No centro do quarto, com a varinha pressionada sobre sua pele, Anabel permaneceu estática. Não temia o perigo iminente de um ataque, mas o choque da descoberta a impediu de se mover. Entretanto, nem todos estavam dispostos a esperar por uma rendição.
– Estupefaça! – a voz masculina soou abafada pela máscara. Emily aparou o corpo da amiga antes de caírem juntas com um baque seco.
– Seu imbecil! – reclamou sentada no chão, com Anabel desacordada em seus braços – Eu disse que faríamos isso pacificamente!
– Você teve sua chance. – o mascarado guardou a varinha. – Quanto drama... Ela vai sobreviver, sabia?
– Engraçadinho. – Emily olhou-o com ferocidade.
– Quer parar de me olhar assim? Sua amiga está ótima. Vou alterar a memória dela e partiremos imediatamente.
– Agora? Mas...
– Agora.
Atlas caminhou até as duas, abaixou-se e jogou o corpo desacordado de Anabel sobre os ombros, depositando-a na cama em seguida. Ia puxar a varinha novamente quando Emily esticou o braço, impedindo-o de prosseguir.
– Ela não vai se lembrar de nada disso, não é? – questionou afastando os cabelos que caíam desajeitados pelo rosto de Anabel.
– Você se lembrava de alguma coisa? – a jovem retirou o braço lentamente e concedeu uma implícita permissão para prosseguir. – Foi o que pensei – desencaixou a máscara, encostando a ponta da varinha na têmpora de Anabel. – Fallacia Memoria.
Mesmo sem muita luz no ambiente, era possível constatar seu aspecto jovem. Tinha olhos verdes como esmeraldas, destacando-se em contraste com os cabelos muito escuros e a pele morena, além de feições bem definidas. Uma cicatriz cortava verticalmente seu olho esquerdo.
– As portas do Saguão ainda devem estar abertas, vi Umbridge saindo com o Potter e a Granger. – ele explicou. Emily estava sentada na ponta da cama ouvindo-o, compenetrada nos próprios dilemas.
O rapaz levantou-se primeiro e ela aproveitou para aproximar-se de Anabel. Depositou um envelope na escrivaninha e lançou-lhe um último olhar. Do lado de fora, Atlas já havia reposicionado a máscara no rosto.
– Espero que tenha sentido saudades de casa, pirralha. – brincou, antes de retomar a aparência felina.
A dupla cruzou o castelo na ponta dos pés, torcendo para que ninguém aparecesse pelo caminho. O gato ia na frente inspecionando a movimentação e Emily seguia-o logo atrás. Passaram direto pelo Salão Principal e correram pelas grandes portas de carvalho do Saguão de Entrada, descendo a escadaria de pedra adiante. Atravessaram parte do gramado e chegaram à trilha que levava ao vilarejo de Hogsmead. A luz da lua e o brilho das estrelas eram as únicas fontes de iluminação naquela noite, além do imponente castelo, do qual Emily agora se despedia.
Seguiram até onde esperariam o trem, a fim de embarcar no último expresso da noite. O gato adentrou uma cabine vazia e tornou-se novamente humano, enquanto ela apressadamente fechava as cortinas.
– Álibi garantido. – Atlas relaxou em uma das poltronas e simpaticamente indicou a outra para que fizesse o mesmo. – Para todos os efeitos, você foi vista deixando a escola e pegando o trem sozinha. Deixou a carta? – ela assentiu, de cara amarrada. – Está preparada? Não pode arruinar isso.
Emily manteve o silêncio. Seus olhos se ergueram do chão e repousaram fixamente nos dele, desafiando-o.
– Já está arrependido por confiar em mim, Atlas? Eu ainda nem te dei motivos. – ela continuou com a postura ríspida ao falar.
– Como se tivesse sangue frio para agir... – Emily desviou o rosto quando ele curvou-se, numa pose prepotente de quem sabe o que está dizendo. – Nós dois temos muito a perder, só quero me certificar de que está pronta.
– Não se preocupe. Vou cumprir com a minha parte e você com a sua.
– Ótimo. Logo entraremos em ação.
– Mal posso esperar. – suspirou com desdém. Atlas afastou minimamente as cortinas com o indicador e espiou a paisagem lá fora.
– Descanse. Só chegaremos pela manhã.
No restante da viagem, prevaleceu o silêncio. Emily manteve-se de cabeça baixa, encarando os sapatos com mais interesse do que o recomendável, já que não pretendia cair no sono diante dele.
A fúria da noite e seus mantos negros começavam a abandonar os céus quando desceram do trem, deixaram a plataforma final e alcançaram a escadaria. Atlas em seu disfarce e Emily sonolenta ao seu lado.
Os dois passaram por ruas vazias e finalmente chegaram à um beco imundo, sem iluminação alguma. Tinha um cheiro terrível, já que o chão estava coberto de lixo. Atlas avançou até o fim deste, desviando das latas caídas e poças d'água.
– Vamos aparatar. – ele colocou-se de pé, limpando a barra das roupas com um feitiço. Atlas esticou o braço e a garota receosamente aceitou, imaginando que a sensação de aparatar pela primeira vez fosse extremamente desconfortável. Ela olhou para cima numa tentativa de encontrar distração enquanto se preparava. Já começara a amanhecer. – Quando chegarmos, concentre-se no que ensinei.
– Eu sei... – ela resmungou apertando os olhos.
– Devo obedecer. É o que recomendo. – Atlas repetiu as palavras cravadas na pele exposta da mão dela e conferiu seu relógio de bolso. – Já devem estar nos esperando.
Ela sentiu um puxão e o mal estar típico. A pressão sob o peito que a impedia de respirar corretamente, a incidente dor de cabeça e o estômago que parecia estar sendo revirado e retorcido. Quando finalmente chegaram ao local, titubeou sob o efeito da desorientação e buscou apoio na parede mais próxima.
– Opa! – Atlas segurou-a pelos ombros e ela cobriu a boca, sentindo a náusea crescer. – Tudo bem?
– Afaste as patinhas se não quiser ter o focinho quebrado. – ele obedeceu e Emily colocou as mãos nos joelhos, puxando o máximo de ar que aguentou. Arrumou os cabelos e se endireitou outra vez. – Vamos acabar com isso.
– Muito bem. Por aqui, mademoiselle. – indicou a porta da frente com uma reverência simples.
Emily analisou o lugar, um hall de entrada escuro. Na porta mais próxima, cuja maçaneta de bronze brilhava, vozes entoavam uma discussão, embora a jovem não fosse capaz de identificar com precisão sobre o quê. Atlas bateu na porta e as vozes silenciaram.
– Entre logo! – alguém gritou lá de dentro com impaciência.
Atlas pediu que Emily esperasse e entrou, fechando a porta atrás de si e deixando-a sozinha. Voltou pouco depois, com a face séria.
– Venha. – disse num tom sombrio e temeroso. – Ela quer vê-la.
Ela.
Emily imaginou que estivesse se referindo à bruxa que aguardava de costas para a entrada, conversando com outra mulher. Era alta, usava vestes escuras e seu cabelo era longo e preto, caindo em ondas bagunçadas até pouco antes da cintura.
– Eu a trouxe até aqui, como prometido. – Atlas anunciou em voz alta.
A mulher virou-se. Emily levou alguns segundos para reconhecer aqueles olhos escuros, famintos pelo caos. O rosto ossudo cheio de marcas, consequência dos anos vivendo em péssimas condições. O sorriso que colocou em seus lábios machucados e desidratados, denotava a loucura incorrigível. Tinha uma postura descontraída, brincando com a varinha entre os dedos longos e magros. A bruxa parecia ter acabado de sobreviver à uma luta feroz.
– Ora, ora... A estrelinha voltou para casa. – disse inocente e gargalhou de maneira descomedida.
Emily teve a certeza de que aquela era a imagem vívida de uma pesadelo que a atormentava há muito tempo, no fundo de suas memórias.
– Olá, mãe.
(...)
– Minha cabeça. – Emily pressionou as mãos sobre o rosto e Atlas guiou-a até a cama.
– Logo vai se acostumar com a sensação. Podemos conversar depois que passar. – ele ajudou-a a se acomodar sobre a pilha de travesseiros.
– Não. – ela retirou as mãos do rosto e apoiou a coluna na cabeceira, puxando as cobertas para perto. – Quero explicações e vai me dar todas elas.
– Eu não acho que seja uma boa ideia fazer isso agora.
– Agora. Por favor.
Atlas suspirou. Já havia imaginado o momento diversas vezes, mas a realidade apresentava-se muito mais complexa se comparada aos roteiros traçados por ele.
– Preciso saber do quanto se lembra – ele sugeriu. – Partiremos daí.
– São só coisas sobre a minha infância. Quando você e sua mãe cuidavam dos jardins... O elfo preparando tortas de limão na cozinha... E também...
Ela paralisou. Emily refletiu um pouco e encolheu-se. Um calafrio percorreu sua espinha conforme adentrava o emaranhado de memórias escondidas em alguma parte obscura de si.
– Seus pais? – ele concluiu, obtendo um gesto sutil como resposta. – Vou começar por essa parte.
Atlas acomodou-se na cadeira próxima à escrivaninha e apoiou o braço sobre esta.
"Seus pais te criaram em segredo até o dia em que foram sentenciados à Azkaban. O Ministério e a Ordem certamente agiriam ao descobrir sua existência e seria tratada como a escória da sociedade. O Lorde das Trevas havia acabado de tentar se livrar da família Potter, mas desapareceu sem deixar rastro algum, até para os mais fiéis seguidores. Os Lestrange estavam decididos a encontrar qualquer informação que levasse ao real paradeiro de seu mestre."
– O que fizeram aos Longbottom... Foi nessa época, não foi? – Emilly interrompeu e ele assentiu, se preparando para continuar.
