TALIA

By hylancaster

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"Talia surgiu um dia pelos corredores de uma cidade qualquer sem nome. Quando Harper se depara com sua presen... More

DIREITOS AUTORAIS
Palavras da Autora
Trilha Sonora
PRÓLOGO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
AGRADECIMENTOS

CAPÍTULO VII

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By hylancaster


Não é que eu não tenha falado nada sobre gostar de garotas. Mas também não é que eu o tenha dito a alguém. Não sinto vergonha de quem sou, mas ainda me constrange o jogo, o flerte e escancarar isso a mim mesma me cora apenas pelo pensamento. Então percebo o quão tímida sou, ainda que consiga falar a grandes públicos e me expressar bem com desconhecidos. Também sei que algumas coisas são difíceis de se dizer em voz alta e particularmente, nunca disse amar garotas a mim mesma em tom audível. E acredito que isso faça diferença. Meus poemas e meus textos expressam um pensamento diferente e claramente aberto à ideia, mas nunca me confrontaram sobre a questão. Nem Jeff me interrogara sobre; mas sei que desconfia, sei que sente que há algo. Ainda assim, ele nunca me questionara nada. E eu, aqui, em minha inocência ou receio, também lamento não ter feito nada até então. Não que acredite ser necessário provar minha teoria, pois bem sei a verdade: bem sabemos o que se passa dentro de nós, dentro desse peito de gente, de sentires e amores.

Desde que eu flertara com a garota, eu passara a pensar mais na ideia, mais nesse sentimento que está aqui dentro e que não ousei me aventurar dizer ou viver ainda. Eu procuro histórias e aventuras sobre amores entre mulheres e me deleito na solidão do meu quarto, imaginando suas vidas, seus segredos e seus tempos. Sorrio em silêncio, contemplando e fazendo minha mente circular por tempos que não vivi, mas por amores que tenho em meu peito. Em segredo, sonho sentir os lábios de alguma garota sobre os meus, lábios que me destilariam as mais nobres artimanhas e penso como será a sensação. Não encontro nada em que me basear, mas anseio pelo momento, como quem espera um pequeno milagre, porque, em partes, será a minha pequena aventura, meu grande delírio secreto.

Mas, ainda assim, tudo permanece comigo. Não comento com ninguém, nada digo a qualquer um que me olhe e me indague. Mas também não escondo, porque sinto como se estivesse me traindo. E, de alguma forma, ainda estou.

É nesse momento que eu me dirijo à escola, vestida com as peças que nunca me incriminarão, mas sei que alguns olhares me notam e me sabem: há coisas impossíveis de serem escondidas. Não falo com minha mãe à mesa do café, mas quase nunca se falam nessa família e eu só lamento por eles, por tudo o que estão perdendo, por tudo que preferem ignorar. Eu entro no ônibus, dou bom dia à motorista e me sento em algum banco vazio, próximo à janela, sem dar grandes importâncias a qualquer coisa que me envolva. Há velhas puxando papo com aqueles que se sentam próximos delas, mas eu prefiro ignorá-las hoje. Prefiro a distância dessas marés turbulentas. Hoje, o silêncio me agrada, mas para garantir que não vão me dirigir palavra, ponho os fones de ouvido e me sinto tentada a ouvir 1950 e é o que estou a fazer no segundo seguinte.

É o que escolho fazer agora, nesse momento, nesse meu agora. Deixo que a música termine e comece, termine e recomece infinitamente, mais alta e mais baixa, mas sempre ali, me cantando sobre esses amores maravilhosos e eternos de corpos iguais, de paixões de para sempre. Deliro e caminho para longe, para longe de toda essa sujeira e essa hipocrisia e me embrenho nos sonhos em que esses sentires não são banalizados. Estou sorrindo quando chego à escola, estou sorrindo sozinha, embalada pela canção, por essa suavidade que me faz serena, compassiva.

Leio a mensagem de Jeff de que já está a caminho, que vai chegar atrasado, mas que logo estaria ali, mas a música continua ecoando e se movendo por mim e não me importo em esperar; quero ficar ali e posso fazê-lo por muito tempo. O sinal toca e a agitação começa: pessoas de um lado para outro, adolescentes, como eu, indo e vindo de suas vidas e de seus conflitos, cheios dentro e fora de si, (eu posso ver sua confusão), mas prosseguem com essa coisa maior, sem nome, que todos temos, mas poucos nomeiam. Alguns poucos se importam em esperar – e hoje sou uma dessas –, e não me preocupo com isso. Fico ali, à espreita, em delírios e sonhos e observo cada uma dessas pessoas que vão e vêm, apressadas e confusas, tão cheias de si e do mundo, tão demasiadamente cheias. Eu olho e olho e não me canso de imaginá-las, de criar histórias com seus mundos e com suas vidas, como se'u fosse deus, o deus delas. Fico a criar mundos em que existem, histórias em que são personagens e eu sua criadora e me extasio e me perco com essa ideia. O menino que me cumprimentara outra vez, aquele cujos olhos trocaram olhares com outros garotos, se põe a passar por mim e dizer olá, como se tentasse uma aproximação. Eu lhe respondo, sorriso aberto, então ouço-o dizer que está ansioso pelas minhas orientações de literatura. Agradeço, um pouco corada e, antes que se vá, apresento-me com uma satisfação muito minha.

– Muito prazer em conhecê-lo, Vince.

– Eu quem fico feliz, Harper.

E ele sai, todo pomposo, sorrindo como se aquele momento fosse maior que tudo e em alguma instância talvez seja mesmo e eu permaneço. Sempre permaneço, porque isso é um momento da minha história e nossos mundos se cruzaram, criador e criatura, e eu continuo tecendo essas veias que farão esse mundo existir em outras dimensões. Sua voz é fina, seu corpo magro e branco, os cachinhos pequenos e pouco ou nada volumosos sobre a cabeça e ele vai longe, até se perder na multidão.

Naquele momento, olho para o fluxo que vai, que se esvai como água que seca na fonte e as portas se abrem outra vez, mas a luz do sol, que corta minha visão, ofusca tudo à minha volta. Desvio o olhar, procurando, esperando, ainda paciente, quando dentre muitos e dentre vários, meus olhos são tomados pela visão que eu sequer esperaria ser minha, assim, de rompante. Sinto que o ar se foi por um instante, que as coisas pararam e que o mundo realmente está em câmera lenta. Eu paro, mas já estou assim há minutos e sequer percebo, enquanto ela aparece por aquele corredor, apenas mais uma dentre várias que cortam aquele caminho longo e, de repente, tão curto.

Se a visse, você entenderia o que estou dizendo.

