Vinte

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Eu continuei frequentado a mesma escola. Mas por conta da distância, vovó deixou de me levar e começou a pagar uma perua escolar para fazer essa função todos os dias. Além disso, no novo bairro não tinha nenhum mercado parecido com o do seo Laurinho, apenas grandes redes, e ela não podia "pendurar a conta" e nem pedir pra deixarem as compras separadas. Passou a comprar tudo no início do mês, quando recebia a aposentadoria. O volume de sacolas era grande e nós dois não conseguíamos carregar tudo. Era necessário pedir um táxi ou então solicitar a entrega no mercado.

A segunda opção era gratuita.

Esses pequenos detalhes fizeram com que ela ficasse cada vez mais dentro de casa. Aliás, dentro de uma casa a qual não pertencia. As atividades físicas deixaram de ser rotineiras e, aos poucos, outros prazeres também sumiram.

As coisas acontecem de maneira gradual e são imperceptíveis. Aos meus olhos, de um dia para o outro vó Beth preferia comprar um bolo pronto a ter que bater a massa e enrolar brigadeiros no meu aniversário. Imaginei que fosse um reflexo da idade ou algo assim e agradeci pelo bolo e por tê-la ao meu lado em mais um ano.

*

Eu não tinha as perguntas definidas. Ainda assim não conseguia ficar em silêncio após ouvir que Nei, talvez, poderia me ajudar. Falei o nome da minha mãe. Só isso. Os olhos dele brilharam e seu rosto formou um sorriso ao ouvir minha voz.

Augusto Paes.

Voltei para casa sabendo o nome do meu pai. Augusto Paes. Nei dirigiu a minha mãe em duas peças de teatro e até hoje tem um carinho muito especial por ela. Quando o elenco voltou para o palco, ele me pediu que continuasse ali e aguardasse até o fim do ensaio. Eu esperei, não tinha para onde ir de qualquer modo. Nesse momento já sabia qual era o nome do meu pai e, sem que me desse conta, estava vendo uma lista infinita com aquele nome no Facebook. Não acho que nenhum deles seja realmente o meu pai.

O ensaio terminou e Nei me levou para um barzinho próximo ao teatro. Provavelmente aquele é o point dos atores, pois todos o conheciam e o garçom já veio nos atender com uma cerveja que, segundo ele, era a mais gelada de todas.

Nei abriu a garrafa com as mãos mesmo, uma arte que eu não domino, mas admiro. Em seguida, encheu os dois copos até quase derramarem e respirou fundo. Eu já sabia: nós tínhamos uma longa conversa pela frente e, provavelmente, muitas emoções (pelo menos para ele).

Ele começou dizendo que meus olhos eram iguais aos da minha mãe. Segundo ele, profundos e enigmáticos. Porém o sorriso era o do meu pai. Falou, em seguida, sobre como ela era talentosa e amava estar em frente a uma plateia lotada. Descobri que minha mãe também cantava. Ela conheceu o meu pai durante a produção de um musical, adaptação de uma peça da Broadway. Ele fazia parte da pequena orquestra que participava ao vivo nos espetáculos, tocava violoncelo. Pelo que Nei contou, Augusto só soube da gravidez da minha mãe depois que ela já tinha partido. O namoro acabou junto com a temporada daquele teatro. Ela começou a se preparar pra um novo desafio, ele viajou com uma orquestra. Recebeu a carta só quando voltou para casa, era tarde para dizer que queria construir uma família.

É engraçado como Nei tem todas as informações frescas na memória. Mesmo que num primeiro olhar o senhor - alto, muito magro e de cabelos brancos presos em um rabo de cavalo torto - não aparente se lembrar tão bem do passado.

Parece que ele passou todos esses anos esperando que alguém aparecesse falando que era filho de Elisa de Morais. Conversamos por horas e até esquecemos da cerveja, que ficou quente e intocada no copo. Nós nos despedimos, o diretor de teatro me deu seu número de telefone e me fez prometer que voltaria em breve. Ele queria me entregar algumas fotos e me ver lendo um texto. Disse que era impossível ser filho de Elisa e não ter talento.

Eu sai de casa sem rumo. Na volta tinha uma família para chamar de minha.

O Azul do Meu PassadoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora