“O que encobre as suas transgressões nunca prosperará, mas o que as confessa e deixa, alcançará misericórdia”.
— Provérbios 28:13-14.
Durante o jantar, Faní percebeu que, dessa vez, não precisava preocupar-se em camuflar os próprios sentimentos. Ed estava tão envolvido com a conversa da mesa que nem a percebia. Notou certa reserva da parte dele em relação à Mary, mas, ainda assim, era nítido a quem sua atenção pertencia naquele momento.
Faní já tinha aceitado a verdade, mas isso não fazia doer menos.
Mudando o próprio foco, passou a prestar atenção em Camila e Tim, que mantinham uma conversa à parte.
— Talvez devesse tentar. É uma graduação bem diversa, você poderia atuar em várias áreas.
— Não sei, eu odeio matemática.
— Sabe que em todas as faculdades tem matemática, não é? Acho que só Letras não tem.
— Aí me complicou, não gosto muito de ler.
— Como consegue ser amiga da Faní? — Tim perguntou, percebendo a atenção da prima sobre eles. — Ela fala de livros toda hora.
— Uai, eu não gosto do ato de ler, mas gosto de ouvir minha amiga falar. Tem uma diferença.
— Jura, ela consegue falar quando está com você?
Isso fez Camila abrir a boca, em choque.
— Ei, não te dei essa liberdade! Me respeita!
— Estou só brincando com você, Camila. — Tim sorria.
— Não sei por que eu ainda tento conversar com você, Timóteo! Sempre acaba me irritando.
— Se você me chamasse de Tim como todo mundo, talvez eu fosse mais legal.
— Vai esperar sentado!
Ela cerrou os lábios, negando-se a continuar a conversa que até então estava indo bem. Camila havia perguntado a Timóteo como era o curso de administração, pois estava pensando na possibilidade de fazer aquela graduação, e ele respondera como gente normal até certo ponto. Sempre aproveitava qualquer mínima situação para tirá-la do sério, o que, diga-se de passagem, não era lá muito difícil.
Na hora da sobremesa, para redimir-se, Tim pegou um pedaço extra de bolo de chocolate com cobertura para dar à Camila. Ela aceitou, mas não abriu a boca além do necessário para dizer “obrigada”. Faní anotou mentalmente uma pergunta que queria fazer à amiga.
Depois de comerem, as duas pediram licença e foram para o quarto da Prado. Tia Alice até as chamou para assistirem “Prova de Fogo” com o restante da família e Mary, mas Camila se adiantou em negar pelas duas.
— Desculpa te privar do seu filme favorito, mas eu quero mesmo conversar com você — explicou à amiga, sentindo um tremor acometer suas mãos. Caminhavam em direção ao quarto de Ed, onde pegariam um colchão para Camila dormir.
— É algum assunto específico? Você está me parecendo muito abatida, amiga.
— É. Um pouco complexo — respondeu, sentindo os olhos umedecerem. Engoliu o choro e as duas adentraram o quarto do rapaz. Como uma forma de fugir por mais alguns minutos de seus duros pensamentos, Camila admirou o ambiente. — Uau, que organizado. E meio vazio.
Faní não respondeu, não gostava de ficar observando o espaço íntimo de Ed. E, falando nele...
— Por que não pediu minha ajuda, mocinha? — O rapaz entrou no próprio quarto e interrompeu os intentos de Faní, que empurrava a cadeira da escrivaninha dele para subir e conseguir pegar o colchão em cima do guarda-roupa.
— Você estava ocupado — Faní respondeu, apenas.
— Nunca estou ocupado demais para você, Faní — ele respondeu.
Camila mirou a amiga rápido, pronta a pegar sua reação. No entanto, Faní continuou com as feições plácidas e tranquilas, quase inexpressivas. A Ambrósio se conteve para não revirar os olhos. Se Ed e Faní não se considerassem primos, ela poderia jurar que eles tinham alguma coisa. Queria tanto que não se considerassem assim. Eles não possuíam o mesmo sangue, afinal de contas.
— Obrigada, Ed — Faní agradeceu, estendendo as mãos para pegar o colchão.
— Eu levo, besouro — brincou, fazendo alusão a uma fábula de uma ficção cristã que Faní amava.¹⁰
Faní sorriu. Camila balançou a cabeça, indignada com a situação.
Ed levou o colchão e também providenciou um lençol de elástico para cobri-lo. Depois de tudo ajeitado, as meninas colocaram seus pijamas e se sentaram em suas respectivas camas. Camila tremia tanto que sentou em cima de suas mãos, tentando contê-las.
— Cami, o que você quer falar tem a ver com o Tim? — perguntou Faní. Camila franziu as sobrancelhas, sem entender. — Vocês estão brigando tanto ultimamente, fiquei me perguntando se aconteceu alguma coisa ruim entre vocês e ninguém me contou. Se ele... acabou sendo chato demais ou algo assim.
Camila sorriu, mas seus olhos umedeceram, por isso respirou fundo antes de começar.
— O Timóteo é chato por natureza, mas não a ponto de me entristecer como eu mesma sou capaz de fazer — disse, olhando para baixo. Camila não era uma pessoa de rodear um assunto que precisava falar. Ela seria direta. — Faní, o que eu vou te contar, talvez mude sua visão sobre mim para sempre. O Timóteo é um bom ponto de partida.
Faní ficou em silêncio, aguardando explicação.
— Ele é um chato, sim, mas lindo — iniciou assim, surpreendendo a outra. — Eu e mais umas duzentas pessoas acham isso, não é novidade alguma.
— Não é novidade — concordou Faní —, mas não achei que fosse o seu caso.
— É sim — Camila confirmou, retirando as mãos de baixo de si para olhá-las. — O Timóteo é meu ideal de beleza, digamos assim. Eu era apaixonada por ele quanto tinha uns... 15 anos, talvez, um pouco antes de você ir embora daqui. Lembra que aconteceu o escândalo com ele nessa época?
Faní apertou os lábios. Ela se lembrava.
Tim tinha seus 22 ou 23 anos e estava se envolvendo com uma moça da igreja. Os dois não chegaram a avançar para níveis de compromisso, pois Tim deixou claro que não era esse o seu objetivo, mas, ao mesmo tempo, queria e conseguiu algumas das regalias permitidas ao compromisso. Os pais da moça, sabendo disso, não foram sábios para chamar o pastor em particular e contar o que havia acontecido; não, simplesmente pararam um culto e contaram para todo mundo a “ovelha negra” que Timóteo Júnior era. O primo de Faní não negou os seus atos, tio Timóteo ficou arrasado. A partir daquele momento, Tim se desligou de tudo o que fazia na igreja por livre e espontânea vontade, prometendo que nunca mais algo daquela natureza iria acontecer. Mesmo que não se arrependesse dos seus pecados, Tim se arrependia de ter envergonhado o pai e não queria mais repetir.
Os anos se passaram e Faní soube por Ed que Tim não mudara. Ele continuou vivendo na gandaia como desejava, mas agora respeitava o espaço ministerial e doméstico de seu pai.
Por isso, tendo aquela imagem do primo na mente, ao voltar para Laguinhos, Faní se surpreendeu ao encontrá-lo tão diferente.
E, de repente, nesse momento, ela entendeu o que aconteceu com ele. Finalmente aconteceu!
— Eu fiquei tão magoada com ele — Camila continuou, alheia à epifania da amiga. — Senti que minha confiança foi quebrada, porque ele se passava por bom moço e eu... confesso que esperava que alguma coisa pudesse acontecer quando eu fosse mais velha, tipo agora. — Esboçou um sorriso, os olhos ainda baixos enquanto as lágrimas se acumulavam. — A partir daquele momento, decidi que ia me desapaixonar. Timóteo nunca parou de implicar comigo, mas eu não estava mais a fim disso. Passei a ignorá-lo, como faço até hoje. Prometi a mim mesma que nunca mais iria me apaixonar por um traste como ele. Me desculpa a palavra — acrescentou rápido, olhando para Faní —, mas era o que ele era para mim na época.
— Entendo — disse Faní, apenas. Ela queria levantar sua voz e defender o primo, dizer que ele havia convertido seus caminhos ao Senhor. No entanto, julgou que Camila não havia terminado o discurso e o pior ainda estivesse por vir. — Vocês... se envolveram agora?
— Não! — Camila exclamou, os olhos arregalados. — Não, não, Timóteo não tem nada a ver com os meus erros. Ele só foi o pano de fundo para te mostrar como eu fui hipócrita.
A Ambrósio respirou fundo. Faní temia mais a cada segundo de silêncio entre elas.
— Em São Paulo, eu conheci um rapaz. Na verdade, encontrei um rapaz que já conhecia — a moça voltou a falar. Sentindo que deveria fazê-lo, Faní desceu de sua cama, sentou ao lado de Camila e estendeu a mão para segurar uma dela. A outra fechou os olhos e mais uma vez baixou o semblante enquanto as lágrimas caíam em seu rosto. — Ele era tão bonito, ia à Escola Bíblica Dominical, servia no Culto da Família e ainda estava frequentando o ensaio dos jovens. Decidi que ele estar tanto na igreja demonstrava um bom caráter. Quando nos falávamos, ele era respeitoso e cuidadoso, tanto que demorei a crer que ele queria algo comigo. Parecia um simples trato entre irmãos. Ele me chamou para sair, ir ao cinema. Ligou para os meus pais para pedir permissão, e eles deixaram — continuou contando de olhos fechados, negando-se a ver qualquer que fosse a expressão facial de Faní. — Nós fomos ao cinema, assistimos metade do filme. Estava escuro, não haviam tantas pessoas na sessão, estávamos muito próximos... Um ambiente perfeito para um filme romântico secular e também para um casal de solteiros avançar sinais não permitidos.