Ela caminhava com majestade e um toque bravio de rebeldia. Os cabelos eram curtos e raspados e balançavam, repicados sobre, em seu jeito indômito, enquanto os óculos escuros adornavam o rosto tão suave. Seus lábios carregavam um cigarro apagado e ela caminhava como que dona de seu mundo, enquanto o meu desmoronava ao fitá-la. Eu prendera o fôlego e não conseguiria explicar o que se passava em mim, ao passo que ela continuava sua caminhada sem se preocupar com o mundo à sua volta. Ela tem esse tipo de beleza que te faz parar por um minuto eterno e repensar toda a sua vida e todos os seus amores. As botas negras batendo firme contra o chão duro que suportavam seu caminhar, os lábios se movendo em silêncio, quase como se lhe hipnotizassem, o corpo delineado pelas roupas que ninguém ousava usar, mas ela tinha a coragem de vestir. Os suspensórios sobre as camisas, cada qual em seu charme, a pulseira marrom sobre os pulsos cobertos. Ela é aquela pessoa que faz você olhar uma vez e manter fixos os olhos, porque é difícil demais abandonar sua visão depois que a experimenta uma vez. Eu não sabia o que estava me acontecendo, mas ali, naquele instante, eu perdera a razão, contemplando sua imagem passar diante de mim. A pele pálida repassava em mim e me fazia pensar em sua maciez, na tez que implora um beijo. Seria difícil defini-la em uma palavra, mas eu adoraria tentar, ainda que saiba que isso não funcionaria. Não para ela. Então eu deixo que ela passe, mas permito que sua imagem continue viva em minha mente. Ela caminha em câmera lenta diante de minhas câmeras e eu sou apenas mais uma transeunte em seu sistema tão aleatoriamente sagaz. Ela não me percebe, mas como eu reagiria se ela se aproximasse? Será que saberia meu nome? Ou será que não notaria como eu ficaria corada com sua aproximação? Ela passa e seu passo certeiro é tão demasiado rápido que sequer me sinto abandonada por sua presença que permanece mesmo minutos depois de sua partida. Sorrio e sei que o estou fazendo, mesmo parecendo tão tola por aqueles lábios loucos que se movem e se mostram para o mundo com essa satisfação sem nome, mas com cara e um provável endereço.

Ainda assim, ela vai, mas permanece aqui um algo inominável que remexe em meu peito, brinca lá e cá, mas não me abandona. E por alguns minutos, tenho a impressão de que o mundo pulsa todo dentro de mim.

***

Sei que a aula está acontecendo, mas ainda estou impactada demais com sua visão. Ela passara por mim como uma tempestade e me deixara estilhaços. Não a conhecia; nunca a vira por ali, mas, de repente, sua visão era o que me acolhia, o que me chamava. Revejo inúmeras vezes sua caminhada até algum dos corredores, mas não consegui me mover, não consegui nada, enquanto ela passava por mim e King Princess tocava em meus ouvidos, como uma trilha sonora para aquela cena de cinema. Ela estava ali, diante de mim, tão próxima, tão... breve e eu sequer lhe sabia o nome. Quem era ela? Por que eu nunca a vira ali? Por que eu estava tão fascinada com sua visão?

– Hey! – Jeff me despertara com uma leve cotovelada e parecia que eu acordava de um sonho. – O que há com você hoje? Não está prestando atenção em nada – ele sussurra com cuidado, ciente de que o professor adoraria reprová-lo a qualquer sinal de insubordinação. Geometria analítica não era seu forte e ele precisaria de pontos extras para fechar o semestre.

– Shiu! – Faço sinal de silêncio para ele, indicando o professor à frente. – Está tudo bem, só estou pensando – ele me olha com desconfiança e sei que não está certo quanto à veracidade do que lhe digo. Então ele me faz um sinal e move os lábios formando o recado que diz: Eu e você. Conversa lá fora. – E seguro um riso quando vejo sua expressão de quem sabe muito e entende o que se passa em mim. Balanço a cabeça e afirmo, fingindo me concentrar de novo na aula, mas a única coisa que está ali, circulando com força é a imagem dela, aquela que, nesse exato instante, já faz parte dos meus mundos literários.

Entre aulas e trocas de professores, o almoço chegou e eu me vi procurando por ela sem lhe saber nome ou qualquer informação que pudesse me ajudar. A curiosidade me dava comichões e eu pensava na força com que andava, como se fosse dona de seu próprio mundo, de seu destino e de nada mais precisasse. Impressionou a mim sua atitude ousada, seus lábios sustentando um cigarro apagado, o corte raspado, louro, curto. Ela reverberava por mim muito depois de já ter ido, muito tempo depois de ter sucumbido àqueles corredores cheios de multidões. E só de lembrá-la já perco fôlego e atenção e sei que estou aérea; longe demais de tudo isso que acontece aqui.

