Capitulo 8

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Minha garganta se fecha. O chão parece desaparecer sob meus pés. Meu corpo gela.

É estranho, como num sonho em que você é você, mas em que vemos tudo de fora. Eu vejo a garota no vídeo e sei que ela sou eu, mas a imagem é simultaneamente alienígena e pessoal, próxima e distante. Uma memória que não tenho, mas que existiu mesmo assim. Um momento que me foi roubado, e que se tornou uma história na qual custo a acreditar.

— Não mostra de onde ela veio. — Caleb comenta, inclinando-se na direção do monitor. O atendente, eu posso ver, está pálido, talvez tão assustado quanto eu pelo rumo inesperado da narrativa.

— Ela está vindo do norte. — Christine aponta na tela. Ambos tem a mesma expressão pensativa no olhar, mas ela parece quase entretida, como se o mistério a deixasse animada — Podemos tentar outra loja, ver se encontramos algum carro, alguma placa.

— Boa ideia.

É então que Caleb se vira para mim. Pela mudança em suas feições, sei que devo estar com uma aparência péssima, então baixo o rosto e tento disfarçar.

— Sim, boa ideia. — murmuro, apenas para ter algo para dizer.

Christine agradece o atendente e saímos da farmácia. Ela para no meio fio, analisando as lojas do outro lado da rua, até parecer encontrar o que procura. Ela se dirige a uma cafeteria, pequena e aconchegante, e sei o que ela viu no local quando olho para cima e vejo uma câmera de segurança piscando para mim.

O cheiro de café e chocolate me atinge quando passo pela porta. Meu estômago está todo revirado, e o aroma me deixa enjoada. Não sei se quero saber o que podemos encontrar nas próximas imagens, mas agora é tarde. Christine já está no balcão, conversando com uma barista simpática cujo crachá diz “oi, meu nome é Irene”. Não sei o que Christine diz a ela, mas o rosto de Irene se contrai e ela lança um olhar para mim. Olhar de pena. Viro o rosto, sem conseguir encará-la por muito tempo.

Irene some por trás do balcão, e Christine vem até mim com Caleb em seu encalço.

— O que disse a ela? — pergunto, a voz baixa e urgente — Sobre mim?

— A verdade. — ela responde, com um dar de ombros sutil — Bem, parte dela. Disse que você tinha sido sequestrada e deixada nessa rua, mas que não se lembrava de nada.

— E a história do carro? — pergunto então, franzindo o cenho.

— Ela é mulher. Ela se solidariza mais com você com que com uma propriedade qualquer. — é tudo que diz.

Esperamos um minuto tenso em silêncio. Sinto os olhos de Caleb sobre mim, mas encaro o chão fixamente. Minha mente repassa infinitas vezes a cena que vi ainda a pouco, tentando compará-lo a qualquer uma das minhas memórias. Tudo que consigo é uma dor de cabeça para somar ao enjoo. Quando Irene volta e sinaliza para nós a acompanharmos, já me sinto tão mal que poderia vomitar ali mesmo.

Vamos até um pequeno escritório atrás do balcão, onde uma senhora de cinquenta e tantos anos e olhar grave nos recebe. Ela usa óculos empoleirados na ponta do nariz, e parece ter um olhar perpétuo de reprovação. Ela me intimida, e fico a um canto da parede ao entrar. A sala é tão pequena que, mesmo de onde estou, ainda consigo enxergar o computador.

— Irene me disse que sua amiga foi sequestrada. — diz a senhora, e me surpreendo com a suavidade de seu tom. Quase me lembra alguma coisa, mais uma daquelas memórias que parece coçar no fundo da minha mente, sem nunca chegar à superfície.

— Sim. Sequestro relâmpago. — Christine me lança um olhar quase ensaiado — Ela está bastante traumatizada. E a polícia não tem feito nada, então resolvemos fazer uma pequena investigação, ao menos pra que ela consiga se lembrar de alguma coisa.

