Dias Vermelhos

By erikasbat

44.6K 6.9K 28.8K

Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 17 - Crítica e autocrítica

437 86 291
By erikasbat

Bom, ao que tudo indicava, nós não tínhamos chegado antes do toque de recolher.

Acontece que os colegas que eu havia escolhido para acompanhar eram dois irlandeses do Setor E, o setor de língua inglesa. E eles, até por uma questão cultural, tinham bebido mais do que eu. Suspeito inclusive que já chegaram à festa bêbados, especialmente considerando a limitação de vodca por lá. Tudo isso para dizer que eles não estavam dando a mínima para o horário e, provavelmente, eles foram os únicos que eu localizei porque também estavam atrasados.

Eu de fato não me lembro do que ocorreu naquela noite, mas, pelo que as testemunhas narraram, nós armamos um pequeno escândalo com o porteiro por não nos permitir entrar, e, de castigo, ele nos deixou esperando um bom tempo do lado de fora, até que um dos rapazes pulou o portão e foi chamar seu tutor ou algum responsável do Setor E, para que fossem forçados a abrir para nós. Fiquei agradavelmente surpresa com a minha própria sagacidade na parte do relato em que disseram que eu havia sumido antes de os responsáveis levarem os garotos para lavrar o registro da ocorrência.

Não que isso adiantasse muita coisa quando você morava na escola. Cedo ou tarde, acabariam me encontrando, e foi cedo.

Tudo isso me era relatado agora, a partir de um documento oficial e em tom casual, pelo próprio Tabanov, que viera à escola para o nosso julgamento, e estava sentado a uma mesa junto com diversas autoridades e líderes do Setor Inglês – dentre eles meu velho conhecido Jim Adams – e do Setor Latino-americano, diante das quais eu tremia em minha cadeira, colocada de maneira a encará-los.

Eu era acusada de participação em hooliganismo e de tentar escapar da disciplina, e tinha vontade de bater com a cabeça na parede por haver possivelmente posto a perder meu tão batalhado treinamento por causa de um maldito gole de vodca, pois não fora, realmente, mais que um gole. O que me dera na cabeça de aceitar, também? Se no Brasil eu não bebia nem cerveja!.. Não era adequado para meninas, dizia minha avó, e, na minha opinião, cheirava a vômito. Com um estômago tão abstêmio, eu devia ter previsto as consequências.

A sessão se dava a portas fechadas, e além de mim e dos julgadores, só Astrakhanov estava na sala, parado em pose militar junto à porta. Ele era corresponsável, como tutor do meu grupo, e pela cara, via-se que queria me matar. Cada um dos participantes no ato de baderna seria julgado em separado, e as testemunhas (basicamente o porteiro e um par de estudantes cujo quarto ficava perto e que alegavam ter ouvido a discussão) entravam, davam seu depoimento, e saíam novamente. Não tinham direito de ficar para assistir ao veredito.

Se eu pudesse, também não ficaria.

Forcei minha mente a voltar ao presente e sintonizar na voz suave do meu avaliador. Não se pode fazer uma boa defesa sem conhecer os detalhes da acusação. Pelo menos era o que costumava dizer o advogado do Partido, lá no Brasil.

– ...Temos de te dar um desconto por tudo isso ter acontecido nas comemorações do Dia da Revolução. Não posso pensar em um motivo melhor para se embebedar do que os rumos que a revolução tomou. Se fosse jovem e idealista, eu provavelmente me embebedaria também – ponderou Tabanov.

Antes que eu pudesse refletir nos possíveis sentidos dessa observação, ele emendou:

– Mesmo assim, temos que aprender que há outras formas de extravasar o contentamento, não é verdade? A arte, por exemplo, música, poesia. Esses outros divertimentos permitem manter o controle de si, e para um revolucionário de elite, isso é de suma importância.

Vi que toda a banca julgadora olhava para mim, provavelmente examinando qual seria minha reação àqueles comentários, e acenei depressa com a cabeça, concordando humildemente. Eles, ao que parece, ficaram satisfeitos, e Tabanov prosseguiu:

– Sabemos também que cada um de vocês carrega os vícios dos seus partidos, e por que não dizer, das suas culturas de origem. Mas o revolucionário é acultural, o proletariado transcende fronteiras, as fronteiras que o próprio capitalismo esmagou, ao nivelar as peculiaridades culturais e reduzir tudo a uma questão de lucros e rendimentos. Não há moral no capital, mas entre nós tem que haver, não acha? Se queremos nos tornar líderes de nações, é preciso que nos livremos de tudo que em nós é pequeno, especialmente o que é pequeno-burguês, como as farras e a preguiça.