– Alguma coisa que eu deva saber? – É Jeff que me chama à realidade outra vez. –Sério, Harper: não sei o que está havendo com você hoje; não prestou atenção em nada o dia todo. Você está bem?

Fecho os olhos e os abro em seguida, rapidamente, sorrindo para ele. – Estou cansada; fui treinar ontem e briguei com minha mãe. Você sabe como é.

Minhas palavras parecem quase convencê-lo, mas parecia saber haver mais; algum segredo pequeno, alguma coisa sutil e disfarçada que eu deixara longe de seu conhecimento.

– Noite difícil? – Ele questiona, como se entendesse. E sei que entende. Sabe como meus pais são; os conhece bem para entender do que estou falando.

Suspiro e dou de ombros. – Você sabe que não me importo mais. Eles são... complicados. Para dizer pouco. – E meus olhos captam a imagem dela, saindo por aqueles portões, caminhando com alguns colegas, rindo de alguma piada que eu perdera, de algum divertimento que estou longe demais para saber. Engulo seco, remexendo em minha camiseta, jogando uma mecha de cabelo para trás da orelha e fitando cada passo seu. É linda. Ela tem serenidade, um tom de rebeldia e um quê de indeterminação. Quando ri, seu rosto todo se move junto e eu estou extasiada, perdida em devaneios sobre seu nome e seu tom de voz. Imagino sua aproximação, uma conversa, qualquer coisa e minha mente se acelera e cria mil momentos que nunca acontecerão. Os cabelos estão bagunçados e há um charme grande demais que não me permite ignorá-la, um modo de agir e de mover que me desafiam, que me chamam. Perco as noções de realidade e minha imaginação cria e recria coisas num espaço de tempo pequeno demais, agindo como se minha cabeça estivesse ali, presente na conversa, nas falas incessantes de Jeff, até que percebo que ele não mais fala comigo e que, na verdade, a garota e seus dois amigos estão diante de mim, trocando palavras e coisas. Jeff me cutuca e eu volto, nervosa e desacreditada. Eles acabaram de chegar e Jeff está me trazendo à tona. Mais uma vez.

– E aí, cara? Beleza? – Lion está diante de nós e seus lábios sustentam um sorriso debochado e empinado, como se estivesse em algum lugar alto do pódio. Ele é um pouco presunçoso e um dos colegas de time de Jeff, então o aturo mais em apoio ao meu amigo do que em consideração. Jeff e ele se cumprimentam com um toque de mãos e estico meu braço em direção a ele quando tenta um cumprimento a mim, porque apenas o aturo e isso é tudo. Ele entende o recado e recua, como se não se importasse.

– Jeff, Harper, essa é Talia. – Ele aponta para a garota e eu prendo o fôlego. Aqui, posso me atrever a olhá-la sem parecer louca. E sua visão quase me dói. A postura é firme, o passo forte demais e seus lábios cheios me contam histórias. O cigarro apagado continua ali, pairando como se desafiasse a vida a confrontá-la e eu me pego olhando sua tez macia, quase aveludada e pensando como seria tocá-la.

– Ela se transferiu para cá e vai passar o ano com a gente. – Lion continua e ela nos olha, sorrindo com um quê de charme, um tom de desafio, como se estivesse pronta para a briga.

– E aí? – Ela vocifera e como sua voz é suave. Tão destoante desse visual determinado, tão diferente de toda essa força de quando a olhamos. Faço pausa e fôlego, porque sua visão é intensa demais; sua presença é inquietante. E como isso me fascina ainda mais, como isso me faz querer conhecê-la, perguntar e indagar sobre tudo. Eu balanço a cabeça e faço um leve movimento, como se a cumprimentasse sem tocá-la e sorrio, enquanto Jeff é caloroso como sempre o é e diz estar feliz por tê-la ali, em nossa escola.

Não falo nada, mas peço em silêncio para não estar corada, para não me denunciar e deixar à mostra todo meu fascínio, minha admiração.

