|02| Cartas. Cartas. Cartas!

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AVISO: esse capítulo possui cenas de cunho e linguajar perturbador, sensível!

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#AnjoEmApuros

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Cartas,

Cartas,

Cartas!

"Talvez eu seja o único homem vivo nesta ilha que se lembra dos pássaros. Muitos morreram naquela época; dos poucos que restaram, a maioria deve ter falecido desde então. Por alguma razão, a Providência tem me proporcionado uma vida longa. Não me queixo disso — por que deveria?"

— Frank Baker,

Os pássaros

Há muito tempo, ainda no elevador, de partida do Inferno para o Céu ao lado de Chamuel, o arcanjo benfeitor, tive uma sensação estranha. Meu corpo estava quente, meu pescoço estava dormente, minhas mãos estavam suadas. No começo, acreditei ser ainda uma prova de todo o medo que senti ao viver todo aquele desastre terrível, mas depois passei a perceber que já havia sentido aquela reação mais de uma vez. Quando quebrei a jarra de minha mãe, por exemplo, e fiquei sentado no sofá pelo resto da tarde enquanto a aguardava chegar do trabalho. A mesma sensação estava aqui, fincada em minhas entranhas como uma centopeia de mil patas. Só que no lugar das patas haviam pequenas e finas agulhas furando meus órgãos até jorrar sangue. O frio na barriga era a segunda pior coisa. Mas a pior era o silêncio. Silêncio latente, daqueles que te deixa paralisado e incapaz de pensar sequer em seu próprio nome. Quando era criança e quebrei a jarra cara de minha mãe, não soube como denominar o sentimento agonizante. Quando estava subindo para o Céu no elevador, também não soube.

E quando atravessei os Portões Infernais e entrei no Primeiro Círculo Infernal, percebi que o que passei a vida inteira sentindo, mesmo que pelas coisas mais triviais da infância, foi pavor. E crianças não vivem em pavor, pelo menos a maioria delas. Crianças sorriem, brincam com outras crianças, derrubam um vaso e choram (não porque se sentem culpadas, mas porque o barulho talvez as tenha assustado). Crianças não sentam no sofá da sala à espera de uma boa surra, porque sabem que é o que vão ter quando sua mãe chegar. Mas eu sentava. Quando quebrei o abajur de meu pai, ele me chamou em seu quarto, e era uma noite bastante chuvosa e amedrontadora. Eu o obedeci, já sabia o que iria acontecer. Você sabe que isso é culpa sua, não é mesmo? Ele iria perguntar, a voz tão calma que me causaria arrepios. Não o responderia, apenas balançaria a cabeça positivamente, olhos no chão. Você é uma criança muito danada, Jimin. Ele diria, então bateria na palma de minhas mãos com um cinto e depois me mandaria para meu quarto.

Não gostava de lembrar desses momentos. Às vezes, e isso acontecia involuntariamente, eu acabava confundindo meu pai de verdade com o que havia sido inventado por mim em meu Teste de Redenção. Pensar muito sobre meu passado me trazia medo e o sentimento das centopeias de patas de agulha de volta. Misturar a realidade com o irreal era um de meus maiores hábitos e piores pesadelos. Às vezes eu não sabia o que era real.

Nas Mãos do Diabo [2] O KhaosWhere stories live. Discover now