Um brasileiro aqui?!

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Capítulo III
Um brasileiro aqui?

Acordei atônito com o barulho horroroso do telefone do quarto, parecendo até que eu havia sido sedado. Na verdade, não fui... "Será que fui?!" - pensei. Não quis atender naquele momento, poderia ser Ingrid. Nem quis saber quem era, para falar a verdade. De repente, parou de tocar. A dor de cabeça se misturava com a vontade de lembrar o que ocorreu naquela boate Eclipse. Olhei-me no espelho, a maquiagem toda borrada, a cara inchada, parecendo que coloquei litros de botox. Procurei um comprimido para dor de cabeça e, sinceramente, só queria relaxar naquela banheira deliciosa do quarto. Os sais e os florais estavam me esperando, enquanto o barulho da água enchendo a banheira me deixava livre para fazer uma busca mental nos episódios que se seguiram após eu tomar vários drinks com Milan e seus amigos na casa noturna. Tomei um susto com o barulho, dessa vez, do celular tocando. A voz de Milan, naquele inglês com sotaque tcheco, perguntando como eu estava após fazer e acontecer, me fez gelar. Perguntei-lhe logo o que eu tinha feito para causar tanto frisson.
- Bom, além de tomar várias tequilas, umas doses de absinto, um beijo triplo com meu amigo e minha amiga e... dançar um hit de Madonna no palco, recebendo aplausos e gritinhos, você não fez nada demais. - disse Milan, em tom de riso, não acreditando que eu não me lembrava realmente do que tinha ocorrido na noite anterior. Eu estava revivendo algo que me ocorrera quando eu tinha uns 17 anos, após tomar muitos drinks no primeira "calourada" dos meus tempos de universidade. Uma amnésia alcoólica absurda e louca. Na época, meus colegas me levaram para a casa da minha amiga Kassy. Eu só fui me lembrar dos fatos depois que ela me contou tudo em detalhes. Eu tinha me prometido não mais tomar tantos drinks a ponto de passar dos limites e, até aquele dia, na Eclipse, eu tinha conseguido o autocontrole. Mas... a liberdade de estar longe dos olhos de pai, mãe, amigos, amigas, irmãos e, especialmente, da minha querida irmãzinha, me fez mergulhar nos prazeres de experimentar, viver loucuras, tomar as bebidas que eu quisesse, sem me preocupar com as consequências. Os detalhes contados por Milan ativaram a parte da memória que tinha sido sedada pelo álcool em excesso e eu fui lembrando cada detalhe. Foi realmente do jeito que ele havia dito. Após tudo de louco que acontecera, ele ainda teve toda a paciência do mundo de me trazer até o hotel, me deixando na porta do quarto e beijando minha bochecha no estilo brasileiro de ser. Em frente ao espelho novamente, ouvindo tudo aquilo, minha face estava ruborizada de vergonha. Mas ele não estava num tom de voz de decepção e sim de espanto. Os beijos foram deliciosos, porque naquele momento eu me lembrava de tudo. A apresentação do clássico Like a Virgin, da minha musa Madonna, fez valer cada gotinha de absinto, pois Milan dissera que eu sequer tropecei ou caí.
- Foi icônico! - disse ele, continuando após uma pausa. - Você fazia os passos parecendo um cisne no rio Moldava. Confesso que fiquei encantado e com vontade de dançar contigo... Sabia que você tem um jeito bem feminino? Sei lá. Parece uma menina presa nesse corpo masculino, querendo se libertar de alguma corrente que te aprisiona... - resumiu.
- Olha, Milan, eu queria te pedir desculpas pelas situações loucas. Diz aos teus amigos que eu não sou essa porra-louca que eles viram surgir lá na boate. Realmente, tem algo em mim, desde criança, que me faz ser assim, ter esse lado feminino, masculino, essa ambiguidade. É algo que não sei controlar, nem sei também se agrada todo mundo. Me desculpa, tá? - tentei não ficar mais nervoso do que estava, ao sentir que talvez meu mais novo amigo não quisesse mais me ver durante aqueles dias em Praga. Perguntei se ele estava chateado com tudo. Ele disse que não estava nem um pouco. Apenas ficou preocupado pelo fato de eu estar num nível de embriaguez que não condizia com, segundo ele, aquela pessoa delicada, até certo ponto comedida, com um sorriso lindo, que havia conversado com ele no restaurante do hotel.