– Está gostando da escola? – É Jeff que lhe pergunta e ela joga o cigarro fora. Ele é bom em socializações e parece bem à vontade com toda a situação. O outro garoto que está ali, parece tão tímido quanto eu, pois não dissera nada desde que chegaram ali. Não o reconheço de imediato, mas me recordo quem é quando ele começa a falar e todo estão em algum diálogo sobre mudança, hábitos e aulas. Eu concordo e discordo, jogando algumas palavras e rindo vez ou outra, mas ainda estou um pouco impressionada com Talia. Talia. E minha cabeça repete seu nome algumas vezes, encantada com a possibilidade de estar ali, próxima, surpresa por ter conseguido o que queria há horas atrás.

– Nossa Harper aqui é a queridinha da Aberdeen – Jeff joga a frase quando entramos no quesito professores. Ele joga seu braço nos meus ombros e me puxa num sinal de camaradagem, enquanto os outros riem e afirmam a veracidade da informação.

– Ela sempre fala dos textos dela em sala – o garoto, Brian, lançou, me olhando. Observei quando Talia se deteve alguns segundos mais que o necessário, ouvindo os comentários sobre mim surgirem e fiquei um pouco sem graça pela atenção recaída, tentando não parecer o centro da conversa.

– Você escreve? – Ela pergunta para mim e eu respondo que sim. Ela parece bastante interessada na ideia e me indaga o que escrevo, enquanto os meninos continuam sua conversa amistosa sobre o próximo jogo. Ninguém percebe minha atenção demasiado velada, instigada por ela e eu continuo aquela conversa, gostando de seu interesse. Ela me pergunta sobre minha escrita, sobre a literatura e redesenha suas questões com voracidade medida; eu deliro com a atenção devotada a mim e respondo e sorrio com a naturalidade que é minha, sentindo emoções diversas me apertarem e me abraçarem com suas loucuras. Ela realmente me olha nos olhos e escuta o que tenho a dizer e percebo que há algum encanto em minhas palavras, nas próprias palavras, que a fazem ficar ali, ouvindo meu fascínio e delírio para com as coisas mortas. Ela é perspicaz e aquela postura de quem afasta quem tem medo do perigo parece distante agora que está em minha frente. São poucos minutos de conversa e logo Jeff diz que temos de ir. Uma parte minha lamenta a saída, mas preciso ser sincera comigo mesma: foram apenas algumas palavras, uma conversa inocente e tão genuína que mesmo o menor sinal me encheu desse sentir tão absurdamente delirante e inexplicável.

– Vamos, Harper. Hora de ir. – Jeff fala, descontraído, me puxando em sua direção. Sorrio para Talia e me despeço, quase sentida.

– Até mais, – ela me diz, com o sorriso enigmático, estampado em seu rosto decidido.

– Até logo, – é o que respondo, gravando sua imagem em minha mente, guardando para mim aquele primeiro contato, aquele instante tão significativo e tão breve em que ela me sorri com uma dureza sedutora como se fôssemos personagens de algum romance adolescente escrito por alguma alma perdida e estranhamente enlouquecida e sagaz. Viro e caminho ao lado de Jeff, envolvidos por algum assunto aleatório, em direção à sorveteria das quartas-feiras, em direção àquele caminho que, hoje, parece tão minucioso e variado, como se as coisas tivessem ganhado algum novo significado à minha volta.

– Você ainda está distante; foi tão ruim assim a discussão ontem? – Ele me indaga, curioso. Sei que preciso me concentrar um pouco mais e agora e, nome em mente, me sinto mais confiante e animada com a perspectiva.

– Ah, você sabe, Jeff. Ela é impulsiva e, como sempre, está com problemas com meu pai. Como sempre. – E ele entende. Será que meus pais nunca repararam o quão eles deixaram de si próprios numa busca constante para manter um casamento que nunca foi realmente feliz? Por que eles continuavam nessa história, insistindo e batendo nesse ponto, alucinados com um controle que não era deles? Será que nunca perceberam que eram adultos e tinham responsabilidades e que o mundo estava muito além de uma questão conjugal?

