Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 16 - A festa do Komsomol

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By erikasbat


Pavel despertava tudo o que havia de contrarrevolucionário em mim.

Esse pensamento reboava em minha cabeça culpada enquanto eu, tão produzida quanto permitiam os poucos produtos de beleza que eu possuía, me aproximava do prédio amarelado do TRAM, isto é, do Teatro da Juventude Trabalhadora. Talvez isso fosse uma dramatização exagerada da minha parte, afinal, eu estava indo a uma festa em comemoração ao Dia da Revolução, mas dera o azar de cruzar com a Major Bruntieva na saída, e a cara que ela tinha feito para a minha indumentária fez eu me sentir a mais fresca das burguesas.

Sim, falar em contrarrevolução era exagero. Mas não se podia negar que ele roubava parte da atenção que eu devia devotar somente a meus deveres políticos.

E essa pontinha remanescente de culpa, em vez de me dissuadir, parece que só dava mais sabor à perspectiva de encontrá-lo.

Parei na frente do prédio e o encarei. Tinha apenas dois andares, talvez três, se aquelas janelinhas de cima correspondessem a verdadeiras salas. O pé direito extremamente alto do segundo andar, todavia, fazia com que o edifício inteiro fosse alto. Naquele andar, além das colunas em estilo greco-romano e das amplas janelas, possivelmente ficavam as galerias do teatro. As grossas portas de madeira estavam fechadas para conservar o calor, mas abriam-se o tempo todo para deixar passar moças e rapazes entretidos nas próprias brincadeiras.

Aproveitei e entrei na rabeira de um grupo que passava.

Eu tinha vindo por conta própria, apesar de saber que mais algumas pessoas da escola compareceriam ao evento também. Ninguém que eu conhecesse o bastante para combinar de vir junto, mas tentaria procurá-los no local para ter alguma companhia na volta. Andar sozinha na rua altas horas da noite era meio arriscado para uma garota, e não é como se eu pudesse pedir a Pavel para me acompanhar dessa vez. Seria linchada por quebrar o sigilo.

O saguão de entrada já estava lotado, e eu esperei um bocado de tempo na fila para guardar o casaco. Havia muita gente jovem em Moscou, era tudo o que eu podia concluir ao tentar escapar do esmagamento, e tinham todos vindo à festa naquela noite.

Ignorando as escadas que levavam ao segundo andar e seguindo o fluxo da multidão, passei por algumas colunas e rumei à direita. Desci, então, dois conjuntos de degraus que davam acesso ao primeiro ambiente por onde o povo começava a se espalhar, permitindo ver (e respirar) melhor. Parecia uma espécie de vestíbulo, com pequenas poltronas para descanso e mesinhas com cinzeiros perto das paredes em alguns trechos. As poltronas já estavam todas tomadas e, não vendo nenhum rosto conhecido, eu segui para a próxima sala.

Dali, passei a um ambiente bem amplo, em que evidentemente se concentrava o grosso dos frequentadores do evento. Havia mesas com comida e bebida encostadas na parede oposta às portas. Apesar de estar com fome, não fui direto para lá. O chão era de madeira, de taco, e num dos extremos havia um palco baixo, em que agora um rapaz, provavelmente um estudante, declamava poemas em honra da Revolução. Atrás dele, um grupo de músicos tocava baixinho, fazendo somente um fundo musical para a declamação, provavelmente esperando a hora em que eles tomariam o primeiro plano.

A você,

Vaiada

Zombada pelos batalhões

A você

Ulcerada pela maledicência das baionetas,

Arrebatadamente alço

Acima dos amargos impropérios

Numa ode, um solene

"Oh"!

Oh, bestial!

Oh, infantil!

Oh, mísera!

Oh, grandiosa!

Com que outros nomes ainda te batizaram?

No que mais te transformarás, oh duas caras?

Numa construção harmoniosa,

Numa pilha de escombros?


Era poesia e, em que pese a dicção do declamador não ser das melhores, não poderia deixar de me atrair. Esquecendo, por um momento, a intenção de procurar Pavel ou até Lucia e Sveta, eu me aproximei do palco para escutar melhor.


Ao maquinista,

Coberto de cinzas de carvão,

Ao mineiro, que perfura massas de minério

Incensarás

Incensarás piedosamente

Glorificarás o trabalho humano.


