Eu não quero ser expulso, Clarinha – ele falou, queixoso. – Interceda por mim, vai.
Já tínhamos tido essa conversa antes, mas ele pegaria os resultados da sua autocrítica no dia seguinte, então era natural que estivesse especialmente nervoso naquela noite.
– Não vão te expulsar – tornei. – Se quisessem, já teriam feito isso no primeiro dia. Você tem testemunhas de que foi um acidente. Além disso, não é Astrakhanov quem toma essas decisões.
– Certo, mas não custa nada conquistar a proteção.
"Custa o meu tempo precioso", eu poderia ter respondido, mas fiquei quieta. No fim das contas, fazer companhia a Astrakhanov não era tão chato.
Revirando os olhos para Jaime, que ficara me espionando da entrada do seu quarto, fui bater na porta de Astrakhanov, e logo ouvi um "Entre".
– É sopa de quê, hoje? – ele perguntou, sem erguer os olhos das palavras cruzadas que respondia.
– É schtchi – eu respondi, destapando o prato e sentindo o odor de repolho invadir meu nariz. – E ele mandou kvas também.
– Ora, não é que está aprendendo?
Eu arrumei sobre uma bandeja que estava na escrivaninha o prato, o pão e a bebida que cheirava a um misto de cerveja e vômito, e transportei-a para a parte do quarto além do biombo, onde Astrakhanov estava, sentado em uma poltrona, com a perna esticada em cima de uma cadeira.
Ele colocou o jornal de lado e pegou a bandeja, apoiando-a no colo e atacando a refeição extra. Eu me sentei na cama, observando-o comer, quieta.
Era esquisito ver Astrakhanov à paisana e sem o cabelo lambido. Não parecia ele. Não parecia o tenente, o professor, mas uma pessoa normal. Que tinha vida fora da ELI, inclusive. Acho que eu nunca tinha pensado nisso a sério.
Astrakhanov ergueu os olhos, incomodado com minha observação silenciosa.
– Tem carta para você – ele anunciou, numa óbvia tentativa de desviar minha atenção e poder comer em paz. – Do garoto. Está na minha escrivaninha.
"O garoto" era Pavel, e deveria soar engraçado ouvir Astrakhanov, que era mais novo, chamá-lo assim. Curiosamente, soava era adequado. Mesmo para mim, que conhecia os dois pessoalmente, enquanto que Astrakhanov julgava só pelas cartas.
Idade é mesmo um estado de alma.
Obviamente a menção da carta de Pavel conseguiu o que pretendia. Apressei-me para a escrivaninha que, para alguém tão metódico como Astrakhanov, era lamentavelmente bagunçada. Papéis de todos os gêneros estavam empilhados e misturados sem qualquer ordem aparente, alguns enfiados dentro de livros ou revistas, e por cima de tudo havia uns farelos de pão, herança dos dias em que ele vinha se alimentando no quarto.
– Em que parte dela? – perguntei, numa última tentativa de evitar me embrenhar naquele caos documental. Astrakhanov encolheu os ombros, e eu suspirei, voltando a atenção para a mesa.
Tirei primeiramente os livros e revistas, empilhando-os em um canto. Depois comecei a separar os papéis em pilhas. Telegramas, cartas para revisar, cartas recebidas – nenhuma para mim, de início – e autorizações e demais documentos da escola. Levantando uma requisição de viagem de trem, dei com um retrato. Uma moça de rosto redondo, olhos e cabelos claros, e boca pintada encarava o espectador com ar autossuficiente e levemente desconfiado de dentro da moldura. Era bonita, e via-se que tinha consciência disso.
– É sua noiva? – perguntei. Astrakhanov ergueu os olhos do prato, para ver do que eu estava falando.
– Sim.
– Como se chama?
Houve silêncio.
– ...você não sabe o meu nome verdadeiro, por que eu te diria o da minha noiva? – ele falou, por fim. Virei-me para ele, incrédula.
– Sério?! De que essa informação me serviria, se eu fosse uma espiã? – questionei. Astrakhanov me fitou com ar soturno.
– Não sei, poderiam sequestrá-la para me afetar.
Girei os olhos para o teto e voltei minha atenção para a escrivaninha, colocando o retrato no lugar.
– Elvira – ouvi, então, num sussurro doce que destoava da voz habitual do tenente. Fui obrigada a olhá-lo novamente, para constatar que suas bochechas estavam rosadas, enquanto ele remexia na sopa.
– Você gosta bastante dela – afirmei, tranquilamente. – Como se conheceram?
– Bem, estudamos juntos no Instituto de Línguas Românicas antes de eu entrar para o exército – com a resistência vencida, ele mergulhou nas reminiscências de bom grado, e em voz baixa. – Eliusha estudava francês, disse que queria ser como as moças chiques de antigamente – "Isso explica o casaco de peles na foto", pensei. – Não é uma ambição muito saudável do ponto de vista do novo regime, mas Eliusha é uma garota romântica, vive pensando nos bailes do Czar e essas coisas. A pobrezinha – ele riu – não se dá conta de que, se vivesse naquela época, nem francês poderia estudar. E o mais próximo que chegaria do palácio seria para esfregar as escadarias, se tanto.
Astrakhanov continuou a falar sobre sua namorada sonhadora e um tanto contrarrevolucionária, sem perceber que meu interesse no assunto já havia se dissipado. Deixei-o seguir com a divagação, enquanto voltava minha atenção para a mesa, em busca da carta de Pavel, que, pelo jeito, devia estar escondida embaixo de tudo. Continuei separando os papéis mecanicamente nas pilhas, até que meus olhos bateram no meu nome em um bolinho de folhas presas por um clipe. Catei o documento e comecei a lê-lo, espantando-me cada vez mais com o conteúdo.