Essas observações me causaram um incômodo um pouco maior. Primeiro, por estarem me julgando por um único incidente. Qualquer um que me conhecesse sabia que eu não era nem preguiçosa, nem dada a farras, aquilo fora meramente um deslize. Mas eu estava havia pouco tempo na ELI; talvez fosse justo me julgarem pelo deslize.

Mais que isso, porém, chateou-me a crítica à minha "cultura de origem". Isto é, certo que vivíamos num dos capitalismos mais desgraçados do mundo no Brasil, mas isso não significava que nós do Partido éramos influenciados por esse fator. Claro que, como primeiro país a implantar o Socialismo em larga escala, os soviéticos tinham muito que nos ensinar, e por isso mesmo eu viera estudar na Escola Leninista. Mas isso não lhes dava o direito de tratar a todos com aquele nível de condescendência.

Mordi a língua, contudo, e tentei controlar a minha cara para não revelar meus pensamentos, pois sabia que não teria nenhuma utilidade expressá-los no momento, e provavelmente apenas pioraria minha situação.

Poucas broncas – "conselhos" – depois, e eles finalmente saíram para deliberar minha punição. As palmas das minhas mãos estavam escorregadias de suor frio, e meu coração tinha entalado na garganta, mal deixando espaço para eu respirar. Advertência... suspensão... expulsão... "Não chore, você não vai chorar. Qualquer que seja o veredito, vai encará-lo com dignidade" eu me adverti. "E depois, no Brasil... bem, vou ter muito tempo durante a viagem para pensar", completei, encarando meu próprio colo, desconsolada.

– Shedritcheva – chamaram, da porta, e eu virei o rosto para lá. O Tenente Astrakhanov continuava de pé ali, e me fitava com um misto de raiva e pena.

– Hm? – fiz, não confiando em mim o suficiente para abrir a boca.

– Não é costume expulsar alguém na primeira infração – ele disse apenas, sem olhar para mim. Acenei que compreendia e agradeci mentalmente pela tentativa de me tranquilizar, mesmo que não tivesse funcionado.

Tabanov, Jim Adams e os outros voltaram para a sala e tomaram lugar à mesa novamente. Tabanov ficou de pé e pigarreou.

– Decidimos que, considerando seus bons antecedentes, que apenas contam com dois pequenos atrasos matinais, um pouco de crítica e autocrítica será suficiente para a solução desse caso – ele declarou.

Olhei-o com ar confuso; já tinha ouvido falar desse método de correção, mas minha cabeça não estava associando nada muito bem no momento. Além do nervosismo, havia uma pontinha de ressaca, não se pode esquecer.

– O método de crítica e autocrítica é aplicado por todo o partido bolchevique, não só aqui. É a melhor maneira, você não concorda? Dar à pessoa a oportunidade de refletir sobre seus erros e renunciar a eles, antes de partir para medidas mais severas. Afinal, somos todos seres racionais aqui e cada um sabe o que é melhor para si – Tabanov explanou.

– Mas em que consiste? O que eu tenho que fazer? – perguntei, quando a explicação que eu estava esperando não veio.

– A primeira parte já foi feita por nós. Você escutou todas as provas contra você, os testemunhos desabonando seu comportamento, e nossos esclarecimentos a respeito de por que esses comportamentos são prejudiciais, não só a você, mas também à sociedade. Pois bem, você deve refletir em tudo o que lhe foi dito, analisar seu próprio comportamento da perspectiva dos valores do comunismo, e daqui a dois dias, deverá nos entregar um relatório escrito, apontando seus erros, o que os causou, e como poderá corrigi-los daqui por diante.

Ergui as sobrancelhas. Aquilo parecia fácil demais para ser verdade.

– Só isso? – não pude deixar de perguntar, espantada. – E depois, o que acontece?

– Analisaremos seu relatório. Se nos parecer insincero, ou baseado em uma compreensão limitada do problema, lhe daremos mais uns dias para pensar, e terá que fazer um relatório mais aprofundado de forma oral, perante os estudantes reunidos.

Uma confissão pública! Soava um tanto quanto medieval, mas ainda era melhor que a expulsão. Eu anuí.