— Entendo. — a outra diz. Não levanto o rosto para saber, mas sei que estou sendo observada, talvez por todos na sala. Sinto o ímpeto de me dissolver contra a parede, de desaparecer no ar.

É impressão minha, ou a lâmpada piscou? É apenas um segundo, talvez menos. Alguns milésimos de escuridão completa. Ninguém mais parece ter notado.

— Eu normalmente diria não, mas visto que é um assunto delicado... — a mulher continua, e solta um suspiro pesado — Imagino que gostaria que alguém fizesse o mesmo pela minha filha. Do que vocês precisam?

Christine dá a ela o dia e horário exatos em que vimos minha imagem nas câmeras da farmácia. Alguns segundos se passam, altos e lentos como os tiques do relógio, enquanto o borrão de imagens passa pela tela. O horário selecionado por Christine, contudo, é cedo demais, e eles voltam alguns minutos no tempo.

Arrisco um passo para frente, depois outro. É a minha vida, meu passado. Eu deveria ver o que tem ali. Deveria ter coragem o bastante para olhar. Coragem o bastante para lembrar.

Paro no exato momento em que, na imagem da câmera, uma van preta se aproxima. Ela estaciona na rua, a apenas alguns metros da entrada da cafeteria. Dois homens descem, e podemos ver perfeitamente quando abrem as portas traseiras da van e uma garota desesperada tenta pular.

A imagem me pega de surpresa. Vejo a outra eu ser enlaçada pela cintura por um dos homens, enquanto o outro tira algo do bolso. Ela se debate, lutando com braços e pernas e dentes para se desvencilhar, mas não é grande o suficiente, forte o suficiente. Não vejo o que o homem tem na mão, mas consigo imaginar o que é quando aplica algo no pescoço dela, e ela cede quase que imediatamente.

Se não for obediente, vamos ter que sedar você, Mayumi.

A voz sussurra tão alto que, por um segundo, acho que ele está na sala. Me viro de repente, assustando todos à minha volta.

— Mayumi? — Caleb chama — Mayumi, o que houve?

Mas sua voz já está distante. Estou a milhares de quilômetros dali. A luz branca me cega, e reconheço o par de olhos azuis que me encara de cima, o rosto quase que totalmente oculto por uma máscara cirúrgica. Já o vi antes, nos meus sonhos—e nos meus pesadelos.

— Mayumi, já tivemos essa conversa. — ele diz, num tom condescendente, quase paternal. Mas não há nada de afetuoso na forma como ele me olha. Encara-me como a uma cobaia, um animal que ele precisa estudar. — É mais fácil se você se comportar. Podemos fazer nossos testes, você pode comer, e tudo acaba mais rápido.

Não lembro o que respondo, se respondo. Ele tampouco parece impressionado com o meu silêncio, como se a falta de réplica fosse não apenas esperada como desejável. Como dizia mesmo o ditado? Quem cala, consente.

Não, quero dizer. Silêncio não é consentimento. Coerção não é concordância. Eu não pedi por nada disso.

Mas tudo que consigo fazer é observar enquanto ele some de vista, e retorna com uma seringa. Sinto-me chacoalhar, debater, como a garota no vídeo. Como ela, sei que também não tenho chances. Nós somos, afinal, a mesma pessoa.

— Vamos ver como você se sente daqui alguns dias. Conversaremos de novo quando estiver mais calma. — ele diz.

Só que não existirá conversa e eu nunca estarei mais calma. Mais fraca, sim, mais desesperada, sim, talvez mais manipulável devido à fome e à fadiga. Mas nunca mais calma. Enquanto eu viver, sei que não conseguirei me sentir calma.

O ódio é tudo que me mantém vivendo.

Sinto a dor da picada, e meu mundo escurece. A fraqueza brinca com meus ossos, espalhando-se pelas minhas veias como veneno. Não quero sucumbir. Não quero desaparecer. Preciso permanecer acordada.

Então grito, o mais alto que posso, e abro os olhos. Mas o mundo real, o mundo à minha volta, está escuro também.

No EscuroWhere stories live. Discover now