Era a minha ficha de admissão. Continha meus dados pessoais – todos que se imaginar – junto com a minha autobiografia resumida, que eu escrevera na delegacia em São Petersburgo, ao registrar minha entrada no país, e ainda algumas avaliações posteriores do meu desempenho. Astrakhanov devia ter pegado o arquivo para elaborar uma nova avaliação.
Os comentários dos professores iam desde "Brilhante" do professor de história da Revolução e "Com muito esforço, tem salvação" da Bruntieva, até um "Demonstra perniciosas inclinações trotskistas", do instrutor de Organização do Partido, que me fez arregalar os olhos. Continuei folheando as páginas distraidamente, ainda matutando sobre por que o Partorg teria me considerado trotskista, até que me deparei com algo ainda mais intrigante.
Algumas folhas de papel ofício continham uma colagem com uma correspondência completa em telegramas cifrados, em francês. Não, os códigos do Komintern não me eram familiares, mas eu tinha certa habilidade com códigos, e aquele não foi difícil de quebrar.
Tratava-se de uma negociação entre o Partido Comunista Brasileiro e a ELI. O assunto? Meu envio.
Mais especificamente, o envio de uma moça qualquer, para preencher a cota obrigatória de mulheres, que deviam corresponder a vinte e cinco por cento dos alunos enviados. E parece que o Brasil já estava com dívida nesse quesito. Argumentaram. Não havia nenhuma moça no nível exigido. O Partido se beneficiaria muito mais do envio de outro camarada... Moscou bateu pé. Mulher ou nada. "Vocês já não nos mandam indígenas; precisamos manter a diversidade na composição".
E então o PCB cedeu. "Bom, temos uma aqui. Tem instrução, sabe um pouco de russo. A origem é proletária, mas a profissão dela é pequeno-burguesa e não tem muita experiência de agitação. Serve? "
"Serve".
E lá estava eu. Não por méritos, não por insistência – minha, pelo menos – mas simplesmente porque eles precisavam mandar alguém. Serve? Serve.
As folhas caíram todas das minhas mãos, desordenadamente. Eu dei as costas para o tenente, que já estava falando sozinho havia uma boa meia-hora, novamente distraído pelas cruzadinhas, e saí correndo do quarto, deixando a porta aberta.
– Liza, o que houve? – ouvi a voz de Astrakhanov, enquanto eu deixava o recinto. – Lizavieta!
Marchei direto para o quarto dos meus colegas brasileiros, e dessa vez abri a porta sem bater, nem cogitando a possibilidade de que algum deles estivesse se trocando. Por sorte, não estavam.
– Vocês sabiam?
José Maria ergueu os olhos de um livro, Jaime, de uma meia que cerzia, e Silo afastou o travesseiro da cabeça. Olharam para mim com caras de pateta, e eu sustive o olhar.
– ...que o sabiá sabia assobiar? – arriscou Jaime.
– Argh, será que você pode deixar de bancar o palhaço pelo menos uma vez? – adentrei o quarto, irritada, batendo a porta atrás de mim. Me coloquei entre duas das camas, de braços cruzados. – Vocês sabiam ou não que eles só me mandaram para cá para preencher uma cota feminina obrigatória? – pressionei.
Os três se entreolharam com aquele ar de "Hmmm" que as pessoas têm quando já conversaram entre si sobre algum assunto que acabou de ser mencionado.
– Então foi por isso... – José Maria soltou.
– Faz sentido – Silo adicionou. – Faz bem mais sentido.
– O que faz sentido? – rosnei, me irritando ainda mais por não entender as observações. Se eu descobrisse que eles estavam de alguma maneira envolvidos naquelas negociações, juro que eu ia distribuir uns tapas para aliviar a raiva que sentia da direção do Partido.
Eles pareciam sentir essa minha disposição, e se entreolharam mais uma vez, sem coragem para responder minha pergunta. Ergui apenas uma sobrancelha, e Jaime limpou a garganta.
– É que a gente estava imaginando o motivo de você ter sido enviada...
– Sabe, havia camaradas com mais experiência, você não pode negar – José Maria complementou, como que se desculpando.
– Bem, enfim, discutimos sobre isso e concluímos... nós achávamos que você...
– Achamos que tinha conseguido a vaga por ser amante de alguém da liderança – Silo cuspiu tudo de uma vez, me encarando. – Cogitamos o Miranda, mas você não é o tipo dele, então nossas apostas eram o Fernando de Lacerda, ou alguém de São Paulo. Afinal, você é de lá.
Sim, eu fiquei sem reação. Meu queixo caiu levemente, e eu olhava de um para outro dos rostos sérios – os mais novos, com ar culpado – e minha cabeça se recusava a assimilar que aquelas pessoas, que liam jornais e proferiam discursos a favor da igualdade e libertação feminina, tinham suposto que minha admissão na ELI se devia a favores sexuais.
A cota para mulheres não parecia tão ofensiva agora.
Respirei fundo. Ergui o dedo em riste, mas, por um momento, as palavras ficaram engasgadas na garganta.
– Eu não precisaria fazer isso – sibilei, por fim. – Eu não queria precisar fazer isso, não aqui. Gostaria de um mundo em que não fossemos constantemente obrigadas a ficar provando e comprovando nossa capacidade para coisas que vocês... – a voz falhou. Dei dois passos para frente e enfiei meu dedo embaixo do nariz de Silo, que ainda me encarava com naturalidade – Ouçam bem. Quando voltarmos para o Brasil, sou eu quem vai estar levando as melhores avaliações, e vocês vão, sim, vocês vão me pedir desculpas.