– E se ainda assim não for satisfatória minha conf... minhas reflexões?

– Bem... então teremos que reavaliar seu caso... e suas condições de integrar o corpo discente da Escola Leninista Internacional – ele falou com toda a suavidade que possuía, as mãos cruzadas atrás das costas, o que tornava mais sinistra a ameaça velada.

Eu engoli em seco, agradeci aos camaradas examinadores e, assim que tive oportunidade, me escapei dali. Astrakhanov ficou para trás, provavelmente levando uma bronca por minha causa. Seria bom evitá-lo pelo resto do dia também.

A sessão de disciplina estava transcorrendo em um dia livre, para não atrapalhar nossas aulas e os compromissos das autoridades julgadoras, o que para mim foi um alívio, porque a escola não estava tão cheia quanto nos dias ocupados. Apesar do frio, muita gente saía para conhecer a cidade, ou simplesmente na busca de uma mudança de ambiente, pois cansava ver as mesmas caras sempre, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.

Querendo me esconder até dos que tinham ficado, enfurnei-me na biblioteca. Eu tinha plena consciência de que minha façanha viraria motivo de fofoca imediatamente, pois já tinha participado de fofocas sobre as infrações de outras pessoas. É verdade que, graças à nossa carga de estudo, a biblioteca da ELI era bem mais frequentada que a maioria das bibliotecas escolares. Mas eu preferia encontrar vários estranhos a voltar para o quarto agora, e arriscar me deparar com Ludmila e Tatiana. É possível que não fizessem comentário, mas seria um clima estranho mesmo assim. Não ia dar a Ludmila o gostinho de me olhar com zombaria. Tratávamos uma à outra educadamente, mas sei lá por que, havia certa dose de antipatia entre nós. Quanto à Tatiana, sempre tão certinha e eficiente, eu nem teria coragem de encará-la.

Enveredei de imediato por entre as estantes, agarrando um volume aleatório das obras de Lenin antes de procurar uma mesa bem recuada para me instalar. Sentei-me e cobri o rosto com o livro, que por sorte era grandão, numa edição comemorativa impressa no ano passado em comemoração aos quinze anos da revolução. O cheiro de novo ainda exalava do livro, e eu enfiei o nariz nele, fungando sem piedade. Em seguida examinei o acabamento do tomo, acariciei a lombada marrom e as palavras em baixo relevo dourado, para só então olhar que livro era. Esquerdismo, a doença infantil do comunismo. Ótimo, bibliografia obrigatória. Nem desperdiçar tempo eu iria, veja só!

Tentei me absorver na leitura e até certo ponto consegui, mas de canto de olho podia ver as pessoas olhando em minha direção e murmurando. Costumavam murmurar em suas línguas pátrias, então eu dificilmente entenderia o que diziam, e talvez nem estivessem falando de mim... mesmo assim incomodava. Ser o centro das atenções era agradável, se você tivesse recebido um prêmio ou condecoração, mas essa atenção eu dispensava. Bufei, virando com violência uma página, e jurei para mim mesma que da próxima vez que uma rodinha de fofoca se juntasse ao meu redor, eu ia pensar duas vezes antes de escutar.

Depois de um curto espaço de tempo, decidi que mais valia a pena ir para o alojamento. Eu encontraria minhas colegas de quarto mais cedo ou mais tarde, e precisava voltar para escrever a bendita confissão, já que meu material estava todo lá. Apanhei o livro – não ia perder aquela edição linda – e o retirei com o bibliotecário, deixando o prédio principal do colégio na Rua Vorovskogo e iniciando o trajeto de cinco minutos até em casa.

Abraçava o livro na frente do corpo, como mais uma cobertura para o frio, e puxei o lenço do pescoço para cima da boina, suspirando de alívio quando minhas orelhas foram cobertas. Uma nevasca tinha caído havia pouco e aumentado a camada de neve, na qual minhas botas afundavam um palmo agora, atrasando a caminhada. A nevasca já tinha parado, mas o vento levantava os flocos de neve caídos, que se chocavam contra mim. A velha vontade de brincar na neve e rolar como criança voltou por um instante, mas o frio me dissuadiu. Só queria chegar logo e arranjar um jeito de tomar uma xícara de chá.

Estava pensando em com quem poderia conseguir um samovar emprestado quando ouvi passos atrás de mim.

Virei-me.

Ah, não.