- Quem disse que não quero mais sair com você? Agora sou seu guarda costas igual àquele clássico dos anos 90, lembra? Vou te proteger como um jardineiro cuida de uma flor. Deixa comigo! Não vou cobrar nada... Aliás, pode ser que eu cobre algo, mas não é em dinheiro. - Milan deixou algo no ar com esse último comentário, dando uma gargalhada marota, fazendo-me imaginar qual seria o pagamento dado a um guarda costas tão dedicado em me proteger das armadilhas de Praga. Gostei da ideia, mas não perguntei sobre o misterioso pagamento. Ele queria me ver na noite seguinte, já que iria estar de folga naquele dia e iria visitar a mãe numa cidade distante de Praga, não aparecendo no hotel. Combinamos de nos ver, dessa vez a sós, para algo mais tranquilo: uma volta de barco. "Que romântico!" Pensei, após desligar o celular.
Minha dor de cabeça estava passando à medida que eu relaxava nas espumas da banheira, meus pensamentos fervilhando, a vontade de comer algo e depois sair pela cidade, do jeito que eu queria, sem agência de turismo, sem guias, buscando os locais que eu havia pesquisado, querendo viver novas aventuras sem tomar uma gota de álcool. Talvez uma taça de vinho... Afinal, uma taça de vinho faz bem para o sangue. De repente os olhos azuis do lindo rapaz no restaurante do hotel voltaram à minha mente. Fiquei a imaginar se ele voltaria a esbarrar comigo, pois dessa vez eu iria falar com ele. Ou não... Eu queria vê-lo novamente, mas como?! Teria de esperar pelas coincidências do destino. Afinal, acontecia muito bem nos filmes de comédia romântica, então por que não aconteceria comigo? Já de volta à cama aconchegante, a cabeça menos dolorida, fechei os olhos, entregue a um leve cochilo...
O telefone tocou de novo, como uma maldição, me despertando do cochilo. Gelei imaginando ser Ingrid. Dessa vez, graças ao meu bom Deus, era Kassandra.
- Oi, amor!!! Vem pra cá, louca! - Nem esperei ela se pronunciar e já fui logo implorando para que viesse a Praga. É claro que minha amicíssima não iria deixar seu mestrado em Campinas para viver as futilidades de umas férias na Europa. E ela estava realmente estressada havia dias, querendo conversar, desabafar um pouco. Me contou várias coisas sobre relacionamentos que não deram certo, briguinhas com os colegas de pesquisa, etc. Eu estava tentando prestar atenção e até queria ajudar, mas...não tirava aquele rapaz dos olhos azuis de meus pensamentos, parecia uma obsessão, e era óbvio que ela percebera isso.
- Rosen... ( Ai!...Odeio quando ela me chama pelo início de meu sobrenome...). Fala logo, vai... Eu sei que você quer me contar algo. E acho que é mais sério do que tudo que eu acabei de falar. - Disse Kassandra ao perceber minha real intenção.
Terminei falando sobre minha chegada à Europa, Paris e, é claro, Praga... Falei sobre a surpresa de ter conhecido Milan, sem mencionar, naquele momento, os detalhes na Eclipse. Mas eu queria mesmo era contar-lhe sobre o belo jovem euro-oriental que me deslumbrara na noite anterior. Para a minha surpresa ela amou ouvir aquilo tudo, pois sempre quisera que eu vivesse um novo amor. Ou novos amores... Ela sabia usar as palavras muito bem para me lisonjear e queria passar uma energia positiva de alguma forma. Há uns onze meses eu havia terminado um namoro avassalador com Kevin (um americano que eu conhecera no Rio de Janeiro) e o fim desse romance foi o estopim que me levara a Brasília. Eu desejava ficar só por um bom tempo, trabalhando, morando numa cidade bem diferente daquelas de litoral, pois era assim que iria esquecer tudo. E era exatamente a atração que eu estava sentindo por outra pessoa que a fez ficar felicíssima.
- Você está certíssimo em querer se apaixonar de novo, Rosen... É normal. Depois de tanto tempo é sadio que isso ocorra. Pena ser de um lugar tão longe, né? - disse ela ao se aperceber de que eu não estava no Brasil.
- Eu nem sei quem é o menino, Kassy (Ah! E ela, então, detestava quando eu a chamava de Kassy... Por isso, ficamos quites por um tempo). - Dei uma pausa para sentir se ela havia entendido bem minhas palavras.
- Claro que eu entendo sua situação, Rosen. (Argh! Três a um para ela). Mas... Já que você está nesse hotel lindo... espere até anoitecer. Com certeza o "zeus" em questão vai voltar... Aguarda ele. Agora fica na tua, tá?
Só poderia surgir de Kassy um pensamento tão louco. É evidente que eu não iria ficar preso no quarto até a noite só para fazer papel de ridículo. E eu tinha certeza de que aqueles olhares só foram por uma curiosidade banal, por isso jamais teria coragem de encará-lo novamente. Nessa conversa, já havia chegado a hora do almoço. Kassy finalmente desligara e a fome insistia em me perturbar. Após aquela eterna produção, digna de uma noiva que demorava horas para chegar ao altar, desci ao lounge para, pelo menos, tomar um bom vinho, no íntimo desejo de rever o tcheco só mais uma vez.
Nem adianta frisar que meus olhos só buscavam uma pessoa naquele ambiente. Mas a busca estava enfadonha, porque o ar condicionado não era capaz de aplacar o calor insuportável. E pelo jeito meu desejo não seria saciado naquele momento. Resolvi correr para o ônibus cheio de turistas que iriam dar um giro pela parte histórica da cidade. Não iria me tirar pedaço pegar uma carona e ir com eles. Era só relaxar e descer no primeiro local que eu havia planejado visitar e pronto... Tudo iria fluir, a noite iria chegar logo, logo, e com ela, o príncipe... Ai! Que horror... Eu, evoluidíssimo, pensando nessa história de "príncipe". Mas fazer o quê?! Eu realmente havia sido fisgado por aquele olhar e não iria sossegar até dizer um "boa-noite" em tcheco para ele. A essas alturas eu já estava no ônibus, mas pedi ao guia para descer um pouco antes e fazer o percurso a pé, sozinho, relaxando a mente e acalmando o coração. Mais uma vez, encantei-me com os monumentos históricos. Parei em frente à Praça Principal, no centro da cidade velha. Vários ônibus amontoavam-se num canto da praça hiper arborizada e repleta de fontes lindíssimas. Tudo ao redor era extremamente limpo e organizado, algo típico nos vários países europeus.
Sentei-me num banco junto ao jardim de tulipas que mais parecia um tapete alaranjado. Tantas pessoas passavam para lá e para cá... Meus olhos seguiam cada face e muitas vezes recebiam olhares curiosos de volta. Mas foi num café repleto de turistas bem jovens misturados aos cidadãos locais que eu percebi alguém. Não era o "deus grego" ainda, mas um jovem rapaz de feições tipicamente brasileiras, que se destacava pela cor negra em meio àquela multidão de caucasianos. "Com certeza é um brasileiro!", pensei, indo em seguida para uma das mesas do atraente local, no intuito de me comunicar com aquele sujeito, tal era a vontade que eu tinha de fazer amizade com brasileiros por ali. Ele conversava animadíssimo com umas três jovens que sentavam em sua mesa. Cada um tinha uma taça de suco e no meio umas batatas fritas. Não era de se admirar a ausência do velho cafezinho, pois o calor estava de rachar e o suco, com certeza, era a pedida do momento. Fiz meu pedido, levantando-me em seguida para fingir uma ida ao toalete, querendo desesperadamente ouvir e falar minha própria língua, por um momento só que fosse... E terminei por passar pela mesa em que os amigos conversavam, iniciando um diálogo sem pé nem cabeça para me certificar de que iria receber uma resposta no meu querido e desejado idioma. Por um golpe de sorte, Tony (esse era o nome dele), também era do Brasil e estava fazendo um "tour" por cidades pitorescas da Europa. Era de uma simpatia só, educadíssimo, requintado... é claro que, nessa altura do campeonato, eu já havia tomado mais um assento à sua disputada mesa, fazendo de tudo para não ser indelicado com suas amigas (que falavam um inglês chulo), sendo que minha intenção era pura e estritamente falar com o rapaz e andar pelo mundo afora, pois assim iria esquecer-me de esperar em um restaurante de hotel para ver um desconhecido de olhos azuis que eu nem sabia quem era direito.
Por fim consegui firmar amizade com Tony, percebendo claramente que tínhamos muitos pontos em comum, principalmente depois que eu falei sobre a "miragem" do dia anterior. As amigas dele, todas tchecas, tentavam da mesma forma serem amigáveis, mesmo fazendo um esforço terrível para conter o início de ciúme que teimava em surgir em seus semblantes, pelo fato de todas as atenções terem se revertido para minha pessoa, por honras e méritos somente meus.
Foi ótimo ter me aproximado dele. E iria ser difícil me afastar daquele novo amigo, após o balanço positivo que aquele dia propôs a todos nós. Ainda não compreendo como tudo deu tão certo, mas foi legal demais! Como estava a mais tempo que eu na cidade, Tony pôde me mostrar mais um lado da noite "caliente" de Praga, com suas moderníssimas casas noturnas e os badalados pontos de encontro para todos os jovens "descolados" da região. Um oásis para os olhos! Nem acreditava que minha noite estava sendo tão bem aproveitada. Dancei tanto! As meninas animavam a todos nós. Passei a simpatizar um pouquinho mais com elas depois disso e até gravei seus nomes: Agnieska (a mais velha, mais alta e mais simpática), Simona (a mais baixinha, mas também a mais bonita das três) e Sophie (uma tcheca descendente de franceses, mostrando a princípio um ar de deboche, mas não deixando de ser simpática por causa disso).
A casa noturna escolhida por Tony estava uma delícia, era bem diferente da que eu tinha ido com Milan, havia mais músicas techno e pessoas "fashion", pela classificação que Tony dava a elas. Muitos rapazes se aproximavam de nosso grupo tentando estabelecer contato, pois as moças eram realmente belas. Outros, movidos por uma sutil curiosidade, queriam também conhecer-nos, visto que o tom diferente a atraente de pele e a desenvoltura na pista de dança realmente estavam chamando a atenção. Terminei por ficar cansado de tanto barulho, mais pelo fato de não estar acostumado àquela badalação toda. Falei ao meu novo amigo que iria descansar um pouco, "recuperar as energias", porque, segundo ele, a noite estava apenas começando. As meninas ainda estavam agitadíssimas, despreocupadas de tudo, querendo apenas aproveitar a "balada". Eu é quem era o caipira da história. Se bem que eu gostava de curtir "happy hours" com meus poucos amigos em Brasília, mas não tão intensamente quanto os loucos que acabara de conhecer.
Que fôlego! Dançavam e conversavam sem parar, falando com todos a sua volta. Tony sempre como intermediário do grupo, apresentando rapazes belíssimos às meninas e é claro, sendo assediado por uns tantos mais ousados, visto que na maioria das cidades cosmopolitas do Velho Continente já quase não havia espaço para preconceitos e discriminações fúteis salvo em casos isolados que insistiam em acontecer. Os cafés, casas noturnas e muitos outros estabelecimentos daquela cidade fantástica eram ecléticos quanto a público. Pessoas de vários gostos e estilos não tinham problemas de comunicação. Mas cada "tribo" se respeitava mutuamente sem invadir o espaço umas das outras. E eu, é claro, estava envolvido com tudo isso, esquecendo até que ainda morria de saudades da minha "terra brasilis", de meus pais e amigos. Na sacada imensa do segundo piso, eu descansava, observando as luzes, tomando uma água bem refrescante. Estava amando a brisa que soprava vinda das montanhas do leste. Rapidamente lembrei-me do misterioso rapaz do hotel, daqueles olhos lindos...
"Ai, tive uma chance em milhões de falar com ele e nada...", sussurrava...

Amor em PragaWhere stories live. Discover now