Lizzie

76 14 25
                                    

– Acho melhor saírmos atrás de comida. Tudo aqui parece ter uma origem meio duvidosa...
– É, eu concordo — Lizzie deu uma risadinha de adolescente.

Com ela agarrada no meu punho eu não reparei em quanto seus traços eram nitidamente de uma garota ainda. Muito bonita, por sinal. Seu maxilar e nariz bem delineados valorizavam ainda mais os grandes e redondos olhos, deixando tudo perfeitamente contrastante, ao mesmo passo que harmonioso, com as sobrancelhas grossas.

Como eu sugeri, foi o que fizemos. A menina parecia assustada, se escondendo atrás de mim e acatando todas as minhas decisões como se eu fosse Deus. Pobre Lizzie, mal sabe que eu não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida.

– O que acha de comermos uns cachorro-quentes bem gordurosos e gostosos?
– É, eu gosto muito da ideia — Lizzie mantinha o sorriso de orelha a orelha toda vez que eu dirigia a palavra à ela.
– Vem, vamos no mercado também comprar umas porcariadas. Quem sabe temos a sorte daquela merda funcionar e assistimos um filme?

Sai puxando a mão da menina para uma vendinha que eu vi. Ela ria de qualquer coisa, até parecia o Steven.

Preciso parar de pensar neles a cada cinco segundos, eu sei.

Analisei Lizzie, enquanto ela pegava dois copos de uns negócios coloridos (eu chamaria de raspadinha no Brasil provavelmente) que jurava ser maravilhoso e não ter ideia de como eu nunca havia provado.

Você não tem ideia de muita coisa, garota...

Ela já me parecia inofensiva o suficiente para eu abaixar a guarda e passar a me divertir com ela. Talvez fôssemos duas carentes que se encontraram. Tirar o melhor da situação era a escolha aparentemente certa a tomar.

– Acho que deveríamos usar aquela cadeira como uma tranca a mais pra essa porta — disse girando a chave na fechadura assim que chegamos da rua.
– Também acho. Eu não gostei nadinha daquele cara... — Lizzie abraçou os próprios braços. Sabia no que ela estava pensando. Eu também sentia calafrios.
– Vamos ficar bem — forcei um sorriso. Espero que eu esteja certa. — Qual a sua idade, Lizzie?

Precisava ter ideia do quão pilantrinha ela podia ser assim que eu virasse as costas.

– Dezesseis. E você?
– Vinte. Vou tomar um banho, se importa? — balançou a cabeça de um lado para o outro.

Estava prestes a entrar no banheiro (e descobrir que não tinha ninguém morto).

– Estou grávida! — paralisei.
– Não precisa me contar nada, Lizzie.
– E-eu só quero que você saiba que não vou te roubar, nem nada. Pode confiar em mim.
– Estou te deixando com todas as minhas coisas. Acho que isso prova que confio em você, não? — menti na maior cara de pau.
– Acho que sim — deu de ombros. — Eu só quis contar...

Entendi tudo.

– Vou tomar um banho, você vai em seguida e depois, se quiser, pode me contar sua história. O que acha?

Novamente aquele sorriso estava lá. Lizzie só precisava de alguém para dividir o quarto e, mais ainda, de alguém que a desse atenção.

– Não precisa me contar nada se não quiser — penteava o cabelo molhado com Lizzie jogada de bruços na minha cama me encarando com seus olhões, só esperando meu sinal pra abrir a matraca. Até parece que ela não iria querer.
– Eu quero, se você não se importar...
– Manda a ver — dei uma mordida com gosto no meu cachorro-quente pra, um segundo depois, me decepcionar. Não chegava nem aos pés do famoso podrão brasileiro.
– Tem esse cara, quer dizer... Tinha. Dylan. O problema já começava com ele sendo mais velho. Digo... Maior de idade.
– Caralho, Lizzie. Já tá tudo fodido e você mal começou — ela gargalhou. — Onde conheceu ele?
– É amigo do irmão da minha melhor amiga. Estávamos numa festa, eles foram nos buscar. Já era. Ele tem um cabelo preto na altura dos ombros, a pele bem branca e olhos mais azuis que os meus. Aquele contraste do escuro e o quase transparente ficou extremamente sexy para o meu cérebro já meio alcoolizado. Ainda mais com aquela jaqueta de couro preto, combinando com o cabelo, sabe?
– A maldita jaqueta, saquei. Aquilo foi invenção do capeta pra confundir a mente feminina...
– Então você também tem o alguém da jaqueta? — ela gargalhou me fazendo a olhar espantada.
– Que?! Não. Não, não, não. Só acho extremamente gostosos caras de couro, me dá... — arqueou uma sobrancelha pra mim. — Enfim, continue!
– Depois que eu contar minha história, quero saber a sua!
– Eu nunca prometi nada sobre. Tá. E aí? Você ficou com um tesão do caralho e treparam escondido, mas a camisinha deu um ruim fodido?
– Mas que merda, Isa — Lizzie gargalhou.
– Foi mal. Se você está nos ouvindo, desculpa por falar tanta besteira, bebêzinho! — tentei quebrar o clima que já se instaurava.
– Não importa. Eu vou abortar.

