Dias Vermelhos

By erikasbat

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Em 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-s... More

Nota Introdutória
Epígrafe
Capítulo 1 - Na estação de Leningrado
Capítulo 2 - Pavel
Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif
Capítulo 4 - Jantar com os Solinin
Capítulo 5 - Jazz e Fumaça
Capítulo 6 - A caminho de Moscou
Capítulo 7 - Os Compatriotas
Capítulo 8 - Novos Recrutas
Capítulo 10 - Como mandar o antigo regime pelos ares
Capítulo 11 - Epístolas não passarão!
Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem
Capítulo 13 - A canção da cripta
Capítulo 14 - Siglas Soviéticas
Capítulo 15 - O Dia da Revolução
Capítulo 16 - A festa do Komsomol
Capítulo 17 - Crítica e autocrítica
Capítulo 18 - O Mea Culpa
Capítulo 19 - O atrasado
Capítulo 20 - Ano Novo na Kommunalka
Capítulo 21 - Dedo no gatilho
Capítulo 22 - Favorecimento
Capítulo 23 - Sessão Plenária
Capítulo 24 - O artista
Capítulo 25 - Departamento de Fiscalização
Capítulo 26 - O Trio de Estilo Musical Indefinido
Capítulo 27 - Eliminatórias
Capítulo 28 - Noites Brancas
Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café
Capítulo 30 - O Couro Cabeludo
Capítulo 31 - Leningrado versus Moscou
Capítulo 32 - Boatos
Capítulo 33 - Olhos Negros
Capítulo 34 - O padre providencial
Capítulo 35 - Efêmero Idílio
Capítulo 36 - A Longo Prazo
Capítulo 37 - A Curto Prazo
Capítulo 38 - O Nosso Vojd
Capítulo 39 - E agora, Maria?
Capítulo 40 - Foi no mês de dezembro
Interlúdio
Capítulo 41 - O Falso Casal
Capítulo 42 - Naturalização
Capítulo 43 - No Transatlântico
Capítulo 44 - Chapéu Azul
Capítulo 45 - Os Gruber
Capítulo 46 - Galinhas Verdes Fritos
Capítulo 47 - Tropa de Elite
Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Capítulo 50 - Novas Nordestinas
Capítulo 51 - Provisório Permanente
Capítulo 52 - Remanejamento
Capítulo 53 - Camaradas ao Norte
Capítulo 54 - Viagem ao Centro da Caatinga
Capítulo 55 - Audiência Real
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras
Capítulo 58 - O Santo Revolucionário
Capítulo 59 - Pé-de-Valsa
Capítulo 60 - A Caravana
Capítulo 61 - O Manifesto do Caos
Capítulo 62 - O Império Contra-ataca
Capítulo 63 - Tudo que é sólido desmancha no ar
Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros
Capítulo 65 - Deslize
Capítulo 66 - Intervenção Militar
Capítulo 67 - Nada elementar
Capítulo 68 - Tribunal do Caráter
Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein
Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul
Capítulo 71 - Entre beijos e tapas
Capítulo 72 - Ninguém passará
Capítulo 73 - Riscando o fósforo
Capítulo 74 - O poder da caneta
Capítulo 75 - A ratoeira
Capítulo 76 - O baluarte ribeirinho
Capítulo 77 - Reestruturação
Capítulo 78 - Um bom motivo
Capítulo 79 - Fartura e fortuna
Capítulo 80 - Dor
Interlúdio II
Referências
Apêndice - Nomes Russos
Ceci n'est pas un CAPÍTULO
Aniversário de "Dias Vermelhos" + 10 curiosidades

Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional

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By erikasbat

Não devia faltar muito para o dia raiar quando chegamos ao nosso destino, apesar do cinturão cinzento que anunciava a aurora ainda não ser visível no horizonte. Eu, Silo e José Maria descemos do baú do veículo, atividade em que fui auxiliada pelo homem que o Camarada Tabanov chamara de Tenente Astrakhanov, e o furgão seguiu viagem, dirigido pelo outro militar e sumindo na distância.

Estávamos em frente a um prédio de dois andares de estilo antigo e cor indefinida àquela hora da noite, com várias janelas grandes interrompendo sua fachada. Astrakhanov pigarreou para chamar nossa atenção, e nós três olhamos para cima, onde se situava seu rosto. Pela primeira vez observei-o direito, o quanto dava à luz noturna: era jovem e magro, embora não tanto quanto Pavel; não era possível discernir a cor dos olhos pequenos, mas os traços do rosto eram agudos, o sobrolho carregado, e os cabelos curtos, claros. Ao perceber que tinha nossa atenção, ele discorreu:

– O Camarada Tabanov é o Supervisor Geral do programa de treinamento de estrangeiros. Ele representa o Partido e a Internacional, mas não estará presente acompanhando pessoalmente o seu treinamento, apenas analisará os relatórios periódicos que lhe serão enviados. Se necessitarem de alguma coisa, tiverem alguma dúvida ou requisição, deverão se reportar a mim – explicou. – Sou o representante designado do Exército Vermelho para acompanhar essa turma. Vocês terão outros oficiais militares como tutores, mas eu estarei presente durante todo o programa, num contato mais direto com vocês e seus colegas, avaliando os respectivos progressos. Inclusive também residirei neste prédio. Falando no assunto, é melhor subirmos, para que vocês possam dormir um par de horas antes que soe a campainha matinal.

Novamente ele partiu na nossa frente, abrindo a porta vermelha e subindo para o segundo andar. Do lado esquerdo do patamar havia duas aberturas, e nós entramos na primeira. Um corredor médio forrado com um tapete marrom surgiu diante de nossos olhos, quando o tenente ligou a eletricidade. Havia três pares de portas de cada lado, e uma ao fim do corredor, para a qual nosso guia apontou.

– Aquela é minha sala. Já sabem onde me encontrar, se precisarem. Agora, senhorita Linhares, você fica aqui – ele me disse, indicando a porta do meio do lado direito – e os senhores Meireles e Souza – ele conferiu algumas etiquetas coladas nas portas – aqui – disse, por fim, apontando para a porta mais próxima do aposento dele mesmo. Vocês pretendem ficar com os nomes propostos na ficha-modelo, ou gostarão de criar seu próprio pseudônimo? – perguntou.

– Para mim Elizavieta Shedritcheva está bom – eu disse, e ele pegou uma caneta do bolso e grafou esse nome na porta do meu dormitório, abaixo de dois outros.

– Eu gostaria de alterar o meu nome – José Maria falou, em voz baixa.

– Qual o problema com Serguei Popov – perguntou o tenente, espantado, e eu coloquei a mão na frente da boca para disfarçar o sorriso, enquanto Silo claramente mordia as bochechas para conter uma gargalhada. José Maria corou; pelo jeito preferia que o nome não tivesse sido repetido em voz alta.

– Apenas... não se adequa à minha personalidade – ele justificou, fuzilando Silo com o canto do olho.

– Bom, certo. Como quer se chamar, então?

– Qualquer coisa, Ivan Ivanov, pode ser.

– Já temos um Ivan aqui na turma.

– Tem que ser nome russo? – José Maria perguntou então, agastado. – Minha língua já deu um nó tentando pronunciar o nome dela – e apontou para mim. Astrakhanov olhou com ar inexpressivo de um para o outro dos nossos rostos.

– Bem, não... Não precisa – respondeu, por fim.

– Então me chama de Felício.

– E muda o meu para José... José Mendoza – pediu Silo, aproveitando a oportunidade, e entregando a Astrakhanov o passaporte falso em nome de Miguel Borges, que utilizara na viagem, para não deixar rastros.

– Certo – escolheu o tenente, escrevendo os nomes na porta do quarto deles e num caderninho que tirou do bolso. – Vou providenciar a confecção dos seus documentos. Amanhã de manhã, quando se apresentarem aos seus colegas de quarto, já devem dar os novos nomes, assim como aos tutores das disciplinas. O alarme soa às cinco e quinze da manhã. Vocês têm meia hora para se aprontar, e rumamos para outro ponto da cidade, a aproximadamente vinte e cinco minutos de caminhada daqui, onde são ministradas as aulas teóricas. O café da manhã é servido entre 6:15 e 6:55 no refeitório, que fica no mesmo prédio, e as aulas começam às sete. Amanhã, todavia, vocês devem me esperar no pátio às sete horas, pois assistirão à palestra inaugural sobre as regras e objetivos do treinamento, passarão pela primeira vistoria, enfim, serão introduzidos ao programa. As suas aulas, efetivamente, começarão após o almoço, que acontece no mesmo refeitório, entre doze e treze horas. Boa noite.

Sem outros cumprimentos além de um aceno de cabeça, o Tenente Astrakhanov se recolheu à sua sala.

– Vamos, Serguei, vamos dormir – chamou Silo, jocosamente. José Maria voltou-se para ele com uma careta furiosa.

– Você esqueça essa história.

– Mas nunca! Nem vou te deixar esquecer – e ele soltou uma gargalhada, enquanto José Maria grunhia um boa noite para mim e um xingamento para Silo e entrava no quarto. Silo acenou para mim com um sorriso, e o seguiu.

Eu entrei no meu quarto também, então. Nem sombra do conforto do hotel Nacional, mas também não era tão amontoado quanto o quarto da pensão. Havia três camas enfileiradas na parede mais distante da porta, e em frente a elas, um armário sóbrio. Também havia uma escrivaninha à esquerda da porta. Não pude distinguir muito mais graças à escuridão que reinava no quarto.

Pessoas ressonavam em duas das camas, e para não acordá-las com a luz do corredor, eu logo cerrei a porta e me arrastei para o leito livre. Empurrei minha mala para debaixo dele, descalcei as botas e me deitei de casaco e tudo. Acreditava que seria atacada por insônia pelo curto resto da noite, devido à pluralidade de acontecimentos do dia anterior que chamavam para uma meditação, mas me enganei; o cansaço corporal foi mais forte, e em instantes eu me juntava ao coro das ressonantes.

Aquele apito vinha de todos os lados, de cima, de baixo, de dentro de mim, e eu me sentei assustada na cama, sonhando que eu era Anna Karenina e o trem vinha na minha direção. Meus olhos se arregalaram e eu virei a cabeça em todas as direções; quando finalmente meu cérebro assimilou a informação de que não havia trem nenhum, me dei conta das outras moças que olhavam espantadas para mim, uma delas ainda esfregando os olhos puxados – chinesa, certamente. A outra tinha cabelos cor de palha, lisos e médios, mas não consegui identificar de pronto sua nacionalidade. O espanto no rosto delas não era à toa; quando foram dormir, a terceira cama estava vazia, e acordavam com uma louca berrando nela.

Sorte que eu não corava fácil.

– Bom dia, Camaradas – cumprimentei-as do modo mais neutro possível, como se nada tivesse acontecido. – Eu sou Shedritcheva, Elizavieta Nikolaievna.

Elas acenaram compreensão, plenamente cientes de que aquilo era um nome de guerra, e apresentaram os seus.

– Sossiedkina, Tatiana Andreievna – disse a chinesa.

– Krasnaiêva, Ludmila Ivanovna – completou a mais distante.

Teríamos, talvez, outra ocasião para conversar melhor, e de qualquer forma eu não queria papo logo agora; preferia que se esquecessem de mim e da primeira impressão bizarra que eu devia ter-lhes causado. Então pulei da cama, abaixando-me perto da minha mala e procurando roupas decentes que pudesse usar naquele primeiro dia, até que nos fornecessem uniformes.

Não sabia há quantos dias elas já estavam ali, mas as segui sem medo para fora do dormitório, após arrumarmos as camas, porque com toda a probabilidade deviam ter um senso de direção melhor que o meu.

Ao sairmos para o corredor, encontramos os homens deixando seus respectivos quartos também, e "Tatiana" juntou-se aos dois chineses, enquanto "Ludmila" se aproximava de um homem com traços eslavos, visivelmente seu conterrâneo. Seguindo o exemplo delas, reuni-me a Silo e José Maria, que bocejavam, esfregavam os próprios rostos e davam-se tapinhas, com clara dificuldade em despertar de fato, embora Silo tenha se queixado:

– Aquela maldita campainha está furando até agora os meus ouvidos. Desde o quartel que eu não ouvia algo assim, nem sirene de fábrica é tão alta.

Outros jovens de feições variadas saíram do segundo corredor, e mais alguns se juntaram ao grupo no andar de baixo, vindos de outros dois corredores e de uma porta debaixo da escada, que dava para um terreno ao lado. Foi um grupo de umas quarenta ou cinquenta pessoas que deixou para trás o prédio avermelhado – agora já estava clareando para eu poder discernir a cor – e desceu a longuíssima Rua Guertsena, virando à direita nas proximidades de uma igreja e seguindo por outro longo e reto caminho até nosso destino.

Andando atrás dos demais, e sendo por eles observados com mal disfarçada curiosidade, eu e meus conterrâneos trocávamos algumas observações casuais em português sobre qualquer assunto que surgia, num velho hábito nacional de preencher o silêncio, quando se está em grupo. O olhar de alguns de nossos colegas continha até certa hostilidade ou impaciência, então nos calamos depois de algumas fuziladas.

Chegamos a outro prédio antigo de dois andares, dessa vez rosa claro e com janelas mais discretas e uma porta de madeira bem estreita. A cantina, que ficava no porão do prédio, era composta de dez mesas retangulares e um balcão voltado para elas, atrás do qual estavam algumas mulheres de touca que serviam estudantes provenientes de uma fila. Como era nosso primeiro dia e ninguém estava a fim de se destacar negativamente logo de início, tínhamos chegado bem cedo, e ainda havia poucas pessoas no salão.

Eu e meus colegas de turma pegamos bandejas e nos postamos organizadamente no final da fila. Quando chegou minha vez, a primeira servente colocou um prato com duas panquecas abertas na minha frente, e um potinho com uma colher de uma espécie de nata; a mulher seguinte me entregou uma tigela de mingau de aveia; da terceira recebi um pedaço de pão preto e outro de queijo; por fim, chá, e me encaminhei à mesa em que meus compatriotas tinham se instalado.

José Maria já devorava o pão preto avidamente, mas Silo encarava com suspeita o mingau de aveia. Troquei um olhar com ele; aquilo realmente não parecia apetitoso. Encolhendo os ombros para mim, como a dizer "Bem, é o que temos para hoje!", ele começou a comer, e eu o imitei. Mimado pelos pãezinhos recheados da noite anterior e pelo borsch denso da mãe de Pavel, meu paladar se queixou de início, mas eu o obriguei a se calar; sabe-se lá que raízes amazônicas eu poderia ter que comer quando a Revolução estourasse de fato no meu país. Não havia lugar para frescuras burguesas nos meus hábitos alimentares.

Enquanto comíamos, alto-falantes instalados nos cantos do refeitório transmitiam a programação matinal da Rádio Pan-Soviética, com as ordens diárias do Partido e do Comandante Stálin, notícias sobre os avanços na cidade e no campo, e também um pouco de música.

Novos estudantes chegavam a cada minuto. O refeitório não demorou a se encher; logo estava tão lotado que eu tive certeza, sem precisar perguntar, que a cantina era a única e utilizada por todos os estudantes, dos diversos, blocos, setores e turmas da Escola Leninista Internacional.

Apesar de haver estudantes de diversos países, como se podia depreender do exame de suas feições, a confusão de línguas que eu esperava ouvir não soava; todos estavam concentrados comendo. Não era muito longo o tempo disponível para completarmos a refeição e chegarmos às aulas, conforme constatei pelo grande relógio atrás do balcão, ladeado por cartazes motivacionais sobre a importância da pontualidade. Logo meu grupo se levantou, quase simultaneamente, levando as bandejas para o lugar indicado para seu depósito, e seguindo para o pátio, onde devíamos esperar o Tenente.

Não demorou cinco minutos até que ele aparecesse, nos cumprimentasse brevemente, e, para nossa surpresa, saísse para a rua. Voltamos sobre nossos próprios passos na direção do alojamento, mas dobramos à esquerda na metade do caminho, e andamos ainda um bom pedaço, até alcançar mais um prédio de dois andares, dessa vez mais amplo e amarelo.

O Tenente abriu as portas duplas, que davam para um vestíbulo, com uma recepção ainda vazia para a qual ele arqueou uma sobrancelha, antes de acenar para que o acompanhássemos por uma escadaria ampla. Adentrando uma das portas que se abriam para o patamar, nosso grupo teve acesso a um grande auditório, com uns quinhentos lugares. As colunas dóricas, as cadeiras estofadas em material semelhante a veludo vermelho, e outros detalhes decorativos evidenciavam que o local não era usado somente para palestras, mas também para celebrações e outros eventos importantes volta e meia promovidos para todos os estudantes.

No momento, o silêncio reinava no local, e também entre nós, talvez amolecidos pelo sono, os estômagos cheios, e refreados pela falta de intimidade uns com os outros. O tenente nos conduziu para a primeira fileira em frente ao palco, e nos sentamos ali, aguardando sabe-se lá o que.

Dentro em pouco, um homem e uma mulher em alinhadíssimos uniformes militares surgiram no palco. O homem se postou atrás de uma tribuna; a mulher ficou parada um pouco recuada, em postura rígida e respeitosa.

– Bem-vindos, jovens revolucionários! – ele nos cumprimentou com empolgação. – É sempre com satisfação e orgulho que eu recebo cada nova turma, e gostaria de possuir equipamentos cinematográficos à minha disposição para registrar para a posteridade as faces daqueles que deixaram para trás o calor de seus lares, por amor a seus povos e nações, para vir aprender a construir-lhes um futuro! Aqueles que, muito provavelmente, nesses lares são mal compreendidos, talvez até perseguidos, enfrentam agruras, mas não desistem. E essa persistência, meus caros, eu gostaria de dizer, um dia lhes trará a vitória!

O gesto imponente com que ele concluiu essa fala introdutória – um braço e erguido e os olhos poeticamente perdidos no horizonte – pedia uma salva de palmas, que a mulher parada atrás dele e o tenente iniciaram para nos dar a dica. Quando as palmas cessaram, o orador remexeu em seus papeis e pigarreou, assumindo um ar mais casual:

– Nós estamos aqui para lhes ajudar a alcançar esses objetivos. Ao deixarem a escola, vocês estarão prontos para subverter as estruturas capitalistas que escravizam seus respectivos povos, e construir novas sociedades do zero. Vocês sairão daqui transformados em uma elite revolucionária, especialista no Marxismo-Leninismo, vigilante, disciplinada, e comprometida com o bolchevismo, despindo pelo caminho qualquer vínculo com as apodrecidas tradições social-democráticas que se apegam ao inútil reformismo. E, naturalmente, como são grandes os objetivos, grandes também deverão ser os esforços para alcançá-los.

Ele fez uma pausa, tomando um gole d'água de um copo sobre a tribuna.

– Acima de tudo espera-se dos senhores disciplina e dedicação. O respeito à hierarquia é fundamental para o bom funcionamento do programa, e igualmente para as vossas futuras atividades revolucionárias. A observância das regras da instituição é de extrema importância, e a cada violação correspondem punições exemplares, a respeito das quais os senhores serão de antemão informados.

Dito isso, ele passou a enumerar as regras e respectivas punições. Parte delas girava em torno do sigilo, como Tabanov já havia ressaltado para nós no dia anterior. Não podíamos revelar a ninguém os objetivos da escola, a localização da escola, seu programa, seus códigos, e nem mesmo sua existência. Não deveria haver conexão entre nossas vidas reais e as novas identidades que assumíamos ali dentro. A comunicação com o mundo exterior – exceto nas tarefas delegadas pela própria direção da escola, como os empregos que nos arranjariam mais tarde – deveria ser restrita, especialmente no que dizia respeito ao que tínhamos deixado para trás nos países de origem. Cartas só podiam ser enviadas em número limitado, nas datas pré-determinadas, e pelos canais oficiais da instituição.

Isso me fez pensar em Pavel: ele não era meu familiar, será que me deixariam escrever-lhe? Bom, eu resolveria essa questão em outro momento; agora precisava prestar toda a minha atenção para não perder as informações sobre os horários e turnos de trabalho interno, já que não comparecer pontualmente aos compromissos também acarretava penalidades.

Concluindo seu discurso, o homem nos apresentou a mulher que permanecera o tempo todo parada atrás dele em posição de sentido, e agora deu um passo à frente.

– Esta é a Professora Major Vera Bruntieva. Ela leciona as disciplinas de Fabricação de Explosivos e Manutenção e Conservação do Armamento, que são as primeiras aulas dos senhores esta tarde. Desejaríamos apresentar todo o corpo docente, mas eles estão ocupados, dando aula para as demais turmas ou em suas atividades externas. A Major Bruntieva e o Tenente Astrakhanov agora conduzirão uma vistoria pessoal em vocês, a fim de identificar pontos individuais sobre os quais deverão trabalhar no programa físico, e recolherão os dados necessários para a preparação dos uniformes. Eu preciso me retirar para uma reunião com os dirigentes dos setores. Desejo a todos boa sorte e imensos progressos – e, fazendo uma pequena reverência, ele recolheu seus papéis e se retirou, sob nova salva de palmas.

Como uma estátua que ganhasse vida com a ausência do orador, a Major Bruntieva desceu do palco pela escadinha da frente e, com um rápido aceno de cumprimento, disse-nos:

– Acompanhem-me até a sala de vistoria.

Para tanto, nós deixamos o anfiteatro e cruzamos o patamar em direção a uma sala pequena e vazia que ficava bem ao lado, sem janelas e com apenas duas portas na parede dos fundos, com símbolos de masculino e feminino, que eu pensei que eram banheiros.

A um comando do tenente, nos alinhamos em posição de sentido. A professora, que era uma cabeça maior que eu, e proporcionalmente larga, começou a andar na nossa frente com ar severo, examinando-nos de cima abaixo, enquanto falava:

– De nada adianta que a cabeça esteja cheia dos postulados do Partido, que vocês possam recitar o Manifesto Comunista de trás para frente, se não estiverem fisicamente preparados para sustentar uma revolução, e a construção de uma sociedade após ela. Seus braços precisam estar prontos para carregar armas e companheiros feridos, e para erguer paredes logo após, suas pernas têm que ser capazes de percorrer longas distâncias sem desfalecer, e atingir alta velocidade em caso de fuga necessária dos agentes do Capital. É preciso, também, dar grande importância à higiene, à alimentação correta e ao sono regulado, porque esses hábitos nos conservam a saúde, e sem saúde não se faz nada. Mens sana in corpore sano, já diziam os gregos, ou romanos, nunca sei. E, ademais, também devemos nos livrar de tudo o que toma nosso tempo em demasiado, que é supérfluo – e ela parou onde estávamos nós, as três mulheres da turma. – Não há lugar para vaidade na Revolução. Vocês vão ficar se enfeitando como bonecas enquanto seus colegas morrem na luta? Acabem com isso – disse, levantando a mão da moça de cabelos claros, e exibindo suas unhas compridas e pintadas – e com isso – acrescentou, puxando minha longa trança, erguendo-a também à altura dos meus olhos. – Um cabelo nesse comprimento não é nada prático – censurou-me. – Quanto tempo perde com ele todas as manhãs? Corte-o o quanto antes!

Eu avermelhei por completo por causa da bronca, fiquei abrindo e fechando a boca como um peixe, sem conseguir formular uma justificativa ou sequer uma confirmação de que eu obedeceria, ainda mais em russo. Para minha surpresa – e eu poderia dizer que para a surpresa da major, também – o Tenente Astrakhanov saiu em minha defesa:

– Não! – ele exclamou, em tom arrastado, lamentoso. – Para quê fazer isso? São cabelos tão bonitos, não há necessidade – sob os olhares espantados de todos, ele saiu de seu lugar ao canto, onde tinha estado em silêncio até então, e postou-se ao lado da Major Bruntieva, tomando a ponta da minha trança da mão dela. – Se ela prender assim, veja, não vai se enroscar em nada, nem pesar – falou o tenente, pegando minha trança e enrolando-a em volta da minha cabeça, ao modo camponesa alemã ou algo parecido.

Vera o encarou com ar ultrajado, pegando minha trança de volta da mão dele e soltando-a com um bufo.

– Camarada Tenente! – ela vociferou, com toda a dignidade que conseguiu reunir – Faça suas sugestões aos moços, das moças cuido eu! O senhor há de convir que, entre nós dois, eu entendo bem mais sobre ser uma mulher revolucionária, não é verdade?

– Bem, sim, mas... não vejo como o cabelo poderia afetar de fato o treinamento, e deve ter dado trabalho para deixar crescer...

– Justamente, este é justamente o meu ponto! Gastar energia com vaidades é um luxo de que a mulher admitida nesta escola deve se despir, em prol de maiores objetivos.

– Eu corto – eu consegui pronunciar, finalmente, antes que a batalha de olhares entre eles tomasse proporções mais sérias. Lancei, todavia, um olhar agradecido ao rapaz; no fundo, me doía um pouco ter que me separar da longa trança, que eu mantinha apesar de já estar fora de moda. O cabelo era uma das poucas coisas de que eu me orgulhava na minha aparência, e realmente dera trabalho para deixar crescer.

Vera sorriu, vitoriosa. O que ela dizia fazia certo sentido, eu é que não ia deixar a vaidade atrapalhar meu treinamento. Além disso, eu teria que acatar as ordens dela cedo ou tarde, e, se ela quisesse, faria o próprio Astrakhanov raspar o cabelo, pois estava acima dele na hierarquia militar.

Astrakhanov deu de ombros e voltou ao seu lugar. Vera continuou sua marcha, tecendo um comentário aqui, outro ali sobre a barba ou os dentes dos rapazes, e continuando seu discurso sobre a necessidade de domar o corpo. Vencida essa etapa, mulheres e homens foram separados e liderados pelos dois militares para as portas no fundo da sala, onde devia se dar o exame despido, ao estilo dos recrutamentos militares, e a tomada de medidas para os uniformes.

– Gostaria de acompanhar-me para dar palpites também nessa parte, Camarada Astrakhanov? – alfinetou a Major, e ele apenas a ignorou, entrando na frente dos rapazes na sala masculina.

Na saleta seguinte, em que havia somente uma balança, apetrechos de medir, e uma garota sentada numa cadeira com cara de tédio – porque, naturalmente, não seria uma major quem tiraria as medidas pessoalmente – ficamos só de roupa de baixo e nos submetemos aos procedimentos.

Passei por mais um pequeno constrangimento ao constatar que eu era a mais pesada das três, apesar de ser também um pouquinho mais alta, com meu metro e sessenta. Para minha surpresa, não levei bronca. A major disse que as outras é que precisavam ganhar um pouquinho de massa, ou "acabariam voando, como queriam segurar uma metralhadora com aqueles braços de graveto?", e falou que, ao fim do treinamento, nosso peso provavelmente seria mais alto, devido ao aumento de massa muscular.

A palestra do orador tinha sido realmente longa, mais do que nos demos conta, pois, ao terminarmos a inspeção, já estava na hora do almoço, e voltamos ao refeitório, acompanhados dos dois militares. Professores e a equipe – com exceção apenas dos mais graduados – também almoçavam lá.

No almoço nos serviram algo mais substancial e saboroso que o café da manhã. Eram três pratos – uma salada, uma sopa quente e grossa, e frango com batatas – regados a chá preto e um suco estranho chamado mors, e tínhamos direito até a um bolinho de maçã, de sobremesa. Após comer, voltamos para o alojamento, onde fomos liberados por quinze minutos para fazer a higiene bucal. Devíamos nos encontrar em seguida no pátio, onde o transporte nos pegaria para levar ao local da nossa primeira aula, Fabricação de Explosivos.

– Shedritcheva – me chamaram, quando eu ia entrando no prédio do alojamento na rabeira dos demais, e eu quase que não me viro; já tinha esquecido meu pseudônimo. Todavia, seguraram meu ombro, para me impedir de seguir caminho.

– Oh, desculpe, Tenente – eu disse, quando percebi quem era, batendo continência, pois não sabia de que outra forma devia reagir. Ele fez uma careta risonha para o meu gesto. – Quais são as ordens?

– Encontre Mendoza e Felicio – ele instruiu, e eu tive que buscar pela memória um instante antes de associar aqueles nomes aos meus colegas brasileiros. – Vocês três devem passar na minha sala, antes de descerem. Precisam assinar os documentos o quanto antes, para que sejam finalizados hoje mesmo. E tragam suas malas – o rapaz completou.

– Nossas malas? – eu repeti, intrigada, olvidando a instrução sobre não questionar ordens, que pelo jeito eu ainda haveria de olvidar muitas vezes, devido às minhas profundamente arraigadas curiosidade e desconfiança.

Mas qual era o sentido daquela ordem? Seríamos expulsos, já? O que tínhamos aprontado, meu Deus, conversado demais de manhã e irritado os colegas, talvez? Essa teoria não fechava, porém, com a ordem anterior; não nos fariam documentos com a nova identidade se já estivessem a fim de nos expulsar...

Por sorte ou por azar, o Tenente já tinha me ultrapassado e subido a escada; nem ouviu minha pergunta. E a mim não restou nada além de especular o que ele poderia querer com nossas bagagens àquela altura do campeonato.

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