Capítulo 2

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Não me lembro de ter apagado, mas quando acordo, o cenário mudou outra vez.

Minha percepção mudou também, percebo. A sensação de peso e a tontura passaram, e eu desperto como se saísse de um sono seguro. A última coisa de que me lembro foi de pedir ajuda a alguém em uma estação de trem, e então... saímos de lá, eu acho. Devemos ter saído.

Mas para onde viemos?

Jogo as cobertas para longe, só então me dando conta de que estou em uma cama. Uma luz suave entra pela janela, sinal das primeiras horas do amanhecer ou das últimas antes do cair da noite - é impossível dizer sem olhar. O quarto onde estou parece saído de um catálogo, decorado em tons de branco e verde claro, com móveis novos e tudo tão organizado e limpo que me sinto uma intrusa.

Levanto. Vacilo momentaneamente, trombando em uma cômoda, mas recupero meu equilíbrio rápido. Consigo enxergar perfeitamente, e quando vou à janela, vejo o céu claro, sem nuvens. Manhã, então. Ando mais um pouco e, atrás da porta, encontro um espelho.

Não reconheço a mulher que me olha. Ela é alta e esquálida, com os ossos saltados de alguém que emagreceu forçadamente. Estou suja, a testa brilhando de suor, franzindo para mim mesma. Meus olhos são amendoados, levemente puxados, e os cabelos são longos e escuros, grossos e pesados. Tento dar um nome a ela, a mim, mas não consigo pensar em nada. Ela é anônima. Ela é ninguém.

Ela sou eu.

A porta se abre, e salto para trás, o coração acelerando. Por ela, entra um garoto alto, tão alto quanto eu, de cabelos castanhos naturalmente arrepiados e um rosto inegavelmente bondoso. Mesmo que não consiga me lembrar direito do meu passado, sei que ele é o estranho da estação de trem, e meu coração se acalma. Ele me ajudou uma vez. Vai me ajudar de novo.

- Você está de pé! - ele exclama, parecendo satisfeito. Abre um sorriso que brilha mais do que o sol da manhã, e então hesita - Tudo bem se eu entrar?

Franzo o cenho, e então concordo. Ele entra e deixa a porta aberta, mantendo uma distância de um braço entre nós dois. Não sei dizer se as medidas são para a minha segurança ou a dele. Talvez ambas. Ele não sabe do que sou capaz.

A frase ecoa em meus ouvidos como se eu a tivesse dito em voz alta. Não sei por que pensei nisso, mas agora que o fiz, não consigo tirar essa verdade da cabeça. Ele não sabe do que sou capaz. Nem eu.

Não sei se quero descobrir.

- Como você está se sentindo? - ele pergunta, com cuidado. Sua voz é grave, parecendo adulta demais para ele. Quantos anos tem? Dezoito? Vinte, no máximo.

Quantos anos eu tenho?

- Melhor. - respondo, e minha própria voz me surpreende. É aguda, mas não de um jeito irritante. É musical. Combina com a garota no espelho, comigo. - Onde... onde nós estamos?

- Na minha casa. - ele diz, com um sorriso apologético - Era tarde ontem, e eu não sabia o que fazer. Você se negou a ir ao hospital...

A palavra me faz estremecer, mas ele não nota.

- E não me deixou chamar ajuda, então eu tive que pensar rápido. Achei que estaria mais segura aqui do que na rua.

Abraço meu próprio corpo, não sei se para me proteger de um frio inexistente ou se para reafirmar o sentimento de segurança. Tenho um milhão de perguntas, mas não sei por onde começar, nem se adiantaria de alguma coisa dizê-las. Ele sequer me conhece, como poderia me ajudar a responde-las?

Mas acho que ele tem tantas perguntas quanto eu, porque passa uma mão distraidamente pelos cabelos e pergunta:

- Qual o seu nome?

Abro a boca, mas não consigo dizer nada. Busco em minha mente por um nome, qualquer nome, uma informação sobre o meu passado que seja, mas não encontro nada. A frustração de não saber a resposta para uma questão tão simples e pessoal me traz lágrimas aos olhos.

- Eu... eu não sei. - murmuro.

Ele não parece incomodado. Põe uma mão no queixo, em uma pose pensativa, e me olha como se me analisasse. Me pergunto o que ele vê. Sou uma bagunça tão grande que não me surpreenderia se ele quisesse me colocar pra fora.

- Tudo bem. - diz, de repente, com a expressão mais leve - Você vai se lembrar, eventualmente. Meu nome é Caleb.

Caleb. Parece familiar, como se seu nome pertencesse a alguém que conheci há muito tempo. Sinto uma coceira no fundo da memória, mas nada vem à mente. É só mais uma lembrança perdida.

- Você, hm, quer tomar banho? - Caleb aponta com o polegar para algum lugar quarto afora - Tem toalhas, e posso te arranjar umas roupas. Bom, eu não posso, mas minha irmã sim. Ela tem mais ou menos o seu tamanho.

Assinto em silêncio. É engraçado ter tanta coisa para dizer e não conseguir falar como gostaria. Puro colapso, tudo e nada ao mesmo tempo. Meu cérebro parece prestes a travar, então apenas acompanho Caleb até o banheiro.

O corredor da casa está silencioso e escuro. O quarto onde dormi é a última porta de quatro. Caleb abre a porta ao lado e acende a luz. O banheiro é enorme, e todo branco. Sinto falta de cores, e me pergunto por que. Talvez meu quarto, onde quer que seja minha casa, seja mais colorido. Tento puxar pela memória, mas nada vem.

- Pode usar aquelas toalhas ali. - ele aponta para uma pilha de toalhas fofas e brancas sobre a pia - O chuveiro é elétrico, então não tem segredo pra água quente. Vou deixar roupas pra você em cima da cama. Leve o tempo que quiser.

Ele sorri, mas não consigo sorrir de volta. Fecho a porta, e torço para que a água revele meus segredos.

No EscuroWhere stories live. Discover now