Voltei a interagir com meus colegas de cabine somente na hora em que trouxeram alguma comida, e depois, quando nos aproximávamos do destino, quase às dez da noite, quando Jim Adams me perguntou se eu tinha instruções sobre para onde devíamos ir em seguida.
– Recebi ordens de me apresentar diretamente no Komintern – falei, um pouco surpreendida de que eles devessem me acompanhar também após a viagem. Bem, mas se iam a Moscou para fim de treinamento, isso era normal; nós estrangeiros provavelmente seríamos todos recebidos num só pacote.
– Você tem o endereço?
– Claro – e de novo eu estranhei; por que não o tinham também?
Qualquer especulação nesse sentido se provou sem utilidade, todavia, já que, tal como ocorrera em Leningrado, na estação em Moscou havia alguém nos aguardando, com uma plaquinha. Um homem baixinho, calvo, de óculos e com um ar simpático, que se apresentou como Iliá Abramovitch. Ele foi igualmente gentil ao carregar minha mala para mim, deixando a de Carol para Adams transportar. Durante todo o caminho ele narrava, empolgado, as melhorias promovidas na cidade naquele ano, como a linha de trólebus, às vésperas da inauguração, e os avanços tecnológicos programados para os anos seguintes, como o metrô, atualmente em construção.
– E prédios, também estamos construindo muitos prédios – ele continuou a relatar. – É verdade que as pessoas ainda têm que compartilhar apartamentos com outras famílias, mas logo cada um terá seu próprio cantinho – anunciou, nitidamente feliz. – Todos temos que fazer sacrifícios agora, em prol dos grandes resultados. É uma questão de paciência.
Carol, que vinha caminhando com Adams logo atrás, emitiu um nítido barulho de descrença. Sem reparar nisso, Iliá prosseguiu com suas ponderações empolgadas.
– Sabe, faz sentido para mim a atual estratégia do Komintern: construirmos aqui o mundo do futuro, mostrar como o comunismo é positivo, para que as outras nações queiram fazer igual, vocês não pensam assim? – ele questionou. – Desse modo não impomos a revolução a ninguém. Os próprios povos olharão e pensarão "nós podemos construir isso também", e tudo acontecerá naturalmente, como o cumprimento da História... – ponderou o homenzinho, com um sorriso sonhador.
Eu tinha que confessar que essa proposta de transição razoavelmente unânime – e, quem sabe, até pacífica – agradava minha alma, e simpatizei imediatamente com Iliá e seu otimismo e disposição pacifista. Mas parte de mim guardava a lucidez, a ortodoxia partidária, a memória dos conflitos que estouravam em meu país e da ideologia lá dominante, e eu sabia que não havia chance – ao menos para o Brasil – de que o comunismo fosse implantado sem revolução. E uma revolução com grandes chances de ser sangrenta, pois toda vez que o povo se levantava com reivindicações, o governo – monarquista ou republicano, não importava – vinha com mão de ferro e esmagava impiedosamente até o último opositor.
Não falei isso para o pobre Iliá, todavia, para não derrubá-lo do cavalo muito bruscamente. Sorrindo de volta, sugeri com sutileza:
– Não tenho certeza se será suficiente... porque os governos dos países capitalistas vão tentar impedir que as pessoas vejam os avanços que se consegue aqui. Propaganda e tal.
Iliá concordou gravemente, mas não pareceu muito abalado por isso.
– Sim, claro, faz parte da luta pela sobrevivência do capitalismo agonizante... e a tendência é que essa luta se torne cada vez mais agressiva. Eles colocarão todos os seus instrumentos de controle social em ação... Mas chegará um momento que a glória da União Soviética não poderá mais ser ocultada, nem com toda a força da propaganda. Só temos que ser pacientes e trabalhar com afinco – sentenciou, parecendo pronto a pôr em prática ele mesmo esses planos.
– Esse tempo ainda está bem longe – comentou Carol, num ceticismo azedo. – Já viu o preço da comida atualmente?
Lancei um olhar para a americana por sobre o ombro, desconfiada. Qual a razão de tanto ceticismo? Será que ela era uma agente secreta a serviço do capital? O meio em que circulávamos estava infestado deles, embora, claro, ninguém soubesse quem eram, até que fosse tarde demais. Ou até serem pegos. Sacudi a cabeça para livrá-la das suspeitas. Uma agente secreta de verdade não daria tanta bandeira de inconformidade com o sistema. A menos que essa atitude rebelde fosse um disfarce... o mais perfeito disfarce...
Forcei-me a me concentrar na conversa geral novamente. Iliá, concordando com ar concessivo e um pouco triste, justificara:
– Sim, verdade, mas o que se pode fazer se as colheitas foram ruins? É uma fatalidade...
Carol ia abrir a boca para dizer mais alguma coisa, mas Adams calou-a com um olhar de alerta. Ele emendou, apaziguador:
– É um país bem grande, muitas bocas para alimentar. E também demanda uma administração de ponta levar os recursos de um canto a outro, antes que estraguem. Pelo menos vocês não têm crise econômica por superprodução – brincou, numa ironia amarga.
Iliá voltou-se para ele, preocupado:
– Como estão as coisas em seu país, atualmente? – perguntou.
– Mal – respondeu o mais jovem, com sinceridade. – É fato que passamos o último semestre aqui, mas quando deixamos a América, não havia sinais reais de melhora para a vida da população em geral – declarou, fazendo meu ouvido retinir, ao chamar o país pelo nome do continente. Segurei firme – Muita gente desempregada, fome... Suicídios... Enfim, uma coisa horrorosa.
Adams e Iliá continuaram conversando sobre a crise e a situação política e econômica nos Estados Unidos, enquanto eu e Carol seguíamos atrás, caladas. O ar frio da noite moscovita não dava mesmo vontade de conversar. As ruas, àquela hora, estavam quase desertas; alguns casais de namorados ou passeantes solitários vagavam à sombra dos lampiões, e de ocasionais bétulas, com seus troncos brancos visíveis até na escuridão.
Não demoramos a chegar à Rua Mokhovaia, e, em frente ao prédio do Komintern, Iliá parou.
– Certo – ele disse, fazendo um gesto para que nos detivéssemos também. – Vocês – ele falou para os americanos – entram agora, já estão sendo esperados. Procurem pelo Camarada Akulin, Nikolai Ivanovitch. A senhorita – disse, então, voltando-se para mim – terá que aguardar mais um pouco, eu sinto muito. O Camarada Tabanov, que atualmente administra o treinamento de estrangeiros, passou o dia fora para atender uma situação de urgência, e ainda não retornou. Por isso fui enviado para encontrá-la. A senhorita deverá aguardar no hotel Nacional, junto com seus compatriotas, que foram levados para lá ontem – Iliá referiu, apontando em direção ao fim da rua oposto àquele de onde tínhamos vindo. – Serão atendidos assim que possível; já foram reservados aposentos, caso seja necessário pernoitarem ali.
Os americanos já haviam sumido de vista. Um pouco atrapalhada por ter sido impedida de entrar também no prédio do Komintern, eu concordei com um aceno de cabeça. Iliá Abramovitch se dispôs, então, a me acompanhar até o hotel; tão logo anotaram meus dados no livro de hóspedes, o russo se despediu com muitas mesuras e um entusiástico aperto de mão. Observei-o desaparecer pela porta do hall de entrada e então comecei a procura pela saleta em que deviam estar meus colegas do PCB.
O hotel fora instalado em um casarão de esquina de cinco ou seis andares, que, no século anterior, pertencera a um comerciante, especulador imobiliário. Não se parecia em nada, mas nada mesmo com a pensãozinha em que eu me hospedara em Leningrado. O pé-direito era alto, as janelas, gigantescas, e as escadas, extremamente luxuosas, com corrimões esculpidos. Eu provavelmente devia agradecer à minha sorte que o Camarada Tabanov ficara retido em sua missão urgente, de outro modo eu dificilmente teria possibilidade de ficar hospedada ali. Claramente era um lugar para os figurões do Partido e da sociedade, e não para uma recruta estrangeira, aprendiz de partisan. Ou eu muito me enganava, ou o próprio Lenin vivera naquele prédio.
Parei no patamar de uma escada e me demorei alguns minutos examinando o papel de parede e as decorações, deslumbrada. "Paredes que inspiraram aquele gênio, inspirem-me", peguei-me pensando, e depois me reprovei mentalmente por essa atitude mística e irracional.
Eu ainda estava ali parada quando passou um empregado do hotel e ficou me olhando com ar curioso. Quando olhei de volta, ele perguntou se eu precisava de alguma coisa. Perguntei sobre meus colegas e, com as indicações que o funcionário me deu, logo estava batendo em uma maciça porta de madeira, que mal conseguia abafar as vozes altas dos ocupantes da sala atrás dela.
Não precisava de um detetive para descobrir que ali estavam brasileiros, só pela barulheira que faziam, pontuada de gargalhadas a intervalos regulares. Um sorriso involuntário de simpatia e saudade brotou em meu rosto, conforme eu empurrava a porta, ao comando de "Voidíte" de um dos meus colegas.
Fiquei contente ao ver os rostos deles se iluminarem quando eu entrei, não por uma especial afinidade comigo – ambos tinham vindo de outros setores do Partido, e nos conhecíamos meramente de vista – mas pelo simples fato de encontrarem uma compatriota e correligionária.
– Camarada Linhares! – um dele exclamou, adiantando-se para apertar-me a mão, no que foi seguido pelo outro. – Que bom que conseguiu vir! Tememos que tivesse acontecido com você o mesmo que houve com o Jaime.
– O que houve com o Camarada Ferreira? – eu perguntei, até me esquecendo de cumprimentá-los adequadamente, no afã de solucionar aquele mistério que me apoquentava havia dois dias.
– Nem chegou a sair do país – comentou o mais velho e mais baixinho dos meus colegas, magriço, bigodudo, chamado Silo Meireles. – Interceptaram-no no porto e o detiveram "para averiguação" por uma suspeita qualquer.
– E como está a situação jurídica dele? Deixaram contratar um advogado? – perguntei, preocupada.
– Não sei muito bem, porque embarquei no dia seguinte – completou Silo. – Ainda o detinham, mas parece que não foi por acusações de ordem política. Não tinham prova, né? Inventaram qualquer coisa; provavelmente vão ter que liberá-lo logo, mas impediram o embarque, perdemos o dinheiro da passagem, e ele acabou perdendo o pleno da Juventude Comunista... Esse tipo de contrariedades.
– Conseguiram embaçar os nossos planos, em suma – interpôs o outro colega, José Maria de Souza, negro, imberbe, estatura média e olhar esperto. – Que era o que pretendiam desde o começo. O importante agora é descobrir quem foi o traidor que revelou nossas movimentações, e expulsá-lo do Partido.
Concordei silenciosamente e cerrei os olhos. Com as mãos apoiadas nas costas, na altura da cintura, curvei-me para trás para me espreguiçar e tentar esticar o corpo cansado e amassado da viagem. Percebendo minha movimentação, os colegas apontaram-me um divã revestido de veludo bordô, onde me assentei para relaxar, reclinando-me com prazer sobre as almofadas macias.
Os rapazes ocuparam desleixadamente um par de cadeiras de estofado de veludo e espaldar reto, que faziam um ângulo reto com o divã. Entre ele e as cadeiras, havia uma mesa redonda pequena, mas elegantemente posta com um samovar e pequenos quitutes de padaria, em tal fartura que fazia parecer até estranha a conversa de mais cedo sobre o preço alto dos alimentos. De início, agarrei um pãozinho recheado com repolho e, enquanto o devorava, perguntei aos meus colegas suas primeiras impressões sobre o país.
– Nossa, estou deslumbrado – José começou, engatando um discurso sobre as inovações, belezas e avanços da capital soviética, parecido com o que Iliá Abramovitch desfiara para mim e para os americanos mais cedo. Concluiu, inclusive, com um elogio ao posicionamento do presidente Stálin em algumas questões, sua firmeza e sabedoria. Escutei tudo, quieta, e quando ele concluiu, me voltei para Silo, dando a entender com um olhar que queria ouvi-lo também.
– Realmente, há muitos avanços, muitos ganhos para a população, especialmente em relação à época tzarista, que eu tive oportunidade de estudar – ele comentou, cauteloso – mas confesso que essa postura de investir no crescimento interno ao invés do avanço revolucionário no mundo me parece um pouco egoísta.
– Isso é trotskismo, e já está superado há dois congressos da Internacional – José María censurou. – Não adianta conquistar mais do que se pode administrar. As fronteiras da União Soviética já estão bastante dilatadas; se o front continuasse avançando e avançando, logo não se teria forças suficientes para proteger os lugares já alcançados pelo comunismo do contra-ataque imperialista do Capital.
– Pelo socialismo – corrigiu Silo. – Ainda não passamos à fase final.
– Pelo socialismo, seja. Não altera a essência do meu raciocínio.
– O problema é que nós, na nossa terra brasilis, estamos bem longe das atuais fronteiras do socialismo, e se a Revolução não continuar avançando, jamais chegará lá.
– Faremos a nossa própria, ué! Ou não confiamos na força do nosso povo?
– Sem dúvida; mas alguma ajuda seria apreciada.
– Nós recebemos alguma ajuda, significativa, aliás – José disse gravemente, franzindo o sobrolho. – É por isso que estamos aqui, esqueceu?
Eu assisti quieta à discussão entre eles, enquanto comia. Não sabia bem com quem concordava; os dois tinham bons pontos; por isso decidi me manter calada, escutar, e meditar sobre o assunto depois. Silo não respondeu ao último comentário de José; em vez disso, voltou-se para mim e disse que era minha vez de contar o que estava achando da viagem até ali.