O ar pesou de repente.

– Não foi resultado de uma trepada só. Eu estava apaixonada. E, pelo que parecia, ele também.
– Ele não quis assumir?
– Ele não sabe.
– E como você veio parar aqui? — gesticulei mostrando o quarto.
– Meus pais disseram que denunciariam Dylan se eu contasse do bebê. Não se encaixa como pedofilia, mas com certeza daria dor de cabeça para ele e eu não quero isso. E meus pais também não podem me aceitar grávida, já deixaram bem claro que mancharia a reputação deles na cidade e como meu pai poderia concorrer à um cargo público com uma filha puta como eu?! Quando eu propus o aborto, meu pai me bateu — ela tirou o cabelo da testa, mostrando um pequeno corte começando a cicatrizar. — Foi da aliança dele. Eu sugeri sair de casa. Bingo! Nunca vi um olhar tão aliviado como eu vi em seus olhos naquela noite.
– Você sabe que a culpa de nada disso é sua, né, Lizzie?
– As vezes eu penso que eu poderia não ter bebido naquela noite e nunca ter visto Dylan com outros olhos.
– Iria acontecer de qualquer jeito. Tudo sempre está onde tem que estar.
– Você acredita mesmo nisso? — a entonação de sua voz entregava uma jovem, machucada pela vida, buscando qualquer resquício de esperança, mesmo que vinda de uma estranha qualquer.
– Não sei. Mas é mais fácil continuar se você acreditar que sim — a verdade é que toda a minha esperança dava espaço para um obscurantismo crescente.
– Seria tão mais fácil só... Esquecer. Não consigo esquecer a forma que meu pai me olhou, Isa. Poder começar do zero, num lugar novo, sem ninguém que me conheça — suspirou. — Era tudo o que eu queria.
– Vai por mim, não é tudo isso — recostei na cabeceira da cama, parecia que meus ombros carregavam toneladas. — Por que não vai atrás do pai dessa criança?
– Por que eu iria? Meus pais vão denunciar ele e eu não quero condenar o futuro dele por uma criança que nem vai nascer.
– Lizzie, seu futuro já está condenado por uma criança que nem vai nascer! Você não pode condenar o dele? Qual foi? Você não fez com o dedo, cacete!
– Você sabe que não é assim que funciona, Isa — respirei fundo. Outros tempos. São outros tempos...
– Lizzie, só pense. Você acha que ele também estava apaixonado, certo? — esperei uma confirmação pra prosseguir. — Você já não deve mais nada para os filhos da puta dos seus pais — os olhos pareceram tristes. — Sinto muito, Lizzie — tomei suas mãos nas minhas, acariciando-as. — Escuta: você ter, não ter, contar ou não contar, não faz mais diferença. Por que não conta? E se ele for um bosta também, você segue com os seus planos. Ou você muda eles. Sei lá. Você pode fazer o seu próprio futuro, cuidar de você e desse bebê sozinha ou se não quiser ter esse bebê, você não precisa também. Mas você precisa tentar, Lizzie! Você já está na merda, garota. Talvez ainda exista um chance pra você...
– Talvez. Vamos assistir alguma coisa?

Lizzie não questionou quem eu era. Apenas encerrou a conversa. Entendi que aquele papo tinha sido demais pra ela e me senti culpada por, talvez, ter a feito se sentir na obrigação de conquistar minha confiança.

Eu não era culpada. Ninguém teria dúvidas disso. Ela contou porque quis. Mas a minha ansiedade sempre iria apontar a arma na minha testa e atirar: culpada! Culpada! Culpada!

A loira se jogou em meus braços, apoiando a cabeça na minha barriga enquanto eu deslizava os dedos entre os fios do seu cabelo. Ela tentava disfarçar as pequenas fungadas, mas esqueceu que eu podia sentir minha barriga umedecendo aos pouquinhos.

Não tinha nada a dizer. Fingi prestar atenção no Clube dos Cinco que passava na televisão. Mesmo sendo um dos meus filmes favoritos, os soluços de Lizzie me atraíam, partindo meu coração aos pouquinhos.

Tudo o que eu não precisava era me apegar a alguém. Que merda. Agora praticamente já tenho uma filha e um neto!

Ri baixinho com o pensamento inusitado. Depois pedi para o Universo ou qualquer que fosse o ser regente daquilo tudo, pra que ele permitisse Lizzie, de fato, ainda ter uma chance de ser feliz com Dylan e o bebê.

"Você precisa tentar".

Sei que falei que não tinha mais quinze anos e não acreditava em finais felizes. Mas ela era uma boa menina. Merecia o resquício de romantismo que eu guardava bem lá no fundo do peito. O mundo ainda teria tempo suficiente para ser cruel com ela.

"Você precisa tentar".

E se não for pedir muito, Universo, será que...

"Você precisa tentar".

Há alguma chance para mim também?

"Você precisa tentar".

I Don't Wanna Go Home Right NowOnde as histórias ganham vida. Descobre agora