Na verdade, depois de dois noxdiems de viagem, tivemos que fazer uma outra paradinha. Coisa rápida, nada demais.
Os cartuchos que Donecea tinha roubado foram suficientes para nos levar para longe do Distrito de Sangue, mas, só com eles, não chegaríamos nem perto do núcleo da galáxia. Eu precisaria abastecer de novo; e, dessa vez, não cometeria o erro de fazer isso em um planeta.
Parei a Hasta na órbita de uma das minhas estrelas e tirei do armário uma roupa espacial.
– Você vai lá fora?! – Donecea chiou, enquanto eu colocava aquela espécie de armadura sobre as roupas.
– Eu já fiz isso o suficiente para saber que é seguro.
Caso eu não me deparasse com algum empecilhos... Mas eu não ia falar sobre eles.
– Acho que você quis dizer que já fez isso o suficiente para perder a noção do perigo.
Abri um sorriso para os seus braços cruzados.
– Eu também estaria preocupado se essa fosse uma roupa qualquer. Mas essa armadura é tão resistente que eu posso entrar naquele sol e nem vou ficar com calor. – Talvez eu estivesse exagerando um pouco, mas era realmente uma ótima roupa.
– E como você construiu algo supostamente tão forte?
Distraído com as fivelas no peito e começando a me acostumar a responder perguntas mais do que devia, não consegui impedir as palavras de escaparem antes que já estivessem nos ouvidos dela:
– Meu pai a construiu. – Droga. Eu quis ficar calado, para sempre talvez, mas eu já tinha começado, então se tornou ainda mais difícil parar... Principalmente quando era a primeira vez em que eu era ouvido em tanto tempo. – Esse foi o legado dele... Além daquela cadeira quebrada... – A do copiloto, onde eu me sentava quando, um dia, ele pilotara a Hasta... Viajando pela vastidão e conversando sobre coisas que já não importavam mais, momentos bons em si mesmos, e não apenas porque eu já não podia mais tê-los.
– O que aconteceu? – Ela perguntou, suave, sentindo meu abismo.
– O que acontece com aqueles que já não estão mais aqui.
Coloquei o capacete.
– Eu... Sinto muito...
E, observando-a, parecia que ela sentia mesmo toda a minha dor... Quase como se eu pudesse dividi-la com ela.
Mas eu não queria que sentisse pena de mim; porque se sentisse por uma coisa, sentiria pela minha vida inteira; e o resto do meu ego seria esmagado. Ele era a última coisa que sobrava no final, como uma borra de café, um resquício que se usa para tentar imaginar o futuro quando o presente ainda não alcançou seus sonhos. E, no fim, aquilo era tudo que ficava, como a lembrança do gosto do café na boca que eu já não tinha mais...
Decidi mudar de assunto.
– Pode falar comigo pelo painel. – Minha voz foi captada pelo capacete e a alcançou pelas caixas de som da nave. – Mas só emergências, de preferência.
– Então você está esperando uma emergência?
– Você reclamaria se eu não estivesse.
Ela meneou com a cabeça. Eu tinha feito um bom ponto.
– Pelo menos está sendo cauteloso... Estou surpresa. – Ela provocou.
– Não é tão difícil surpreendê-la pelo visto.
– Algumas coisas são impossíveis de prever. – Dei de ombros. – Como você sendo prudente, por exemplo.
Ergui minhas mãos em rendição e a deixei vencer, mas aquilo fez seu sorriso cair. Ela não queria vencer... Queria fugir do silêncio.
Mas aquilo não estava no acordo.
Conferi se minha armadura estava em ordem e fui para a saída.
– Se algo tentar matá-la, estarei à distância de um grito.
E então mergulhei no espaço.
• • • ֍ • • •
Avancei na direção da estrela com os propulsores da armadura. Eu estava conectado à Hasta por um cabo de aço, como se preso por um cordão umbilical e unido à vida apenas por aquela corda, aquele acordo. Era fácil de sentir a hostilidade do espaço ao meu redor, tão silenciosamente cruel que, por mais imprudente que eu fosse, jamais ousaria desafiá-la.
Alcancei uma das minhas placas solares, uma daquelas que, quando numerosas o suficiente, conseguiam alimentar os poros de Ítopis. Eu não as tinha roubado do Império, já que eles teriam sentido sua falta, mas construí as minhas próprias. Ainda assim, eu estava roubando algo – migalhas que não chegavam perto do que o Império me devia – porque aquelas estrelas não eram minhas.
Cheguei até uma das placas que orbitavam o astro e coletei os cartuchos, brilhando cheios de energia solar. Um deles ainda não estava completo, então decidi esperar alguns minutos.
– Kadi? – Donecea me chamou pela comunicação entre a nave a armadura.
– Não tem nenhum Kadi, aqui. Número errado. – Eu praticamente consegui ouvi-la revirar os olhos do outro lado. – O que foi?
– Tem algo aqui que pode mesmo me matar?
Eu não contive minha risada. Ela ainda estava pensando naquilo?