Pensei nas minhas muitas conversas, nas pessoas que conhecera, e as sensações que esses encontros tinham despertado, que eu não tivera tempo de analisar com cuidado. Achei melhor não falar sobre elas, por ainda não ter muita intimidade com meus colegas, e para não provocar novas discussões teóricas.
Narrei, então, os detalhes da viagem em si, da chegada a Helsinki e depois a Leningrado, do registro e procedimentos no Komsomol, e dos lugares que visitara, omitindo apenas a companhia de Pavel e detalhes que o envolviam. Não que eu me envergonhasse por me sentir atraída pelo rapaz, eu tinha esse direito como qualquer mulher, mas sabia que, se mencionasse o fato, meus correligionários passariam a me olhar de cima, tendo-me apenas como "mais uma dessas tolinhas românticas" e fazendo pouco caso da minha contribuição para o esforço revolucionário. Era tudo o que eu não precisava, especialmente agora que eles seriam companhia constante no meu treinamento ideológico.
Conversamos ainda um pouco sobre nossas próprias vidas e famílias no Brasil, sobre os núcleos do Partido de que fazíamos parte, mas logo estávamos todos bocejando, a adrenalina finalmente dera lugar ao cansaço da prolongada viagem, e nos retiramos para os respectivos quartos. Eles dividiam um, eu fora colocada em outro.
O quarto era amplo, com uma senhora janela que devia ter uma vista maravilhosa para a Praça Vermelha de manhã, mas eu estava com tanto sono que mal atinei nos detalhes, antes de me trocar de qualquer jeito e enroscar-me nas cobertas vermelhas da cama grande e fofinha.
Adormeci quase de imediato, e dormi tão profundamente, que tinha perdido a noção do tempo quando fui despertada por algumas batidas urgentes na porta do aposento. Piscando, atordoada, reparei que nenhuma luz se filtrava por baixo da cortina, enquanto eu vestia meu casaco do dia por cima da camisola, a fim de atender a porta.
Um oficial tremendamente alto, cujas feições eu não discerni na meia-luz do corredor, anunciou-me tão logo eu abri:
– Camarada Linhares, trago ordens para que se apresente no Komintern imediatamente.
Não era a primeira vez que me acordavam no meio da noite por motivos políticos, então eu tinha reflexos rápidos para esse tipo de coisa. Pedindo licença ao oficial, fechei a porta um momento e troquei de roupa na velocidade da luz, deixando os cabelos soltos por falta de tempo para arrumá-los. Terminava de amarrar o lenço na cabeça com uma mão e com a outra já fui abrindo a porta. O oficial me aguardava mais adiante, junto com um José e um Silo bocejantes, desgrenhados e desnorteados.
Saí e fechei a porta atrás de mim. Antes que eu me juntasse a eles, porém, o rapaz alto passou por mim e entrou no quarto, voltando com a minha mala. Notei que meus colegas também arrastavam as suas.
Aonde quer que ele estivesse nos levando, era permanente.
E eu nem pudera curtir o Nacional direito!
Ao contrário dos meus guias anteriores, este não era de muita conversa, e andava muito rápido, graças às pernas longas; por isso, apenas consegui trocar um olhar espantado com meus colegas enquanto nos apressávamos para acompanhar o passo dele. Por sorte o trajeto era curto ou, do modo como Silo ofegava, teria desfalecido antes do fim da rua.
Passamos direto pelos guardas noturnos do prédio do Komintern, que nem tomaram conhecimento da nossa existência, e seguimos o sério oficial pelos corredores vazios e escurecidos, nos entranhando cada vez mais no prédio, até que seria praticamente impossível retornarmos sozinhos.
Só então nosso guia parou diante de uma porta ampla, por cuja borda se escoava um feixe mínimo de luz, e a escancarou.
– Camarada Tabanov – ele fez, após entrar na sala, indicando alguém sentado na ponta de uma mesa de reunião de tamanho médio. – Camaradas Linhares, Meireles e Souza – e, após as apresentações, ele bateu continência para o dito Tabanov e se afastou para o lado, guardando posição de sentido.
E então eu encarei nosso supervisor de treinamento, e meu queixo quase caiu.
***
Notas:
1. Voidite: Entre (formal)
2. No "link externo" do capítulo você encontra uma foto do Hotel Nacional na atualidade.
3. José Maria de Souza, Silo Meireles e Jaime Ferreira realmente existiram e vieram a Moscou em 1933 para a finalidade que vocês descobrirão no próximo capítulo. Jaime Ferreira não chegou a Moscou a tempo para um congresso ao qual devia comparecer.