–Olha, eu sei que eles são difíceis e que suas escolhas não são exatamente o que eles querem para você, mas pense bem: eles são seus pais e só estão fazendo o que pais normais fazem, entende? Eu sei que eles te sufocam, eu mesmo já vi, mas tenha paciência, você não vai ficar para sempre na casa deles.

Dei de ombros e mudei de assunto; Jeff tinha um pouco dessa sabedoria mais velha ou a tentativa de. E como eu ia explicar a ele? Não eram só as obrigações e os afazeres aos montes os quais eu tinha que cumprir; era todo o conjunto. Eram as crenças, as emoções e os desejos deles que refletiam em mim, como eu fosse corresponder a todos eles, a cada um de seus caprichos infantis que não me pertenciam. Eu me encarava no espelho, em dúvida de quem era, porque eles me tornavam sua boneca particular de realizações e sonhos de outrora. Dizer a eles isso, era quase uma forma de atentado e sempre terminávamos em discussões e caras fechadas por dias afins.

Resolvo que precisamos mudar de assunto e Jeff e eu falamos sobre a ideia das aulas de dúvidas de literatura que darei, como havia combinado com Aberdeen. Digo como estou um pouco ansiosa, ainda que pense que parte dessa agitação pertence à Talia e todo seu jogo para com o mundo. Mas é claro que não vou dizer isso a ele; não ainda, não hoje.

– Sabe que alguns fãs seus irão até lá só para te ouvir falar, não é? – Ele espera e sorri, me empurrando. – Como alguns têm feito para se aproximar de você. Se é que me entende.

Logo penso na garota que me piscara e depois que se aproximara para me entregar as chaves que eu deixara cair. Então percebo em sua expressão enigmática que há algo mais por trás de suas palavras. Paro e chamo sua atenção para voltar a caminhar logo em seguida.

– O que quer dizer com isso?

Ele ri e começa um discurso, um pouco cauteloso, um pouco divertido.

– Ah, vamos lá, Harper. Eu sou do time de basquete e você é minha melhor amiga. Eu tenho minhas fãs e isso significa que quem quiser chegar até você e tiver dificuldades com isso, vai me procurar.

Estarreço em surpresa.

– Não está dizendo o que estou pensando; está?

– Não sei o que passa nessa sua cabeça maluca, mas acredite, Apollo têm vindo me procurar para falar sobre você esses últimos dias. Disse que daria algumas evidências a você, mas que não prometia nada. Ele pareceu bem determinado.

Senti uma pontada de decepção. Não era Apollo quem eu queria nesse jogo de flerte e olhares furtivos nos intervalos entre as aulas. Não me causava qualquer formigamento ou comichão seu nome ou sua insistência. Ele não era do time, mas era um dos maiores fãs dos esportes, talvez por ter crescido nesse meio por causa de seu pai, um olheiro em busca de grandes talentos. Seu corpo magro era um pouco desengonçado, mas confiante, e seus olhos castanhos eram comuns, como muitos o tinham. Eu ouvia e via algumas meninas e meninos atrás dele, desejando um passeio, uma saída, talvez um beijo, mas... eu? Eu queria a distância dele e de todas essas coisas desinteressantes que eu era obrigada a suportar mesmo sem querer. E, definitivamente, Apollo não era o cara quem eu queria. Ou qualquer outro.

– Esqueça, Jeff. Eu não quero nada com ele. Nem o encha de esperanças, porque eu dispensarei ele na primeira oportunidade.

– Uau, olha só quem está decidida. – Ele arruma os óculos de sol nos olhos e me olha com atenção. – Por que será que eu sinto que você já tem seus desejos direcionado a outras pessoas? – Ele ri com um prazer e uma expressão de quem sabe, mas esconde o jogo. – Ora, ora, Harper, minha querida. Parece que estamos caminhando rumo a uma situação interessante. Quando vou saber quem é?