Camila abriu os olhos, mas continuou sem olhar para Faní. A Prado se continha para não chorar junto.
— Ele se aproximou e, quando eu vi, estávamos nos beijando. Eu não recuei como deveria, não impedi. Só correspondi e quando parei era tarde demais, já tinha feito.
— Sem vigilância, essas coisas acontecem, Cami — Faní tentou dizer, mas a amiga a interrompeu.
— Eu sei, mas não parou por aí. Quando meus pais ligaram para mim para perguntar como foi o encontro, eu não contei para eles. — Camila parou um instante para chorar. — Eu não contei, estava com muita vergonha, disse que não iria mais me encontrar com o Yago porque pensávamos muito diferente. Não era totalmente verdade, então eu menti. Menti para os meus pais pela primeira vez na vida e essa foi só a beirada do abismo.
No dia seguinte, Yago procurou Camila para tentar se desculpar, dizendo que queria algo realmente sério com a moça. Ainda muito envergonhada, ela tentou afastar-se dele, no entanto, não conseguiu. Estava apaixonada, terrivelmente apaixonada por aquele rapaz. Foi ignorando os alertas em sua mente, deixando de contar detalhes de seu dia a dia para os pais. Ao fim de seu tempo em São Paulo, Camila estava vivendo com Yago um relacionamento, sem ter nome de relacionamento, com as permissões de uma aliança.
— Camila... — Faní murmurou, chocada.
— Não chegamos a cair em fornicação — disse rápido. — Em sua infinita misericórdia e graça, o Senhor não permitiu que acontecesse. De repente, minha avó decidiu que queria se mudar para Laguinhos e tudo foi ajeitado em uma semana. Fui obrigada a me afastar do Yago e só então foi que percebi, realmente, o tamanho do abismo em que eu havia me jogado. Eu estava suja até o pescoço. Pequei de todas as formas possíveis contra meu Senhor, contra meus pais, contra mim mesma. — Ela balançou a cabeça e ergueu os olhos aos de Faní. A Prado não enxergou outra coisa que não angústia profunda e intensa naqueles olhos castanhos escuros. — Você entende que aos 15 anos eu consegui parar de gostar de um rapaz que eu julgava mal caráter, e aos 20 não consegui me afastar de um que tinha impiedade gravada na testa? Preferi ignorar esse último fato. Fui hipócrita, Faní. Julguei Timóteo por anos, até o tratei mal para ele nunca ter sequer uma única oportunidade de cogitar se aproximar, para no fim eu agir de forma pior que ele? Timóteo pelo menos nunca se fingiu de crente, todo mundo sabia que ele estava ali pelo pastor e a família. Mas eu não. Eu menti para mim mesma e caí na primeira oportunidade que surgiu.
— Você quer dizer que... não era... — Faní não conseguiu terminar a pergunta. Tal ideia parecia-lhe inconcebível. Camila era piedosa!
— Eu não era! Não tem outra opção! — exclamou a moça, indignada consigo mesma. — Se eu era uma cristã, onde ficou o meu amor pelo Senhor? Consegui ignorar cada alerta do Espírito Santo só porque queria provar aquele negócio diferente que sempre me foi dito que deveria esperar para provar. De repente, a espera não fez mais sentido, atender meu coração era mais prazeroso e fácil. Meu suposto amor pelo Senhor foi pelo ralo! Não consigo me considerar uma filha Dele sabendo que agi dessa forma.
Faní nada falou, absorvendo as palavras da amiga. Jamais havia imaginado que Camila teria tais condutas.
Mas, afinal de contas, qual era a grande surpresa nisso? Não estavam todos os cristãos ainda sujeitos ao erro, caso não vigiassem? Não estavam todos ainda presos num corpo corrupto, que necessitava desesperadamente da glorificação em Cristo?
Ela pensou em expressar essas palavras, mas a amiga ainda não havia terminado.