– Quando Bellatrix e Rodolphus foram presos, o Ministério começou a revistar casas e abrir inquéritos em busca de quaisquer indícios de envolvimento com Artes das Trevas. Foi quando Lucius Malfoy ordenou que o elfo doméstico deles te colocasse para fora. Queriam proteger o pequeno Draco e você representava um risco.
"Era injusto. Você merecia o conforto de uma cama macia, roupas limpas e boas refeições, mas nenhuma outra família bruxa aceitaria a filha de Belatrix Lestrange vivendo em seus lares. Ninguém iria querer se indispor com o Ministério, caso descobrissem. Até mesmo seu padrinho, Barty Crouch Jr., não poderia ajudar.”
– Ele me reconheceu quando esteve em Hogwarts. Me contou algo que não compreendi naquela época.
– Bem, agora você entende. – ele deu de ombros. – Disse que se lembra da minha mãe?
– Agnes, certo? A jardineira da Mansão Malfoy. Ela não é... Bem, o tipo de pessoa que vocês costumam odiar? Sabe que o filho se tornou um Comensal da Morte?
– Minha mãe faleceu há anos. Na verdade, já havia partido há pelo menos duas semanas quando o elfo apareceu para entregá-la aos nossos cuidados. Narcisa achou que, crescendo juntos, eu poderia monitorar você quando fossemos à Hogwarts, para garantir que tudo seguisse conforme o planejado e nenhuma suspeita fosse levantada sobre a sua identidade. Meu trabalho seria te trazer de volta, quando a hora finalmente chegasse. Durante anos, vivi nas sombras e aprendi absolutamente tudo o que um bruxo deve saber. Assim, quando seus pais sairem de Azkaban, eu poderei me aproximar e servir ao Lorde das Trevas.
– Me entregou aos trouxas. Acha que vão aceitar isso assim tão facilmente? – Emily desafiou-o.
– Foi a única saída. Os trouxas estavam cercados por uma bolha de ignorância. Além disso, era o esconderijo mais seguro possível, não acha? Quem imaginaria que a filha de Bellatrix Lestrange estaria crescendo entre tolos e fracos? – a jovem olhou-o desgostosa e Atlas levantou-se da cadeira. – Estou aqui para levá-la para casa.
– Não. – disse sem pestanejar, levantando-se também. – Não vou voltar.
– Você não compreendeu. – ele deixou uma risada nasal escapar e cruzou os braços. – Se não aceitar seu destino, todas as pessoas ao seu redor se tornarão alvos. Mas se for comigo, me comprometo a ajudá-la.
– Como? Pior ainda... Por que eu deveria confiar em você? – ela semicerrou os olhos em pura indignação.
– Existe uma única coisa que desejo e para conseguir, estou disposto a fazer o que for necessário. Se me ajudar, posso retribuir o favor.
– Está, por acaso, tentando sugerir um acordo?
Atlas olhou pela janela. A luz do sol começava a iluminar o quarto preguiçosamente e ele sabia que não poderiam estender aquela conversa por muito mais tempo, já que os demais habitantes da casa em breve poderiam despertar.
– O acordo é simples: Você volta para casa e irei garantir a segurança das pessoas com as quais você se importa. Bellatrix e Rodolphus vão procurar por você assim que puderem, então não pense que rejeitar minha proposta vai ser sua melhor escolha. Pode ter a minha ajuda ou pode fazer isso sozinha, mas garanto que não vai conseguir.
– Quer que eu sacrifique o resto da minha vida pela proteção de pessoas que amo? O meu caráter pela segurança deles? – ela ponderou, analisando as palavras com cuidado.
– Não é tão difícil escolher, huh? – ele riu. – E então?
– Entendo porquê eu faria, mas... E você? O que ganha com isso?
– Além de reunir uma família feliz? – ele brincou e retirou a máscara de cima da cama. – Não é tão nobre, mas dediquei minha vida à isso e não pretendo parar agora. Eles querem a filha das trevas de volta? Eu levarei.
Emily permaneceu em silêncio. Um misto de emoções revirava seu estômago do avesso e fazia com que ela não conseguisse pensar direito. Ela não queria confiar nele, não queria acreditar naquilo, porém...
Por bem ou por mal, seria encontrada e forçada a seguir o Lorde das Trevas. Ao menos com a ajuda de Atlas, poderia salvar as pessoas ao seu redor. Ela até poderia estar condenada, mas eles... Ainda não. Ainda existia alguma esperança.
– Eu aceito.
— · —
Pra quem tinha teorias sobre os pais da Emily... Vocês acertaram?
O que será que vem por aí?
Apaguei o capítulo anterior, por um motivo simples: Atlas Montgomery (um castigo na minha vida).
Quero melhorar a ilustração do Fred (acidentalmente fiz o Atlas muito bonito e achei injusto rs). Então, a ilustração do Atlas vai ficar solitária nesse capítulo aqui e depois vou postar uma do Fred (realmente boa) em outro.
Beijinhos (do gatinho) pra vocês!