As palavras eram interessantes e emocionadas, mas o que me impressionava no poema era a sua musicalidade, sua construção alternando na busca de um ritmo próprio. Senti alguém passar e parar atrás de mim, mas não dei atenção, enquanto assistia ao menino concluir sua apresentação.


E depois!

Gritaste como uma multidão bêbada,

O bigode de fanfarrão torcido na farolagem.

Com as coronhas lançarás almirantes grisalhos

Cabeça abaixo

Das pontes de Helsinque.

As feridas de ontem lamberás e lamberás,

E de novo eu vejo as veias abertas.

Para ti o pequeno-burguês lança um

"Oh, sejas três vezes maldita!"

E eu lanço o meu

Poético

"Oh, quatro vezes glória a ti, bendita!"


Eu aplaudia junto com os outros ao rapaz, que se curvava várias vezes para o público, quando escutei ao pé do ouvido.

– Ode à Revolução, Vladimir Maiakóvski.

Virei-me com um sorriso.

– Você conhece bem esse poeta – disse para Pavel, lembrando-me da vez em que ele citara outra criação de Maiakóvski. – Pelo jeito gosta dele.

Ele negou com a cabeça.

– Escuto esses versos todo ano, desde que era pequeno. Acho que poderia repeti-los de trás para frente. Além disso, ele anunciou o poema antes de você chegar – respondeu, indicando com o queixo o estudante que se retirava do palco, dando lugar a outros declamadores, para continuidade do sarau.

– Você me viu chegar? – questionei, surpresa, pois eu não o tinha visto ali ainda.

– Não, mas vi quando chegou aqui perto do palco. Estou aqui desde cedo, esperando que finalmente eles comecem a tocar – disse, apontando a bandinha atrás de um par de moças que fazia um jogral. – Aquela harmônica – e ele indicou o instrumentista bem no meio dos outros – é diferente do que estou acostumado a ver, quero saber como ela soa.

Encarei os músicos com a cabeça inclinada. Pela cara de tédio de todos eles, ainda havia mais algumas coisas na programação na frente deles. Disse isso a Pavel.

– Podemos ir comer um pouco, nesse meio tempo – sugeri.

Pavel pôs uma mão na barriga, como se, agora que eu tinha falado no assunto, ele houvesse percebido que estava com fome. Rumamos para as mesas, em silêncio. Guardamos silêncio por mais uns momentos, enquanto aplacávamos os protestos dos estômagos com bolinhos de cereja regados a chá e kvas.

– E então, o que está achando de Moscou? – Pavel perguntou, quando foi possível dar uma pausa na mastigação.

– Conheci bem pouco de Moscou até agora, na verdade – eu disse, tomando um gole de chá siberiano. Era gostoso. Menos as frutinhas que boiavam nele, como constatei, ao morder uma. – O treinamento toma quase todo o meu tempo – falei, brevemente, limpando a língua com um guardanapo para livrá-la dos restos da baga laranja, e torcendo que Pavel não fizesse maiores perguntas sobre "o treinamento".

Que, naturalmente, foi bem o que aconteceu em seguida.

– E então, como é esse treinamento? O que te ensinam? Há mais estrangeiros lá, ou você estuda numa classe com cidadãos soviéticos?

Encarei-o brevemente, requentando minha velha suspeita sobre ele ser parte do esquema de testes da ELI. Verdade que eu já tinha sido admitida, mas podiam querer saber se eu não romperia as regras de conspiração na primeira oportunidade. Pensei em como mudar de assunto disfarçadamente, para não ofender Pavel, mas como nada me veio à cabeça, fui direta:

– Não posso falar sobre isso, Pasha.

– Ah, tudo bem.

Ele voltou a atenção para a própria comida, e se serviu de uma pequena dose de vodca. Fiquei pensando se o meu corte tinha sido tão forte assim para ele precisar daquele consolo. Havia poucas garrafas daquela bebida por ali, e várias delas já estavam vazias; pelo jeito, tinha sido uma liberalidade da organização, já que se tratava de um feriado importante, a ser comemorado em grande estilo, mas não era intenção deles que ninguém saísse bêbado dali, causando rebuliços.

– Eu conheci apenas o percurso da passeata de hoje, e os prédios que cercam a Praça Vermelha – retomei a conversa, para mostrar que estava disposta a papear, só não sobre aquele assunto. – E os novatos da Juventude Comunista de Leningrado? Gostaram de Moscou? – perguntei, referindo-me ao passeio que ele disse que faria naquela tarde.

– Sim, bastante. A maioria nunca tinha estado aqui, e sabe como é, Moscou é impressionante, não se pode negar. Se não por nada, pela quantidade de gente que mora aqui. Até para os padrões de Leningrado, que também é uma cidade grande, Moscou é lotada.

– Verdade, isso eu também já pude notar. Tive impressão de que só na fábrica em que estou trabalhando, já tem mais gente do que eu me lembro de ter visto durante toda a minha infância – comentei.

– Você está trabalhando numa fábrica? – acenei positivamente. – Que legal. O que produzem?

Eu ia abrindo minha boca para responder "tecidos e roupas" quando, pela segunda vez naquele dia, uma voz familiar exclamou meu nome.

Só que meu outro nome, dessa vez.

Lucia veio gritando "Liza!" desde o outro lado do salão e pulou no meu pescoço, como se fossemos velhas amigas que há muito não se viam. Estava vestida de amarelo-canário, e algum produto chamativo destacava seus olhos puxados.

– Olá, Lucia, tudo bem? – cumprimentei, ao mesmo tempo fazendo uma careta de "Te explico depois" para Pavel, quando percebi que ele estava a ponto de repetir "Liza?" com cara de espanto. Uma pequena comitiva vinha atrás de Lucia, em ritmo normal. Sveta, o irmão dela, e um rapaz que eu não conhecia, alto, de olhos castanhos e cabelo castanho-avermelhado, cujas nuances rubras refulgiam à iluminação amarelada do salão.

– Tudo ótimo! Eu não te vi mais cedo no desfile; pensei que você e as outras duas viriam junto com a comitiva da nossa fábrica.

– Não, nós desfilamos com... a comitiva do instituto onde estudamos – eu expliquei por cima.

Lucia fez um ar de entendida, e trocou um olhar com Sveta, que me cumprimentou com um beijo no rosto. Ivan também me cumprimentou e em seguida me apresentaram ao quarto integrante do grupo. Stanislav, o marido de Lucia, como eu vim a saber com espanto – ela era tão destrambelhadinha que eu nunca a imaginaria casada. Mas o rapaz parecia um cara legal, pelo menos foi a primeira impressão. Eles também quiseram saber quem era Pavel, e eu o apresentei brevemente como "Um amigo de Leningrado".

Sveta corou ao apertar a mão dele, e eu senti uma pontada de ciúme, desejando poder apresentá-lo em termos mais íntimos que "um amigo", para afastar de vez a concorrência. Lucia, sempre ligada, pareceu ter reparado na minha reação.

Por sorte, a música havia começado, e era bastante dançante, então ela usou isso de pretexto para dar um jeito de arrumar a situação.

– A gente se vê mais tarde, então, Liza, que agora vou aproveitar para dançar. Desculpe, mas eu adoro essa música, não poderia deixar escapar a oportunidade. Se não nos encontrarmos novamente, conversamos na fábrica semana que vem. Beijos – e dando-me de fato um beijo rápido na face, à guisa de despedida, chamou – Vem, Sveta – e foi arrastando a amiga para o meio da sala, logo seguida pelos dois rapazes.

Eles não tinham dado quatro passos quando eu ouvi:

– Liza? – Voltei-me para Pavel, que me encarava com ar confuso. – De onde surgiu isso? – Suspirei.

– Certo. Digamos que aqui meu nome é Elizavieta Shedritcheva – ele ergueu as sobrancelhas, surpreendido. Juntei as mãos. – Você pode me chamar assim também, na frente deles? – Pedi. – Ninguém pode saber meu nome real. Tem tudo a ver com o treinamento, e, por isso, infelizmente eu não posso te explicar.

– Tudo bem – Pavel concordou, encolhendo os ombros, derrotado no assunto. – Que mulher misteriosa você se tornou – ele brincou, com um sorriso.

