Vinte e quatro

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Nei me contou que fazia algum tempo que não falava com a minha mãe, mas que tinha o e-mail dela e havia retomado o contato depois que me conheceu. Mandou uma mensagem breve falando sobre o nosso encontro e sobre as minhas dúvidas. Ela respondeu com uma carta endereçada a mim, que ele imprimiu e colocou no envelope que acabará de entregar.

Antes que eu abrisse, ele disse que tentou retomar o contato com o meu pai mas não trazia boas notícias. Augusto Paes tinha falecido há alguns anos.

Recebi um abraço cheio de afeto de Nei, por um instante me fez lembrar o abraço de dona Beth. Em seguida ele se retirou, para que eu pudesse ler a carta da minha mãe no lugar que, segundo ele, eu estaria o mais próximo possível dela naquele momento: o palco.


Já comecei a escrever esse e-mail várias vezes, mas nada parece certo... nada parece bom o suficiente. Não sei se devo me apresentar como sua mãe, foi dona Beth que exerceu esse papel. Tenho certeza que muito bem, por sinal. Ela me mandava cartas todas as semanas falando sobre você, sabia? No início eu não abria, tinha sido clara sobre não querer vinculo – eu não podia me apegar. Mas em uma das cartas tinha um desenho dentro, dava para ver através do envelope, eu fiquei curiosa e abri. Chorei por horas, imaginando suas mãos colorindo aquele papel.

Não vou mentir, eram rabiscos de uma criança que ainda aprendia a segura o lápis. Mas eu tenho aqui em casa até hoje.

A partir daí, comecei a ler e responder as cartas. Fica ansiosa para saber sobre você e sonhava em poder te abraçar. Mas a vida de uma imigrante ilegal não permite esse tipo de desejo. Eu tinha que ficar. Uma vez, no Natal, mandei um estojo de canetinhas de presente. Ela me disse que você as chamava de canetinhas especiais, é verdade?

Tive medo de me aproximar de você e te fazer sofrer. A vida de imigrante é difícil, não tinha como trazer você e minha mãe pra cá, ela não aguentaria se submeter ao que é necessário para ter uma vida boa. Foi mais fácil assim. Eu juro.

Quando eu consegui um visto, mamãe tinha morrido. Eu demorei anos para descobrir que ela não tinha parado de responder minhas cartas. Encontrar você era impossível.

Apesar de não ter sido de fato a sua mãe, queria te dar um conselho. Na verdade, reproduzir o que dona Beth me disse quando arrumei minhas malas para tentar ser uma atriz na Broadway: seja sempre você, apesar de qualquer coisa. Espero que você seja feliz sempre. Primeiro sozinho e depois com alguém tão feliz quanto você.

Espero que você me desculpe e, quem sabe, me responda essa mensagem.

Eu adoraria conversar com você mais vezes e te abraçar um dia.

XOXO


*

Assim como aconteceu da primeira vez, fui levado para um abrigo até que vovó ficasse boa. A casa era a mesma e, em partes, as crianças também. Alguns poucos tinham sido adotados ou levados por parentes. Outros tinham completado 18 anos e, por isso, não viviam mais por lá.

Dessa vez fiquei em um outro quarto, destino aos mais velhos. Três companheiros de quarto eram conhecidos da minha primeira passagem por lá. Quando cheguei ficaram felizes, mas logo perceberam que vó Beth (como eles a chamavam) não estava junto e entenderam que aquilo não era uma visita.

- O que aconteceu?

- Minha vó passou mal, está internada.

- Mas vai ficar tudo bem?

- Não sei ainda... mas ela sempre fica bem.

Como da outra vez, eles me cederam parte do pouco que tinha e eu passei os dias esperando por notícias de minha vó. Explicaram que dessa vez a situação era mais complicada, pois era o segundo AVC. Aliás, o terceiro. Foram dois seguidos. Por conta disso, vovó foi levada para a UTI e eu não podia fazer visitas. Só adultos podiam entrar. Pedi para avisarem as amigas das aulas de pintura, para que vovó não se sentisse sozinha e soube que todos os dias uma das senhoras passa uma hora com vovó.

Elas conversavam sobre o curso.

Mas vovó não respondia nada. Estava sempre dormindo.

Duas semanas se passaram até o dia em que a assistente social do hospital foi me procurar. Ela contou das visitas das amigas da minha vó, perguntou sobre a escola e o meu trabalho. Depois me convidou para a acompanhar até o hospital. Aceitei e nós saímos logo em seguida. Ela não falou nada no caminho. Também fiquei em silêncio. Quando o carro chegou ao hospital, o motorista sinalizou onde iria me esperar e nós entramos. Os corredores eram enormes e cheios de portas todas iguais. Ela abriu uma delas, sentou de um lado da mesa e eu do outro.

Minhas pernas tremiam.

Minhas mãos estavam geladas.

Ela não tinha dito nada, mas eu estava pronto para chorar.

Conforme me explicou, vovó ainda não estava melhor. Mas os médicos acreditavam que ouvir minha voz poderia ajudá-la a responder aos estímulos aos quais estava sendo submetida. Por essa razão eles abriram uma exceção e iam permitir que eu fizesse uma visita naquele dia. Fui explicado sobre como a paciente 3.255 estava, para não me assustar, e depois saímos da sala em direção ao fim do corredor.

Antes de entrar tive que vestir um avental azul, uma touca, máscara e até sapatinhos descartáveis. Fui orientado a não chegar muito perto dela e nem apertar suas mãos com força. Sinalizei que tinha entendido e eles abriram a porta. Várias camas estava enfileiradas, separadas apenas por uma pequena mureta, eu olhava cada uma delas e não encontrava minha vó em nenhuma. Ela estava separada de todos, no fundo da sala, num espaço com paredes de vidro.

O ambiente era muito frio e sentia meus lábios tremerem. A vontade de chorar deixava a tremedeira ainda mais intensa, é claro.

- Oi vó, tdo bem? É o Alberto. Não sei se a senhora está sabendo o que aconteceu... eu acordei com o Osmar chamando no portão, não abri e de repente a polícia estava no nosso portão. Eles me levaram pra delegacia e pediram pra explicar o que aconteceu. Está tudo bem comigo. Eu estou naquela mesma casa, com os meninos que a senhora já conhece. Eles pediram pra mandar um beijo e nós estamos todos rezando pra senhora ficar bem logo. Te amo vó.

Eu olhei pra ela por um tempão, esperando que os olhos abrissem e eu recebesse um abraço. Infelizmente isso não aconteceu.

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now