Os últimos metros até chegar à minha casa são difíceis.. Nem pedalo mais, vou empurrando a bicicleta. Penso na melhor forma de contar à minha mãe, mas não existe uma forma de dar uma notícia dessas sem causar impacto. Já está escurecendo e vejo o vulto da minha mãe, andando de um lado para o outro. Deve estar pensando no porquê de eu ainda não estar em casa. Parece piada uma pessoa como eu,na minha idade, ainda ter de dar satisfações.. Bem, minha vida é uma piada mesmo, afinal ainda moro com minha mãe por comodismo, só disponho de uma bicicleta por puro e irracional medo de dirigir e a única coisa que tenho fora minha vida em casa é meu emprego. Mas que seja. Preciso me preparar, enxugar um pouco minhas lágrimas e dar a notícia de uma vez. Como tirar um curativo. Rápido, para doer menos.
- Suzana! Tudo bem? O que são estes olhos vermelhos, guria? Não venha me dizer que..
- Não, mãe.
Meu tom de voz faz com que ela perceba que não, sua filha não usou drogas. Nunca usei, mas sei lá por que motivo minha mãe tem isso na cabeça.
- Suzana.... o que houve.. que tom de voz foi este?
- Mãe... senta, primeiro.
Respiro fundo:
- O Sr. Geraldo, mãe... ele... sofreu um acidente quando voltava de mais uma das viagens dele... e....
- Meu Deus! Ele..
- Sim, mãe. Ele morreu. O corpo chega ainda esta noite na casa dele, depois vai para a capela.. Eu... preciso...
- Éramos muito amigos, ele sempre ajudou nossa família...
Minha mãe permite-se chorar um pouco. Há quanto tempo não a vejo assim! Por um instante, fico com pena dela, esqueço as nossas diferenças. É minha mãe, amiga de longa data do Sr. Geraldo, estudaram juntos. Com certeza está sofrendo, talvez mais que eu.
- Amanhã de manhã vão velá-lo na capela lá perto da casa dele. Eu.. preciso descansar, mãe.
- Eu também, filha. E... não vou poder ir à capela.
Minha mãe não se dá muito bem com a mulher do seu Geraldo, mas será que nem mesmo em uma ocasião como esta as duas podem se encontrar no mesmo lugar?
- Mãe, eu sei que vocês não se bicam, mas nem no enterro do Seu Geraldo dá para deixar isto de lado?
- Ah, Suzana.. é uma longa história. Mas agora estamos cansadas e precisamos nos refazer. Outra hora te conto tudo.
Tomo um banho e vou até o quarto, entro nas redes sociais para desanuviar um pouco, mas o que vejo são colegas de trabalho compartilhando notícias e frases sobre como o Sr. Geraldo era um chefe bom, a falta que vai fazer, enfim. Minha mãe não vai comigo amanhã, e preciso achar uma carona para ir até a capela. Sei mais ou menos onde o Sr. Geraldo morava, então não deve ser difícil.
Um som de campainha invade meus pensamentos. Mensagem da Ana. Ela vai dirigindo até a capela amanhã, porém vai mais cedo para ver se tudo está em ordem. Eles tinham um filho - ou filha..? Não lembro bem, que há um bom tempo simplesmente não aparece, então cabe a Ana ajudar à esposa do Sr. Geraldo. Ela quer saber se aceito uma carona. Respondo que sim, irei até a estrada geral, para que ela não fique procurando minha casa.
Continuo navegando na internet.
Meia noite e meia, caramba! Preciso tentar dormir.
Seu Geraldo aparece na porta do meu quarto, me dando o maior susto:
- Mas..mas...você, quer dizer, o senhor...estava morto,eu sei!
- Suzana. Acorda. Você precisa saber de algo. Suzana. Suzana!
Abro os olhos, espantada. A figura do Sr. Geraldo some. Minha mãe está na beira da cama.
- Filha,são oito da manhã, é melhor..
- Oito da manhã?!? Caramba, tenho de me arrumar, a Ana vem me buscar. Mãe... não queres mesmo vir com a gente? Ele era seu amigo!
- Eu sei... eu queria muito ir, mas sei que vai ficar um clima ruim.
Não tento discutir. Tomo um banho para terminar de acordar, me visto rapidamente, pego a bicicleta e deixo encostada na casa de uma senhora, perto da saída da estradinha de terra. Em poucos minutos, Ana chega. Coitada, está com cara de quem não dormiu.
- Oi.
- Oi.
Não há o que dizer, não há o que conversar. Seguimos mudas até a capela, onde felizmente tudo já estava em ordem. Aos poucos, as pessoas vão chegando e o lugar fica lotado. Seu Geraldo era muito conhecido e querido.
Várias pessoas diferentes discursam sobre as qualidades dele como pai, marido, empresário, filantropo. E aí fico sabendo que, às escondidas e apenas com ciência da esposa, ele fazia doações a várias instituições de caridade.