– Em essência sou a mesma, te garanto – disse, grata, e coloquei uma mão no braço dele. – Eles começaram a tocar, está ouvindo? Acho que podemos ir ver o detalhe da harmônica que você queria estudar, se não estiver mais com fome.

Pavel concordou, e nós voltamos para perto do palco, onde tivemos que ficar quietos, porque a altura da música não permitia uma conversa inteligível. Apesar disso, eu estava alegre. Uma, porque estava dependurada no braço dele, e apesar de ele não estar nem dando por isso, com os olhos pregados nos músicos, para mim, era bastante agradável. E também tinha outro ponto. Depois da controvérsia a respeito do meu nome, quaisquer dúvidas que ainda restavam quanto à participação dele nos testes ocultos da minha escola foram dissipadas. Pavel nada sabia sobre e nada tinha a ver com a equipe da ELI. Isso queria dizer que nenhuma das nossas conversas anteriores fora simulada ou encomendada.

Simpatizáramos um com o outro genuinamente, do fundo da alma.

Um sorriso, fruto desse pensamento, ainda me pairava no rosto quando ele me convidou para uma volta, dizendo-se satisfeito com o que tinha visto do desempenho da banda. Eu concordei de imediato, e rumamos para uma das portas do salão, passando ao vestíbulo, e dali por várias outras salas, até darmos num pátio interno com um jardinzinho, que ninguém poderia imaginar que existia no prédio, se o observasse da rua.

– Você já volta para Leningrado amanhã? – eu questionei, quando os sons da orquestra ficavam para trás, e apenas o ruído do vento nas folhas nos cercava.

– Sim. Ainda vou mostrar alguns monumentos para os rapazes, alguns lugares onde ocorreram batalhas durante a tomada do poder pelos bolcheviques, e de noite pegamos o trem de retorno – ele disse.

– Há tanto assim a ver em Moscou? – senti meus olhos se arregalarem, mas logo em seguida constatei a estupidez da pergunta. A cidade tinha quase oitocentos anos; óbvio que havia muito para se ver em Moscou.

Foi o que Pavel me disse.

– Mas, na verdade, era para termos terminado nosso programa hoje, e eles ficariam com o dia livre amanhã – ele contou, pondo uma mão atrás da cabeça, constrangido, ao confessar – Acontece que eu me perdi um pouco... Fiz um itinerário não muito prático, e acabou não dando tempo de visitar tudo.

Eu ri alto.

– Seu irmão não deve ter gostado disso – comentei.

– Ele pegou um bocado no meu pé – admitiu o rapaz. – Disse que eu vivo no mundo da lua, que só não perco a cabeça porque está grudada, esse tipo de coisa... Mas eu ainda sou o irmão mais velho, e ele tem que aprender a me respeitar.

– E você o deixou de castigo para isso? Não vi o Andriusha por aqui.

– Não – negou Pavel. – É que eles ficaram tão cansados depois do passeio que caíram dormindo como mortos. Nenhum aguentou vir à festa.

– Hm... Eu diria que você fez de propósito para não ter que bancar a babá esta noite – falei, com um sorriso esperto.

– Talvez... – Pavel respondeu, mas então se corrigiu, com um cômico ar infeliz. – Queria poder dizer que você tem razão, mas nesse caso Andriusha foi quem levou o ponto. Eu vivo mesmo no mundo da lua – ele sorriu, coçando a cabeça.

Tornei a rir, e me aconcheguei ao braço dele quando uma corrente de ar mais impetuosa nos atingiu, enviando-me arrepios por todo pedacinho de pele exposta. Eu nem havia percebido que ainda estávamos de braços dados, mas, agora que pensava no assunto, era provavelmente por isso que eu não estava sentindo toda a intensidade do frio que fazia ali fora. Uma vez consciente da proximidade, porém, não era decente eu permanecer nela, e o soltei, abraçando o próprio corpo e começando a caminhar entre os canteiros redondos, para que o movimento impedisse o congelamento.

Àquela altura do ano não havia mais flores, mal havia grama nos canteiros, na verdade, já que pouca erva sobrevivera ao primeiro congelamento, sendo logo em seguida afogada pela água proveniente do derretimento. Ainda assim, como não tinha muito mais o que se olhar naquele jardim, a não ser um par de bancos e o meu companheiro, concentrei-me em perscrutar os retalhos de solo nu e imaginar as flores que brotariam ali na primavera.

