Endossimbiose | Versão Em Por...

By ElisMariangela

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Donecea Gaxy, uma iátrica determinada, se junta ao ardiloso e charmoso Arkadi Phaga para alcançar o núcleo da... More

Capítulo 1. Pacientes
Capítulo 2. História da Doença Atual
Capítulo 3. Parasitas
Capítulo 4. Emergência
Capítulo 5. Alta
Capítulo 6. Difusão
Capítulo 7. Proteassoma
Capítulo 8. Recaptação
Capítulo 9. Mitocôndria
Capítulo 10. Toxicologia
Capítulo 11. Anemia
Capítulo 12. Sepse
Capítulo 13. Hemorragia
Capítulo 14. Nó de Sutura
Capítulo 15. Instinto
Capítulo 16. Descamação
Capítulo 17. Hereditariedade
Capítulo 18. Convergência Evolutiva
Capítulo 19. Cicatrizes
Capítulo 20. Endorfina
Capítulo 21. Linfonodo Sentinela
Capítulo 22. Evolução
Capítulo 23. Cremação
Capítulo 24. Crisoterapia
Capítulo 25. Células
Capítulo 26. Comorbidade
Capítulo 27. Memórias
Capítulo 28. Dor
Capítulo 29. Luto
Capítulo 30. Subcutâneo
Capítulo 31. Olhos
Capítulo 32. Humanos
Capítulo 33. Mãos
Capítulo 34. Medo
Capítulo 35. Ansiedade
Capítulo 36. Pressentimento
Capítulo 37. Tremor
Capítulo 38. Inconsciência
Capítulo 39. Consciência
Capítulo 40. Necrose
Capítulo 41. Cicatrização
Capítulo 42. Sede
Capítulo 43. Ruminação
Capítulo 44. Solidão
Capítulo 45. Fúria
Capítulo 46. Digestão
Capítulo 47. Enterro
Capítulo 48. Fadiga
Capítulo 49. Coração
Capítulo 50. R.E.M.
Capítulo 51. Ouvidos
Capítulo 53. Latência
Capítulo 54. Febre
Capítulo 55. Necrotério
Capítulo 56. Apoptose
Capítulo 57. Metástase

Capítulo 52. Cura

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By ElisMariangela

Terceiro círculo do Império
Pacífia

No mesmo noxdiem, nós viajamos para Pacífia.

Na nave, Doxy me entregou a dose como se fosse minha bebida preferida e eu balancei o líquido dentro do copo, assistindo meu reflexo turvo se perguntar sobre aquele pequeno mistério que eu nada podia fazer senão engolir.

– Por mais quanto tempo vou ter que tomar isso? – Não fugi da pergunta. Doxy deu de ombros, como se não fosse importante.

– Até que não seja mais necessário.

– E quando vai ser isso?

– Quando não houver mais uma guerra para nos preocupar.

Confirmei em silêncio. Não fazia sentido desejar o fim do fevino quando ele era a minha melhor arma. Inspirei fundo e virei a dose na garganta.

– Você tem algum plano para quando a guerra terminar? – Perguntei, curioso. – Caso ela não termine com você, no caso...

Doxy abriu o sorriso de quem sempre tinha um plano.

– Pretendo ter algo que nunca vi, mas ouvi falar algumas vezes... – Ela fez uma pausa dramática. – Uma vida normal. – Soltei uma risada que a contaminou. – Mas e você? Tem algum plano para o futuro?

Um silêncio pesado com o futuro que eu desconhecia pairou entre nós; muito maior do que eu esperava.

– Eu devia ter um, não devia?

– Posso botá-lo nos meus... Quando a guerra acabar. – Seu sorriso me fez acreditar na promessa de que, algum dia, eu nunca mais teria de me preocupar com a solidão. – Quando finalmente houver um amanhã para desejar...

Abaixo dos olhos de Doxy eu me sentia visível pela primeira vez, como se importassem até as palavras que eu ainda nem tinha dito, como se minha mente fosse um mistério que valia a pena decifrar... Eu queria avisá-la que eu não valia o esforço, mas ela era o tipo de pessoa que se esforçava por muito menos.

Doxy se aproximou e deslizou seus dedos pelo meu rosto. Tomei-os e beijei seus nós, meus olhos nos seus, aceitando a sua promessa e fazendo a de que nada nessa guerra, por mais assustador que fosse, me faria fugir de novo.