Chega o sacerdote e faz a celebração, com as costumeiras palavras de consolo. Quando os familiares erguem o esquife, noto um rosto familiar.. Os cabelos estão presos, revelando algumas cicatrizes no rosto. Não pode ser... mas é muito parecido. Parecido? Não, é ele. Mas talvez..
Ana me tira dos devaneios, fazendo sinal para que sigamos até o cemitério.
Talvez eu esteja vendo coisas. Mas.. e se for? Será que...?
O caixão baixa lentamente, deixo cair no túmulo a flor branca e acompanho seu trajeto até a sepultura. As lágrimas escorrem e não tento mais contê-las. Saio amparada por Ana e rumamos em silêncio.
Me despeço antes de tomar rumo para minha casa, e não me contenho :
- Ana, reparou no moço de cabelos compridos carregando o caixão?
-Ah, sim,é o filho do Sr. Geraldo. Passou muito tempo fora de casa, e agora voltou.
- Ele não te lembra aquele rapaz que.. deixa pra lá. Nos vemos na segunda.
- Até lá, Suzana.
Não vou aborrecer a Ana com isso agora.
Chego à casa. Minha mãe está sentada no sofá da sala, muito reta.
- Senta aqui. Agora precisamos ter uma conversa séria. E vai ser longa.
Sento-me, pensando "que bomba vai vir agora". Estou cansada, queria tomar um banho e dormir para não pensar em mais nada.
- Sei que você está cansada, mas agora que o Sr. Geraldo... agora que ele faleceu, eu tenho de te contar algo, e prefiro fazer isso agora. Melhor que você ficar sabendo por outra pessoa.
Minha mãe está realmente estranha. Estou começando a ficar preocupada.
- Você sabe que eu e o Sr.. eu e o Geraldo sempre fomos muito amigos, não é?
- Sim, mãe. Foi você quem nos apresentou e recomendou que eu fosse lá pedir um emprego, também.
- Sabe, Suzana... é meio difícil mas preciso dizer.. na verdade fomos mais que amigos, por um tempo.
- Vocês namoraram antes de você conhecer o pai?
- Sim. Mas eu nunca deixei de amá-lo. Só que sabe, a vida nos separou...Houve um pequeno mal-entendido, cada um foi para um lado. Depois de algum tempo, quando ele já namorava a mulher que agora é esposa dele, nos reencontramos. Ele estava disposto a terminar o namoro, porém neste tempo ela engravidou. Ele casou, tentei esquecê-lo de vez.. Conheci seu pai, nos casamos e fomos muito felizes. Mas...
Já sei a frase que vem a seguir, embora queira fingir que não.. mesmo assim pergunto:
- Mãe, você não está querendo dizer o que estou pensando, está?
- Você já percebeu onde quero chegar, Suzana. Um tempo depois de ele ter voltado a morar aqui, nos reencontramos, conversamos sobre os velhos tempos...tivemos uma recaída e um breve relacionamento, escondidos, que durou pouco tempo, mas o suficiente para... bem, você já percebeu...Sim, Geraldo era seu verdadeiro pai.
Respiro fundo.Surpresa e indignação ao mesmo tempo.
- Mãe, por que você não me contou antes, depois que o papai faleceu? Eu já estava bem grandinha...
- Suzana.. eu não queria contar na época.Mas.. o Geraldo sabia. Ele sempre soube, por isso sempre foi tão amável com você. E a esposa dele também sabia.. agora você entende porque nunca quis ir até a casa deles. Eu prometi à esposa do Geraldo que não contaria a você, a não ser quando fosse inevitável.. como agora. Agora que ele está falecido, e seu pai também, posso finalmente contar. E tem mais, Geraldo com certeza terá deixado alguma coisa para você, querendo a esposa dele isso ou não.
- E o papai, morreu sem saber disso?
- Não, querida, eu contei a ele alguns meses antes dele falecer.. não poderia me despedir dele com este peso.. Ele compreendeu e disse que tudo iria continuar como era, e que você era a filha dele de qualquer forma.
Minha mãe aqui, na minha frente, se abrindo de uma forma que nunca havia feito antes, é estranho.. e também reconfortante, de certa maneira. Consigo, depois de tantos anos de ressentimentos por suas constantes broncas e vigilância, compadecer-me dela. Vejo-a fragilizada, consigo me colocar no lugar dela.
Ela silencia, seu olhar em minha direção como que esperando algum julgamento. Mas nem tenho este direito. Abraço-a,começo a chorar. A morte do sr. Geraldo, minha afeição por ele, as revelações e este dia comprido que não acaba nunca... Minha mãe chora também, ficamos um longo tempo abraçadas.
E algo estala em minha cabeça.
Será aquele rapaz... o filho do sr. Geraldo... pode ser a mesma pessoa? Meu irmão.. eu já o conheço?