– Shedritcheva – Ludmila pronunciou, à guisa de saudação.

Krasnaiêva.

Seria muita falta de educação sair andando na frente? Contendo um suspiro agastado, eu esperei que ela me alcançasse. Por um momento, lutamos lado a lado contra o vento e a neve, prosseguindo o caminho em silêncio. De repente, para minha completa surpresa, Ludmila me sai com essa:

– Achei que eles foram exageradamente severos com você.

Minha cabeça deu uma guinada que chegou a estralar o pescoço, enquanto eu a encarava com espanto e suspeita, buscando algum sinal de sarcasmo em seu rosto... Mas não havia. Ludmila não se surpreendeu com minha reação. Pelo jeito não era só eu quem sentia a antipatia que pairava como uma parede entre nós.

– Jovens precisam de diversão – ela justificou, dando de ombros. – Sei que eles querem que sejamos uma tropa de elite e coisa e tal, mas não adianta forçar, ou explodimos! – concluiu, incomodada.

Eu fiquei quieta um instante, digerindo o momento.

– Hm – comentei, sem saber se concordava com ela. Ou se estavam me testando, tudo era possível. – Obrigada pela solidariedade – finalizei, neutra.

Ludmila acenou com a cabeça, e chegamos ao alojamento. Ela não foi para o nosso quarto, e eu nem quis saber para onde iria. Também não queria pensar no que aquela manifestação de apoio significava. Seríamos amigas dali em diante? Dificilmente. Abandonei o livro de Lenin na minha cama, sentei-me à escrivaninha e afastei todos os pensamentos paralelos, me concentrando em escrever uma confissão decente para não ter que passar vergonha em público mais tarde.

Eu gostava de escrever. Na escola, me divertia compondo as redações que as professoras pediam, e cheguei a redigir vários artigos para as publicações do Partido, no Brasil, além de panfletos dirigidos à mulher trabalhadora. Mas quando sentei em frente àquela folha branca, era como se todas as ideias tivessem fugido repentinamente da minha cabeça, deixando apenas um grilo, que cricrilava no vácuo. Trinquei os dentes e me forcei a começar, de qualquer maneira. Três tentativas, todas rabiscadas rapidamente com insatisfação.

– Ok, o que há comigo? – rosnei para mim mesma, frustrada. – Qual a causa desse maldito bloqueio?

Fechei os olhos e, em meio a um profundo suspiro, um trecho do discurso de Tabanov voltou à minha mente: "...cada um de vocês carrega os vícios dos seus partidos, e por que não dizer, das suas culturas de origem". A revolta que tinha me invadido no momento em que ouvi isso pela primeira vez voltou com força total, e eu entendi que era minha indignação que não estava me deixando escrever.

Pequeno-burguesa, eu? Pois pelo contrário, era mais comunista que eles, se duvidar. Desde que tinha chegado à URSS, não era a primeira vez que ocorria o pensamento herege de que o Alto Escalão podia estar errando o alvo em algumas coisas. "Isso filha, vai pelo caminho de Trotsky! Pelo jeito está a fim de ser expulsa também, né?", a parte mais azeda da minha consciência resmungou, e eu resolvi dar ouvidos. Ser expulsa era algo que eu não podia suportar. Eu não lidava bem com reprovação, e, além disso, seria um prato cheio para alguns machinhos do Partido, que tinham sido contra o meu envio desde o começo. Pela minha honra e das minhas colegas, eu tinha que ficar na ELI e completar o curso.

Debrucei-me sobre o papel mais uma vez, decidindo encarar aquele texto como uma obra de ficção, e, para minha felicidade, ele fluiu. Posso ter exagerado no drama em um ou outro ponto, mas estava tudo bem, não esperariam menos do Setor Latino-americano. Empolguei-me, e já estava na terceira página de lamúrias humildes e arrastadas quando uma batida na porta me fez dar um salto.

– Shedritcheva? Está aí? – a voz de Astrakhanov anunciou o visitante antes que eu abrisse a porta.

– Sim – respondi, encarando-o brevemente; para meu alívio, o incidente da disciplina mais cedo não parecia tê-lo afetado.

– Cuidado com as más companhias – ele disse, severamente, me entregando uma folha dobrada.

Olhei intrigada para o papel, intrigando-me ainda mais quando não reconheci a caligrafia média e arredondada. As palavras, no entanto, me esclareceram o remetente sem que eu precisasse chegar ao final.