Dessa vez eu ficaria até o fim. E, se fosse a morte o que sobrava para os que ficavam, então ela enfim conheceria o meu rosto.

– Que hoje nos leve até ele então.

• • • ֍ • • •

Ao chegarmos às portas douradas do palácio do metriona fomos cumprimentados por um paredão de fageines com suas espículas afiadas e imponência, nos fazendo parar. Meu dedo envolveu o gatilho da minha arma e eu prendi a respiração por um instante, aguardando...

– Os Áulicos nos enviaram. – Um dos fageines disse, as vestes cheias de broches em uma tentativa de professar poder. – Para que cumpram com o acordo.

Na frente do grupo, Korrok fez um movimento de cabeça e avançou para o palácio, fazendo os fageines saírem do seu caminho para que pudéssemos passar.

– Pelo visto Bleine decidiu mandar reforços... – Sussurrei para Doxy.

– Reforços? Acho que eles só estão aqui para conferir quando terminarmos o trabalho... E então para se livrar de nós quando acabarmos.

– Ainda bem que estamos armados então. – Cutuquei-a com a ponta da minha arma, fazendo Doxy bufar. – Se der tudo errado, é só apertar o gatilho.

– Meus gatilhos já estão todos apertados.

Caminhamos em silêncio pelos corredores do palácio, os sons dos nossos passos sobre o piso lustroso ecoando pelo vazio dos salões, como se convidássemos o inimigo para nos confrontar. Mas apenas silêncio nos envolveu em resposta. Parecia não haver mais ninguém no palácio inteiro, – ou no universo – e eu me perguntava se isso era verdade ou se era o que queriam que pensássemos...

– Será que o metriona fugiu? – Sussurrei para Doxy, que, com os olhos nos corredores, balançou a cabeça para os lados.

– Não... Ele teria de nos temer para fugir.

E então ouvimos os disparos às nossas costas.

Nos viramos para as paredes douradas por onde tínhamos passado, sólidas há um instante, mas agora abertas, permitindo a passagem de centenas de metrionas com suas armas, uma muralha de aurium líquido tentando nos afogar.

Os fageines voaram sobre as criaturas douradas, escudos pálidos bloqueando os projéteis. Seus corpos se moldaram em placas cheias de espículas que atravessavam o exoesqueleto dos metrionas e os arremessavam nas paredes.

– Eles vão segurar os guardas! – Korrok gritou e gesticulou para que o seguíssemos, mas, antes que pudéssemos avançar, uma parede mais próxima se rompeu e os projéteis criaram uma chuva de fagulhas ao redor das nossas cabeças. Disparamos de volta, mas mais e mais metrionas surgiam da escuridão.

A boca de uma arma se apontou para o meu peito e meus pés fizeram menção de fugir, mas, antes, Korrok avançou e desferiu um golpe no inimigo, desestabilizando-o o suficiente para tomar sua arma. O vorrampe disparou contra a armadura de aurium do metriona, tomou seu corpo e o usou de escudo para nos proteger, mas aquilo não funcionaria por muito tempo.

– CORRAM! – Korrok rugiu e todos imediatamente obedeceram.

Doxy e os demais fugiram pelo corredor, mas os passos dela pararam ao perceber que eu não os estava seguindo. Seus olhos se cravaram em mim e, abaixo dos gritos e disparos, eu confessei:

– Não podemos fugir para sempre.

Nem dos inimigos, nem dos nossos erros.

Tirei do bolso um dos cartuchos de energia e senti o peso do frasco nas minhas mãos, seu poder, sua capacidade intrínseca de criação e destruição... E então o arremessei para os metrionas com todas as minhas forças.

O cartucho se chocou na parede e se partiu em uma chuva de cacos brilhantes que libertaram uma esfera branca de energia. Ela cresceu como supernova, engolindo todos os metrionas em um tsunami de fogo que derreteu suas armaduras e iluminando o palácio na minha direção. Eu já tinha perdido as contas de quantas vezes olhei para as minhas mãos e não soube como elas ainda conseguiam se fechar ao redor do gatilho de armas, das gargantas de inimigos e das cordas que amarrei para pendurar meu pescoço... Tinha perdido as contas de quantas vezes não pulei quando devia... E, dessa vez, meus pés decidiram não fugir.

Minhas pálpebras se fecharam e a pele se preparou para o fogo, mas, antes que a explosão me alcançasse, fui puxado por Doxy para trás de uma parede.

Caímos atrás do aurium da esquina e vimos a onda de luz e calor avançar sobre onde eu estava segundos atrás, por pouco não me reduzido a pó. Quando pisquei, ela já tinha se dissipado. E Doxy socou meu ombro.

– Queremos você vivo no final dessa guerra!

E então ela correu na direção do grupo sem que eu tivesse a chance dizer o quanto eu estava tentando... Há tempo demais.

Com os resquícios das minhas forças, eu a segui.

Nos unimos aos vorrampes e fageines restantes, cheios de restos de aurium dentro dos seus corpos leitosos para que não nos esquecêssemos do que eles eram capazes de fazer. Seguimos pelos corredores vazio até um dos salões principais do palácio, onde ficava a mesa em que um dia conversamos com o metriona e fomos prometidos uma vitória que nunca chegou.

E, no pináculo daquele palácio, à ponta da mesa, estava o metriona, nos observando como se tivesse aguardado nosso retorno desde que partimos. Ele estava sozinho e desarmado, talvez porque não precisasse de nada além do seu poder intrínseco para nos destruir; talvez porque estivesse escondendo tudo.

O metriona lentamente se levantou, um pilar de aurium que pudesse sustentar sozinho o teto desse palácio e os céus acima, suas palavras cerimoniosas irrompendo o silêncio que criamos:

– O que os trazem aqui?

E Korrok rosnou, a arma sobre as garras mirando direto no inimigo:

– Sua cabeça.

O líder dourado se sentou devagar e nos ofereceu os assentos à mesa. Mas nós não estávamos ali para negociar.

– Você deve ter se esquecido, Korrok... – Ele sibilou. – Mas eu contenho um poder que, sem mim, você nunca conseguiria recuperar...

O controle dos soldados contaminados... Soldados que seriam muito úteis para derrubar os Áulicos, caso Bleine não cumprisse com sua parte no acordo. Nossa vitória se tornava improvável demais sem o metriona.

– O que sugere? – Doxy rosnou.

– Que reestabeleçamos nossa aliança.

E, de alguma forma, aquela parecia ser a nossa melhor opção.

Mas então as palavras de Korrok irromperam o silêncio:

– Eu tenho uma ideia melhor... – E ninguém ousou falar nada, até que ele continuou: – Quando nós contaminamos a todos aqueles soldados no Distrito de Veneno, eles mudaram de lealdade tão fácil... E tão rápido se tornaram leais a você... – Encarei o vorrampe, curioso para saber onde ele queria chegar com aquilo. – Então fiquei me perguntando... Quão fácil seria passá-la para mim?

Silêncio. Eu nem sabia que aquilo era possível.

– Existe um preço pela glória, Korrok... – A criatura sibilou, amarga. – Metrionas sabem bem disso... Há uma vida para cada quilo de aurium dessas paredes, afinal. Tantos sacrifícios para a glória de tantos outros... Porque certas mortes nos tornam mais fortes. – Me encolhi longe daquelas paredes infestadas com morte. – Nenhuma outra espécie entende o que se precisa perder para prosperar.

– Chegue logo ao ponto. – Korrok rosnou, mostrando os dentes e assumindo a postura imponente de uma fera que a qualquer momento poderia atacar.

– Para conseguir o que quer, você teria de ser contaminado.

O que?! Encarei o vorrampe; e quis socá-lo por não negar imediatamente.

As feras se estudaram na vastidão do salão. Eles eram fogo sobre uma trilha de gasolina; eram vulcão tremendo antes da erupção; eram raio descendendo pelo céu para, em um piscar de olhos, explodir.

E então Korrok proclamou:

– Que assim seja.

Ele não podia estar falando sério! Abri a boca para gritar com ele, mas um dos fageines deu um passo à frente e se manifestou antes de mim:

– Isso não estava no acor...

Então Korrok fez um movimento e disparos voaram pelo salão, quando os vorrampes atiraram contra as pupilas dos fageine e não deixaram nenhum de pé.

– O que está fazendo?! – Doxy gritou, se espremendo à parede. – Os Áulicos finalmente estavam do nosso lado!

Korrok se voltou para ela com olhos turvos de sangue.

– Eles nunca estiveram, sapiens! Nós só seriamos os próximos a ser esmagados depois do metriona! COMO SEMPRE FOMOS!

– O que você vai fazer então? – Não consegui me calar, mesmo vendo as garras e a violência nele. – Virar mais uma marionete dessa maldita doença?!

Korrok se voltou para mim fumegando e, antes que pudesse rugir no meu rosto, Doxy calou a todos com as suas palavras:

– Os contaminados não perdem o livre arbítrio... – Voltei meus olhos para ela. – Só depois que morrem contaminados. Por isso o metriona estava matando seus piores soldados... Para que, controlados, eles fossem melhores. – Ela suspirou, rendendo-se a algo que eu nunca a imaginei dizer: – A Aericose é apenas uma sugestão nas mentes dos que a portam... E, se com ela é possível conseguir o controle, então não seria uma ideia tão ruim ser contaminado...

Isso não podia estar acontecendo.

– Está falando sério? – Rosnei. – Não seria uma ideia tão ruim ser contaminado pela doença que você queria atravessar a galáxia inteira para destruir?! A única coisa entre o Império e a utopia que você sonhava recuperar? A doença que sua mãe MORREU para que você pudesse combater?! – Não consegui controlar as palavras que voaram de mim. – Seria uma ótima ideia! Tirando o fato de que uma única gota do seu sangue poderia matá-lo! – Então me voltei para Korrok: – Você confia nela a esse ponto?!

E Doxy, com os olhos feridos de uma forma que odiei ver, sussurrou:

– Você não?

Antes que eu conseguisse criar coragem de falar mais alguma coisa estúpida, Korrok caminhou na direção do metriona, seus passos firmes como se pudessem destruir planetas e tão impossíveis de escapar quanto catástrofes naturais. E, quando ele abriu a boca, eu soube que já estava condenado:

– Me contamine.

A criatura dourada soltou uma risada venenosa.

– Você tem que me provar que merece.

– O que quer di...

Naquele momento, metrionas caíram do teto em uma chuva de ouro, atacando todos os vorrampes que estavam com o líder dourado na mira das suas armas... E então as placas douradas que cobriam os braços dele se abriram em centenas de lâminas de aurium brilhantes como se tivessem sido polidas para a batalha naquela mesma manhã.

O metriona avançou para Korrok com um ataque preciso. O vorrampe rolou pelo piso, um novelo de vermelho e dourado, dentes, garras e lâminas violentamente incompreensíveis. O metriona prendeu Korrok no frio do piso com uma gaiola de lâminas, enquanto o vorrampe lançava suas garras e rasgava o peito metálico do metriona como se o aurium fosse papel. Ainda assim, o líder dourado ergueu uma das suas lâminas na rota perfeita para arrancar a vida de Korrok, quando descendesse de volta ao seu peito.

Me vi paralisado, entre a vontade de fugir, o ímpeto de atacar e o medo de falhar em ambos... Mas eu não podia cometer esse erro de novo.

Em um vulto veloz eu voei e me choquei contra o metriona, desestabilizando-o o suficiente para que o vorrampe conseguisse se desvencilhar. Minhas mãos explodiram em garras que rasgaram a armadura do metriona, tão velozes que ele não conseguiu fazer nada além de me bloquear e recuar... Porque eu não deixaria Ítopis me tomar algo insubstituível de novo. Eu não viveria aquela dor de novo. Não seria minha culpa de novo. ELE NÃO MORRERIA DE NOVO!

Jurei ouvir o aurium da carapaça do metriona se amaçar abaixo do poder em mim que eu achava que apenas os deuses das histórias antigas pudessem ter, ainda que não o suficiente para esmagá-lo. Encurralei-o mais e mais a cada ataque, até que deixei explodir todo o poder em um golpe que arrancou o chão dos pés do metriona e o lançou contra a parede com tanta força que abriu uma cratera nela.

– Satisfeito?! – Rugi, mal conseguindo reconhecer a minha própria voz.

O metriona cambaleou para fora da parede, e, por um instante, eu acreditei que ele tinha desistido. Mas ele não conseguia; e voou na direção de Doxy com as suas lâminas rumando para o pescoço, a cabeça dela prestes a cair no chão, e eu longe demais para impedir por mais veloz que fosse. Esperei o som do aurium contra a carne e dos meus rugidos em resposta, quando o estalo de metais se chocando explodiu nos meus ouvidos, porque Korrok tinha bloqueado o ataque; e as minhas garras já estavam ao redor do metriona, prendendo-o longe de Doxy.

Os vorrampes, que já tinham matado os demais metrionas, então o amarraram a uma cadeira.

– Mortes como a sua nos deixarão mais fortes. – Doxy rosnou, arrancando da criatura dourada uma risada amarga.

– Não, Donecea... Minha morte os destruirá.

– Que assim seja.

E, na sua voz, eu soube que ela pagaria qualquer preço para destruir aquele que matara sua mãe... Eu pagaria o mesmo se pudesse? Talvez mais.

O metriona apontou com o chifre não quebrado para um dos seus bolsos e dele Korrok tirou um frasco cheio com aquele pó branco que fazia os seres se voltarem contra o que acreditavam, e que Korrok, com o suspiro de alguém que se sacrifica, despejou na sua pele.

– Os soldados são seus. – O metriona rosnou. Mas a sua rendição só me deixou mais temeroso... Como se houvesse algo ainda pior nos espreitando por trás da peça descartada que ele agora era.

Korrok encostou uma arma no peito dourado e então Doxy pediu:

– Me deixe matá-lo.

Aquilo era pessoal. E, se fosse ter algum sangue nas mãos ao final daquela jornada, era o dele que ela queria.

Korrok aceitou e passou a arma para as mãos dela sem que o cano se afastasse do alvo. Doxy se aproximou da criatura com passos cautelosos, ergueu o corpo da arma e a chocou contra o rosto do metriona com a energia de uma explosão, amassando sua face metálica. O líder dourado soltou um grunhido frustrado e, antes que Doxy pudesse puxar o gatilho, ele me encarou diretamente na alma e rosnou:

– Os remédios são falsos.

Os olhos de Doxy se voltaram para mim e ali se paralisaram, transformada em estátua; e, por um instante, me perguntei se seu coração ainda estava batendo, já que eu, tão estático quanto ela, jurei parar de sentir o meu.

O metriona continuou, torcendo as palavras como faca:

– Cada dose nunca passou de placebo. Porque se seu fevino quisesse matá-lo de dentro para fora, Arkadi, não haveria medicamento para impedi-lo.

Ela mentira... Naquela primeira vez... E em todas elas desde então...

Cada uma daquelas doses que deixei descer arranhando a minha garganta porque eu não podia morrer ainda, cada dose que eu tive de engolir meu orgulho antes para poder tomar, aquilo que me prendera a Doxy desde o primeiro dia e que se tornara um nó tão difícil de soltar como uma forca bem-feita... Nunca tinham passado de mentiras destiladas.

Donecea voltou os olhos para o metriona de uma forma que me lembrou dos predadores de savanas, os olhos ardis, famintos... Ela era um assassinato em forma de gente, destilando morte em cada movimento, transpirando mentiras por cada centímetro, planejando torturas que nem mesmo os piores monstros teriam sido capazes de imaginar. E, pelo instante que durou a eternidade, eu a temi... Como se ela não estivesse mais ao meu lado.

Como se ela nunca tivesse estado.

– Como sabe disso? – Donecea sussurrou para o metriona, por trás dos seus dentes cerrados. – Você olhou na minha mente?!

O metriona riu com uma suavidade perigosa.

– Não eu... A Rainha. – Consegui ouvir de longe Donecea se engasgar. O metriona se voltou para mim, meus olhos caindo nas suas esferas peroladas. – E a Rainha pode lhe dar muito mais, Arkadi... Ela pode dá-lo a vida que tanto busca e nunca encontrou, para que nunca mais sinta esse vazio de novo... E eu posso contá-lo como... – Eu não conseguia mais respirar, preso naquele desejo que me tentava. Como eu podia recusar a oferta daquele que, me olhando diretamente nos olhos, entendia cada uma de minhas dores como se fossem suas? Um poço de segurança em que eu sentia que estaria seguro se aceitasse mergulhar... – Donecea nunca preencherá o vazio que o levou a buscar aquela vida, Arkadi... Eu sei que você quer algo que o lembre do que perdeu. Mas por que se contentar com uma lembrança quando pode ter aquela vida de volta? – O metriona sussurrou com uma suavidade que praticamente me agredia. – Tudo que você precisa é desistir dessas ilusões, Arkadi. E me deixar ajudá-lo...

Talvez eu estivesse lutando por uma gota e abandonado um oceano...

Não consegui duvidar do metriona.

E talvez não fossem seus olhos.

– CALE A BOCA! – Donecea rugiu para o líder dourado, quase apertando o gatilho quando eu gritei:

– NÃO O MATE!

Ela lentamente se voltou para mim, com o mesmo olhar que tinha usado contra o metriona e rosnou:

– Ele matou minha mãe... – Como se isso fosse justificativa.

– E você mataria a minha única oportunidade de conseguir o que eu sonhei desde que a minha vida desabou... Aquilo que me motivou a estar aqui agora.

Uma das mãos dela se ergueu para os cabelos, enquanto a outra balançava a arma no ar, o cano vezes apontado para mim, vezes para o metriona, como se não soubesse em quem atirar; como se todos fossem inimigos. Eu conseguia sentir seu conflito, palpável em cada mecha que puxava, a mente escorrendo para algum lado daquela gangorra de pregos. Por mais que ela tivesse desejado aquele momento por toda a vida e por mais que me odiasse, eu não conseguia deixá-la me tomar aquilo.

– Você me disse que não ia mais embora.

Sim... Eu tinha sonhado com aquilo, quando achei que estava em uma vida que podia ser melhor do que aquela que antes acordei todas as manhãs desejando voltar. Mas nada que pudesse me prender aqui era sólido como eu ansiava; e eu ainda me via desejando desejos antigos.

– E você me disse que eu precisava daquelas doses. – Retruquei. – Você não tem nada a ganhar matando o metriona, Donecea... – Eu queria gritar que aquela vingança não resolveria os seus problemas, mas apenas sussurrei, ferido: – Tem apenas a perder a minha confiança.

Donecea esticou a coluna e usou suas palavras como arma:

– Se pensa assim, então já não tenho mais nada a perder.

Eu abri a boca para retrucar, mas fui calado pelo disparo no peito do metriona quando Donecea, me encarando diretamente nos olhos, apertou o gatilho.

• • • ֍ • • •

Não fiquei naquele palácio por nem mais um instante.

Tropecei para longe até uma das árvores próximas e me apoiei nela, a respiração pesada daqueles que correm maratonas e meu âmago se revirando. Eu sentia o mundo me escapando pelos dedos, como se a qualquer momento a árvore pudesse se desfazer em pó para que eu desabasse através dela e caísse para sempre.

– Você sabe que o metriona só estava querendo colocá-los um contra o outro, não sabe? – Korrok perguntou às minhas costas, me assustando.

– Foi ela que puxou o gatilho... – Murmurei.

– Se você pensa assim, então foi ele que venceu. – Bufei.

– Posso perguntar para ele no inferno qual foi a sensação... E te conto quando você chegar lá.

– Se eu tivesse apertado o gatilho, você acharia tão inaceitável assim?

– Faria sentido vindo de você. – Sussurrei. – Você é uma fera cruel, impiedosa, sanguinária... – E Korrok considerou aquilo em silêncio como um elogio.

– E se ela for uma também?

Enviei-o um olhar por sobre o ombro.

A fúria que a tinha tomado não era muito diferente daquela que eu conhecia dos monstros que tantas vezes chegaram perto demais de me destruir. Quando seu dedo se fechou no gatilho, eu vi algo nas profundezas dos seus olhos... Algo que eu não sobreviveria.

– Então eu preciso repensar minhas amizades... – O vorrampe riu.

– Talvez deva repensar seu destino também?

– Não... – Suspirei, balançando a cabeça para os lados. – Eu vou continuar fazendo o que sempre faço: juntar as migalhas que preciso para ir embora. E talvez eu consiga em mais uns dez anos... – Dei de ombros.

Korrok exalou, tão exausto quanto eu.

– Me cansei de tentar lhe convencer a ficar. – Ele rosnou, atraindo a minha atenção. – Você não tem mais que passar o resto da vida tentando conseguir o dinheiro, Phaga... Porque eu o darei o que falta quando a guerra acabar. – Minha sobrancelha se ergueu sozinha.

– Você não tem todas essas pedras estelares.

– Olhe para esse planeta! – Ele apontou para a vastidão do horizonte. – Ele é mais do que suficiente. E será seu. Depois de vencermos.

Uma última batalha... O preço pelo meu sonho.

– Mas e se eu morrer nela?

Korrok repousou sua garra no meu ombro, o mais perto do que ele conhecia por um gesto amigo; e algo que eu aprendera a reconhecer como um.

– Então você estará livre...

Ele estava certo. Não havia mais o que perder; não havia mais por que fugir; não havia mais para onde ir, senão para o fim... Meu, ou de tudo.

Que assim fosse. 

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