– Me esqueça, Jeff.

Mas não digo, não nego e sei que também não adiantaria. Ele sabe que há algo e talvez minhas posturas discretas possam entregar algo. Um olhar perdido ou alguma nota escrita quando a mente entrega suas intenções reais, sem se imaginar tão expressiva. Não sei dizer, mas sinto que ele sabe e desconfia de algo, mas como não questiona e me dá esse espaço, me faz parecer quase encaixada na sintonia do mundo.

A sorveteria está próxima e assim que entramos, uma jovem nos cumprimenta com o olhar de quem reconhece. Vamos todas as semanas à Stevenson's após as aulas e nos deliciamos com a sensação de ficar perdidos em escolhas de sabores novos e inusitados ou os mesmos de sempre. Jeff tira os óculos e pisca para a garota que sorri docemente para ele.

– O mesmo para mim hoje. – E ele escolhe duas bolas bem recheadas de chocolate e leite em pó, calda de morango, alguns canudos e confeitos de chocolate branco. Eu paro, olho por mais alguns instantes e inovo.

– Para mim, pistache e iogurte com amora, calda dupla de caramelo e castanhas trituradas.

Ela sorri para mim e comenta:

– Inovações hoje, Harper?

Abro um sorriso e observo, enquanto ela monta meu pedido.

– Precisamos disso às vezes, não é? Minha vez.

– Você realmente sabe usar as palavras ao seu favor, garota. – Ela termina meu pedido, marca na comanda e então, antes de me entregar, oferece canudos de chocolate de cortesia. – Pela escolha e pelas palavras.

Eu agradeço e me sento, satisfeita, orgulhosa, com esses sentimentos estranhos dentro de mim e Jeff já começou a devorar o que pediu.

– Calma, aí, garotão! – E ele me olha rindo e lança mais uma colherada cheia para dentro. Eu como um pouco do meu sorvete, pego do dele e trocamos. Aproveitamos os sabores escolhidos e nos deliciamos sem pressa, comentando sobre o dia a dia na escola e vontades secretas. E há uma magia acontecendo ali, porque Jeff, aquele garoto que conheci na escola, pouco mais de um ano, se tornou meu irmão e tem acompanhado tudo de minha vida, medos e silêncios. Ele sabe mais de mim que meus pais, me conhece melhor que quem me criou e há um laço muito forte entre nós que as pessoas confundem com um amor que não é desse tipo, mas sim um amor fraternal, de companheirismo. Protegemos um ao outro como quem defende família e realmente o somos e sinto orgulho de nossa parceria. Como boa parte das coisas boas em minha vida, o conheci numa aula de literatura, no segundo semestre de uma aula de uma senhorinha louca e maravilhosa que nos ensinava como quem falasse com os poetas mortos. Deliciávamos naquelas palavras e nas explicações e silêncios dela, maravilhados por toda sua minúcia e loucura desmedida.

E no dia em que Jeff começara, ele já conhecia alguns colegas e alguns professores, porque já começara ali, mas tivera de mudar de cidade, e voltara pouco tempo depois, após a morte de seu pai. Não fora difícil sua adaptação; na verdade, ele se dera muito bem e algumas respostas minhas o chamaram atenção. Num dos intervalos que fazíamos, ele se aproximou e fez algumas piadas e começamos uma conversa amistosa e divertida.

Ele era um cara legal e não sei dizer se houve algum interesse em mim quando me conheceu, mas se houve, nunca nada foi dito. Éramos cúmplices e botávamos fogo em qualquer lugar em que estivéssemos, porque éramos melhores amigos, dois loucos contra o mundo, enfrentando e questionando o que quer que nos aparecesse à frente. Loucos, nos jogávamos mais para apostar que para ganhar. E havia sido assim por todo esse tempo, cada vez mais irmãos com o passar das semanas. Tínhamos nossos pequenos segredos internos, mas a maior parte deles era compartilhada nessa irmandade que criáramos com tempo e confiança.