– Nada que o faça de propósito.
– Se a Hasta tentar me matar, você não vai poder me culpar por destruí-la. – Eu ri.
– Nada vai matá-la, Donecea.
E então vi um minúsculo vulto prateado passar por mim, entre o elmo e a placa solar à minha frente. Um projétil.
Me voltei para onde ele tinha vindo e dei de cara com uma criatura na escuridão. Seu corpo era coberto por uma carapaça que funcionava como a minha armadura, protegendo as partes moles dentro e dando-os a vantagem de armazenar oxigênio por um tempo. Ele estava apontando o cano da sua arma para mim, e já tinha outro disparo a caminho. Meus olhos caíram na Hasta quando pensei em fugir para lá, mas outros seres como aquele se agarravam à lataria, procurando uma forma de entrar.
Eu os conhecia bem, de outras vezes em que tentaram roubar a energia que eu roubava do Império, minha nave e minha vida: saqueadores.
Desviei do segundo disparo e avancei para a criatura antes que ela atirasse de novo. Me choquei contra ela e flutuamos no vácuo em uma confusão de garras e braços.
E então eu ouvi os gritos de Donecea no meu ouvido, pelo comunicador.
Eles estavam na nave.
Tentei tomar a arma do saqueador, mas ela escorregou para longe e eu mergulhei no vazio na sua busca. A criatura então abriu sua boca como um buraco negro e envolveu meu capacete com ela. O saqueador tentou romper o vidro com mordidas, como se minha cabeça fosse um doce cristalino nos molares, e não havia nada na minha visão além do escuro do seu interior e daqueles dentes imensos, arranhando a superfície transparente. Eu o imaginei conseguindo quebrar o vidro, como um daqueles doces com recheio, quando Donecea se calou.
E eu estava sozinho.
Agarrei os cantos da boca da criatura e os puxei, sem me perceber rugindo até que me garganta ardesse, e então, em algum momento, minhas mãos rasgaram o saqueador ao meio em uma nuvem de gosma esverdeada.
Joguei seu corpo para a estrela e voei na direção da nave, agora sem nenhum saqueador do lado de fora.
Porque todos eles tinham entrado.
• • • ֍ • • •
Entrei na Hasta como uma bala.
Três dos saqueadores vasculhavam meus armários, tão distraídos que só me perceberam quando choquei minha mão coberta de metal contra um deles, derrubando-o. Os outros dois atiraram contra mim, mas seus projeteis apenas ricochetearam na armadura.
Tomei a arma de um deles, a choquei contra o segundo saqueador e, quando me voltei para o que faltava, senti as garras de um quarto me segurarem. Tentei me desvencilhar, mas então a terceira criatura avançou com a boca sobre a minha cabeça e conseguiu arrancar meu capacete, enquanto o outro saqueador me segurava. Aquele que arrancou meu capacete recuperou uma arma do chão e a mirou no centro da minha testa, onde os ossos do meu crânio não poderiam me proteger.
Quando ouvi o disparo, achei que eu tinha morrido.
Mas então o saqueador estava caído, alvejado em uma das patas... E vi Donecea logo atrás de onde ele estivera, segurando trêmula uma arma recém disparada.
Ela não podia deixar aquela nave explodir.
A outra criatura, que me segurava no lugar, se desestabilizou o suficiente para que eu acertasse uma cotovelada metálica na cabeça, me libertando.
Uma das outras duas criaturas que atingi se levantou e avançou sobre Donecea, derrubando a arma longe. Os dentes estalavam diante do pescoço dela, raspavam a pele, e seus braços não eram fortes o suficiente para que conseguisse impedir a criatura de matá-la por mais muito tempo.
Avancei para o saqueador, alcei-o com o meu cotovelo e o puxei para longe dela, caindo no chão com ele sendo esmagado no meu braço. Apertei-o, esmaguei-o como inseto mais e mais, até que, sem sangue mais indo para a sua cabeça, ele parou de tentar morder o ar e desabou. Joguei a criatura para o lado e deixei o cansaço tomar cada fibra minha.
Donecea se encolhia na ponta oposta da área, me encarando com completo terror.
Antes isso que pena.
Me levantei devagar e recuperei uma arma do chão e mirei naquele que tinha tentado arrancar a cabeça de Donecea.
– Não os mate. – Ela pediu. E eu parei. – Eles já perderam.
Ela estava falando sério? A firmeza em sua expressão me dizia que sim.
Soltei um grunhido.
– Na próxima vez que um inimigo nos atacar, você vai poupá-los mesmo que nos matem? – Rosnei.
Ela se levantou, todo medo ficando no chão como uma segunda pele descamada, e lentamente tomou a arma da minha mão.
– Se nossas vidas estiverem em risco de novo, eu mesma os matarei.
Suas palavras podiam pedir que poupasse vidas, mas os olhos gritavam algo bem diferente... E eu me perguntava qual deles estava falando a verdade.
Talvez ela fosse capaz de matar...
Como qualquer humano.
Como eu.