— Passou-se um mês desde que voltei, e ele veio atrás de mim — disse, cheia de dor. — De alguma forma, Yago queria que eu ficasse com ele, que nos casássemos. Não conheço o coração dele, apenas o meu, por isso não entendo suas intenções, mas fato é que não estava disposto a desistir. Tem uma semana que eu estou deixando claro a ele que nunca vai acontecer, que eu errei, que não era para termos ficado juntos. Hoje ele finalmente entendeu e disse que iria embora. Eu finalmente entendi que já passou da hora de confessar meus erros e pecados aos meus pais e ao pastor. Empurrei com a barriga até hoje, mas não aguento mais. O Senhor tem cobrado o meu posicionamento. Tomei Santa Ceia antes de confessar — mencionou tal fato com profundo desgosto e agonia. — Eu sei que não sou merecedora, mas se não acreditar que Cristo ainda pode me perdoar, no que eu vou acreditar, Faní? — Encarou a amiga novamente, desesperada. — Se eu não crer, o que será de mim? Meu destino certo é o inferno. Eu não quero isso.
Faní viu em Camila um verdadeiro desejo por Cristo, e imediatamente agradeceu ao Senhor por não ter permitido que o coração dela endurecesse diante de uma falsa crença de que Ele não poderia mais aceitá-la.
— O Senhor ainda ama você — Faní disse, apertando a mão da amiga. Camila sentiu o peso daquelas palavras. — Nós subestimamos o quanto podemos afundar a nós mesmos no pecado, minha amiga, mas às vezes também podemos subestimar o tamanho do amor e da graça de Cristo sobre nós. Enquanto houver o verdadeiro arrependimento, aquele que confessa e luta avidamente para nunca mais cometer o mesmo pecado, haverá o perdão. Não faça mais isso — enfatizou, olhando no fundo dos olhos da outra. — Não confie mais em si mesma como fez, não deixe o inimigo te cegar dizendo que o pecado é melhor. Lembre-se que o salário desse largo caminho é a morte.
Camila assentiu e libertou o pranto enjaulado em seu coração. Ela se sentia um pouco mais leve, sabendo não estar mais sozinha. Tantos dias guardando aquele segredo, desgastando-se um pouco mais a cada hora passada... Não aguentava mais.
— Você... vai falar com meu tio e seus pais? — Faní questionou após um tempo consolando a amiga.
— Foi por isso que eu falei primeiro com você — Camila se afastou do abraço da outra para poder olhá-la. — Eu vou decepcionar os meus pais. Vou assistir a confiança deles em mim se quebrando, bem diante dos meus olhos. Sei que meus atos tem consequências, mas eu preciso que alguém esteja comigo. Sei que também deve estar decepcionada, mas... Você pode ir comigo?
— Eu estou surpresa, não esperava isso de você — Faní respondeu, causando mais lágrimas em Camila. — E jamais quero esperar o pecado de você, ainda que esteja sujeita a ele. Quero esperar que seu espírito vença a carne diariamente, e quando não conseguir e eu puder ajudar, estarei lá. Sou sua amiga e estarei do seu lado sempre que precisar.
Camila agarrou Faní e as duas choraram juntas. A Prado orou ao Senhor em voz alta pedindo pela graça dEle sobre a vida da amiga. Giovani e Eliane iriam ficar chocados, bravos, revoltados, quem sabe mais o quê. A moça se colocou no lugar de Camila. Qual não seria a sua culpa, a sua vergonha, o seu medo? Quais não seriam as dificuldades dela reerguer seu relacionamento com Deus, seus pais e o Corpo de Cristo? Faní orou por misericórdia.
As consequências internas e externas sobre os atos de Camila viriam, e ela precisaria do Pai para suportá-las.
— Vou falar com meus pais amanhã, depois da EBD, e à noite quero falar com o pastor — ela anunciou, a voz baixa. Sua cabeça estava apoiada no ombro de Faní. — Não quero mais adiar essas conversas. Preciso resolver o mais rápido possível.
Apesar de sua dor, a Prado estava grata pela amiga ter tomado aquela primeira atitude e estaria do seu lado quando ela fosse tomar as próximas, não deixando que ela vacilasse ou desistisse. Não permitiria que Camila perdesse sua salvação, naquilo que estivesse em seu alcance fazer.
— Você está certa — disse, recuperada de seu choro. Apertou a amiga entre seus braços. — Eu vou estar com você, tá bom?
Camila assentiu e, mais uma vez, agradeceu ao Senhor por Sua infinita graça. Ele não havia desistido dela.
¹⁰ Referência à Tesouro do Coração, livro de Nathaly Brandão. Chamar alguém de “besouro” é o mesmo que chamar de “apressado”, “impaciente”.
Tudo bem, eu demorei, mas quando voltei, soltei uma bomba.
Estão todos respirando ainda?
O que acharam das confissões da Camila? Chocados? Já esperavam? Me contem tudo.
E, acreditem, os babados nesse livro ainda não acabaram. Estamos apenas começando.
Obrigada por lerem e perdão pela demora em postar o capítulo. Não sei se conseguirei publicar no sábado, estou um pouco ocupada desse lado da tela. Mas eu aviso vocês, tá? Peço compreensão.
Fiquem com Deus.
Com amor, Nathaly. ❤