Era uma nota atribulada de Pavel, perguntando se eu tinha chegado à minha casa bem, e pedindo mil desculpas por não ter se oferecido para me acompanhar. Ele creditava tal descuido ao entorpecimento do raciocínio causado pela bebida. Aparentemente, Lucia tinha lhe dado uma bronca gigante tão logo eu saí por ter me deixado ir sozinha. Ele até havia saído atrás, mas eu já não estava em lugar nenhum, e sua consciência e preocupação o torturaram por todo o caminho de volta, tanto que ele não fora capaz de dormir no trem, e só se sentiria aliviado ao receber a resposta confirmando que eu estava segura.

Queria que Astrakhanov não estivesse mais ali me observando, pois não tenho certeza do que foi que expus no rosto enquanto lia. Dobrei o papel cuidadosamente e guardei-o no bolso da saia, e só então ergui o rosto para o meu supervisor. Céus, como eu odiava quando as caras daqueles russos ficavam ilegíveis! E como invejava, também!

– Não se preocupe, tenente, sei cuidar de mim mesma – retruquei, por fim, com frieza e dignidade. – E também sei assumir plena responsabilidade pelos meus próprios erros, não preciso atribuí-los à influência de outros. Quando sai o próximo correio? – perguntei, após uma pequena pausa.

– No próximo dia útil.

– Entregarei a missiva de resposta amanhã de manhã. Boa noite – disse, e fechei a porta.

Depositei a carta de Pavel aberta na mesa, ao lado do meu rascunho da confissão. As tarefas de escrita para aquela noite haviam se multiplicado. A inspiração para o dramalhão me abandonara com a interrupção, a carta me pusera agitada, e agora eu não sabia a qual dos textos me lançava primeiro.

Um ronco alto vindo da minha barriga decidiu por mim. Guardei rapidamente as duas folhas no bolso, pois não ia deixá-las expostas a olhos enxeridos, e rumei para o prédio mais distante, onde ficava o refeitório comum, em que deviam estar servindo o jantar.

Não é possível exercer a autocrítica de estômago vazio.    

***

Oi pessoal! Desculpa a demora para responder os comentários. Para quem não sabe, eu estou no fim de uma maratona suicida de escrita; me desafiei a escrever 70 mil palavras no mês de abril, no Camp NaNoWriMo, porque eu estava a fim de dar um gás neste livro, que estava mais ou menos parado desde novembro (entre dezembro e março escrevi apenas três capítulos). Está dando certo, tanto que hoje eu terminei a Parte I - e estou na maior sofrência, abraços são bem-vindos - mas não sobra muito tempo para mais coisa além do exercício das funções vitais. Prometo que respondo todos direitinho, e logo, até porque eu adoro ler vocês, e falta bem pouco para terminar a meta agora.

Esse capítulo acabou nem sendo revisado, então, se captarem alguma coisa estranha, podem me avisar. Um abração e bom fim de semana!

Continue Reading

You'll Also Like

O dono do morro By Teixeira

Historical Fiction

1.2M 46.1K 140
Olá chamo me mirella tenho 16 anos e vivo com a minha tia. Os meus pais morreram quando tinha 10 anos e desde ai moro com a minha tia no morro da roc...
46.8K 11.3K 200
PARTE 2 - CAPS 201 AO 400 Tradução Concluída !
29.2K 4K 47
Série irmãs Beaumont - Livro 3 Arabella é a filha mais nova das três princesas do reino de Beaumont, sendo considerada a próxima a se casar. Após ver...
61.1K 6.1K 35
𝐄𝐍𝐓𝐑𝐄 𝐓𝐎𝐃𝐎𝐒 𝐎𝐒 𝐂𝐀𝐒𝐎𝐒 𝐃𝐄 𝐃𝐀𝐄𝐌𝐎𝐍, ᵘᵐ ᵈᵉˡᵉˢ ʳᵉⁿᵈᵉᵘ ᵘᵐᵃ ᶠⁱˡʰᵃ, ᵉˢᵗʰᵉʳ, ᵘᵐᵃ ʲᵒᵛᵉᵐ ʳᵃⁿᶜᵒʳᵒˢᵃ. ᶜᵒᵐ ᵒˢ ᵃⁿᵒˢ ᵃ ᵉˢᵖᵉʳᵃⁿᶜᵃ ᵈᵃ ᵖʳⁱⁿᶜᵉˢᵃ...