– Ei, – ele engoliu mais algumas colheradas, misturando meu sorvete e o dele na mesma colher – O que achou da garota nova?

Eu dei de ombros como se não me importasse. Indiferença. Como iria explicar que ela me tirara o fôlego, com aqueles trejeitos firmes, a voz deliciosamente empostada e aquelas roupas de quem desafia todas as normas? Como poderia dizer que seu nome reverberava ainda pelos meus pensamentos com uma emoção de conquista e aproximação?

Mas apenas olhei para o soverte, comendo os canudos e mastigando, enquanto dizia, com inocência e desinteresse medido:

– Qualquer pessoa que me pergunte sobre escrita e fiquei curiosa sobre já é uma pessoa decente, ao meu ver.

Foi a vez dele de dar de ombros.

– Gostei dela; me pareceu bem diferente de todo mundo.

– Você e essa galera estranha. Jeff, Jeff. – Rimos e aproveitei a deixa para mudar de assunto. Eu era como uma ladra que entrava e saía furtivamente, ciente de seus segredos e da necessidade de fugir sempre, sem deixar rastros de desconfiança. Era uma aventura e um loucura bravia necessária que me levaria a um lugar em segurança. Eu roubava meus próprios segredos e os escondia nos lugares mais escuros e fechados de mim, porque eu não precisava que me questionassem ou me empurrassem em direção ao abismo em que eu já me encontrava. Assim, eu lançava minhas palavras para longe desse eu interior, levando todos ao campo seguro e certo de mim.

– E Alicia? Como estão as coisas entre vocês?

– Estamos ficando, Harper. Sabe? Uns beijos, umas saídas por aí, uns amassos...

– Pode ir parando por aí, bonitão! – Fiz sinal com uma das mãos para que parasse e comecei a rir de suas expressões indecentes em públicos, fingindo beijos molhados de língua que respondi expressando nojo, mas pensando, sem que pudesse fechar minha mente, na imagem de Talia.

– Pare com isso, Jeff! – Olhei em volta, procurando crianças como argumento para que ele se comportasse, mas sem querer de fato que ele ficasse quieto.

– Qual é, Harper! Quero ver quando for você, vai ficar toda derretida pelos cantos. Espera só para ver.

– Você me subestima demais. – E volto ao assunto – Não pretende nada mais com ela? Nada sério, por enquanto?

Ele respira fundo e olha para longe. – Não estamos namorando, mas também não estou sendo um cretino com ela; só estamos curtindo, entende? Deixei isso claro para ela e ela também está de acordo. Acho que ambos sabendo que não devemos esperar muita coisa disso. Sem pretensões.

– Espero que ela realmente esteja ciente disso. Você sabe que algumas pessoas não lidam bem com essa ideia, mas acabam aceitando para estarem com quem querem.

Ele me encarou.

– Você entende muito bem algumas coisas sem ter passado por elas, maninha.

– Sabe como é. É essa inteligência intelectual que me faz ser tão sedutoramente sexy.

Ele jogou sorvete no meu rosto e riu.

– Eu vou fingir que me comporto, para não manchar sua camisa nova.

Digo isso e, mais rápido do que ele jamais esperaria, lancei meu canudo com sorvete em sua direção. Passou-lhe pelos cabelos inexistentes e o crânio negro e brilhante se lambuzou. Rimos e nos limpamos, enquanto as brevidades da vida eram dispostas sobre a mesa, sem a preocupação do amanhã; sem as dores de um futuro incerto e, ali, por aqueles instantes pequenos e tão efêmeros, deixamos que a vida fosse somente isso: alguns segundos de riso e uma alegria intrépida que não teme fim.

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