Pavel seguia um passo atrás.

– Bem, é uma pena que vocês já estejam indo embora – eu comentei, um momento mais tarde, recuperando o domínio da conversa. – Tivemos tão pouca oportunidade de conversar. É uma pena que a gente more em cidades diferentes, na verdade.

– Pelo menos moramos no mesmo país, e isso já é um avanço com relação a dois meses atrás.

Virei-me para ele com um sorriso.

– Mas há dois meses não nos conhecíamos, então a distância nem tinha como incomodar.

– Verdade, não é? E, no entanto, sinto como se fôssemos velhos amigos.

– Que coisa mais mística – eu comentei, num tom de censura brincalhona. Implicava por puro hábito, já que sentia o mesmo.

– A vida não tem graça sem um quê de misticismo – ele retrucou.

Nova ventania nos atingiu, e eu não pude mais disfarçar meu tremor de vara verde. Até o olhar distraído de Pavel podia perceber a pele dos meus braços toda eriçada à luz do luar. Eu devia ter pensado no clima, antes de comprar um vestido de mangas curtas.

– Você vai congelar – ele constatou, preocupado, e de imediato tirou o paletó, colocando-o sobre os meus ombros.

Homens eram privilegiados até no vestuário; tinham que deixar apenas o sobretudo no guarda-casacos, enquanto nós saíamos de lá em mangas de camisa, tudo por uma questão de estética. Naquele momento, porém, não expressei minha indignação contra o privilégio, apenas minha gratidão pela gentileza.

– Não tem de quê – ele respondeu. – Embora eu ache que talvez a gente devesse voltar lá para dentro – acrescentou, olhando por sobre o ombro com ar hesitante. – A tendência é a temperatura continuar caindo.

"E agora você está sem casaco, graças a mim", pensei. Ele não queria declarar isso diretamente, para não estragar o oferecimento, mas com aquela magreza toda, tinha bons motivos para ser friorento. Suspirei. Nunca fui muito de festa, desse tipo especial de aglomerado – embora outros aglomerados eu até apreciasse, como um bom protesto ou piquete – e preferia ficar conversando só com ele lá fora, mas tinha que admitir que o pedido era justo.

– Dê-me apenas um minuto para me preparar para outro possível ataque da Lucia – pedi.

– Ao que parece, ela gosta bastante da Liza – Pavel comentou, com uma nota irônica. Dei um leve tapa no braço dele, e pus um dedo na frente dos lábios, para indicar que ficasse quieto sobre esse assunto, antes de segui-lo de volta ao salão principal.

A previsão sobre o ataque de Lisa fora acertada. Mal adentramos o salão, e ela voou ao nosso encontro, com Stanislav tentando acompanhá-la, e insistiu, insistiu, insistiu até nos convencer a se juntar ao povo que dançava, em pares, e até alguns sozinhos – provavelmente os que tinham conseguido ingerir uma porção maior da vodca disponível.

Eu não lamentei, porém, a intervenção dela. Há diversões que só são possíveis em grupo, e há outras que, em grupo, ficam melhores. Lucia era bastante extrovertida, assim como Ivan, e com suas personalidades espontâneas e quase que tolamente despreocupadas, eles serviram como uma cola para integrar o grupinho, e estimularam todos a se soltar. Claro que uns goles remanescentes de vodca contrabandeados por Stanislav ajudaram a derrubar a timidez dos membros mais travados do grupo.

Eu posso ter tomado um gole também, então as memórias do restante daquela festa estão um pouco nebulosas. Lembro-me de rodopiar pela sala com Ivan durante uma música bem agitada, lembro-me de Sveta e Stas cantando a Internacional abraçados em cima de uma mesa, e de ter discutido com Pasha um particular da biografia de Engels a ponto de nossos ânimos ficarem exaltados, mas o que era exatamente o assunto, varreu-se-me da memória.

A última lembrança da noite era de mim mesma correndo pela rua atrás dos meus colegas da ELI – que reconheci por sorte e com dificuldade em meio à massa de gente –, agitando os braços no alto e torcendo para que ainda não tivesse passado o toque de recolher da escola, já que eu não fazia ideia de que horas eram.

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