Memórias Póstumas

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Bom dia, boa tarde, boa noite e boa madrugada a todos e todas aqui presentes hoje. Agradeço a oportunidade de poder falar com vocês sobre algo muito delicado e delicioso: minha vida.

Por que usei todas as possibilidades de temporalidade?

Oras, fácil responder. Quero que minha fala seja atemporal e que seja válida em todos os momentos, e que faça sentido sempre que for lembrada por todos aqui.

Começo meu discurso com um questionamento simples, é verdade, mas ainda assim que me incomoda profundamente: Eu deveria estar morto?

É o justo, não?!

Sempre me pergunto isso, principalmente quando me questiono sobre o sentido da vida. Para que nascemos, se no final iremos morrer? Qual é o sentido de ultrapassar por tantas dificuldades e alegrias se no fim tudo não passará de memórias que viverão em outras pessoas e que um dia também morrerão, até tudo virar poeira de lembranças?

Sempre me questionei isso.

Em um dado momento, briguei com a religião, briguei não só com Deus, mas com o Olimpo todo, não querendo aceitar a sentença que a vida nos dá, sem perguntar nossa opinião. E eu refleti muito sobre a questão da vida versus a morte.

Entendi que as religiões nada mais eram do que saídas confortáveis para nossa existência limitada. Pensar que alguma força mágica criou tudo e olha por nós, mas que ao mesmo tempo não intervém no sofrimento e nas dificuldades das pessoas, sempre me incomodou demais.

Afinal, qual é o sentido de existir como um Ser Poderoso que não pode interferir nas escolhas e nas desgraças daqueles que foram criados por si? Qual a graça disso afinal?

Mas, no fim, eu entendi o sentido disso tudo.

E não, não foi sozinho que eu entendi. Eu jamais teria capacidade disso. O nome da pessoa, sim, pessoa humana, como todos nós aqui reunidos, que me ajudou a ver e rever minha vida e suas vicissitudes é Jeon Jungkook.

Eu, cético e religioso, desesperado e desenganado, sempre imaginei que minha salvação só poderia vir de maneira divina e inexplicável. E é aí que a vida me dá um tapa na face, mostrando que não há nada de ininteligível ou mágico nas relações humanas.

Humanos machucam humanos.

Humanos salvam humanos.

E meu intuito hoje é contar um pouquinho de como eu fui salvo por um humano de mesma estatura e sexo biológico que eu. Um humano bonito que me fez sofrer, chorar, sorrir e, principalmente, me amar, me aceitar e me entender.

Jungkook sempre foi um paradoxo para mim, já que sempre imaginei que eu o ensinaria coisas novas na vida, eu que acrescentaria aprendizagens, mas veja só, eu mais aprendi do que lecionei.

Jovem e desimpedido, acrescentou cores à minha vida da maneira mais inusitada, já que era fã de cores neutras, que sempre contrastaram com as milhares de cores que eu costumo usar. Talvez, todas as cores que me colorem sempre tenham sido uma maneira de eu tentar parecer mais forte e feliz do que de fato era.

E é por isso que ele sempre foi tão dicotômico em relação à mim.

O preto, o branco e o cinza que moravam nele me alegravam mais do que o azul, o amarelo e o vermelho que eu insistia em vestir.

Foi uma boa vida que tive ao seu lado. Não posso nunca dizer algo diferente disso. Foi uma vida difícil também, não posso negar e nem florear a verdade, mas, felizmente, posso selecionar as partes bonitas para contar. Ainda bem que podemos escolher, não?!

E falando em escolhas, essa é outra questão que sempre me incomodou.

Todos sempre me diziam que eu era responsável pelas coisas que eu escolhia e que deveria arcar com as consequências de meus atos. Mas e quando esses atos não são pensados e refletidos, ainda assim são escolhas?

E foi nesse desamparo que me deparei com a icônica frase de Sartre que dizia "somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à liberdade".

E então entendi que mesmo as atitudes impensadas ainda assim eram escolhas. Eu podia escolher ser inconsequente. Eu podia escolher não pensar, não refletir e não tomar atitudes conscientes.

Jungkook apareceu em minha vida em uma dessas escolhas de minha liberdade condicional. Mas, sinceramente, foi a melhor escolha impensada que eu já tive.

Mas acredito que já introduzi demais, está na hora de começar a explanar os fatos escolhidos à dedo por mim, esses sim, escolhidos conscientemente e refletidos na mensagem que quero lhes passar.

Foi em 2017 que tudo começou.

Éramos jovens e bonitos.

Conheci-o em um aplicativo de relacionamentos que já não existe mais, o MEEFF. Uma forma rápida e barata — afinal, bastava ter um acesso mediano à internet — de conseguir sexo fácil.

Mas eu conquistei mais do que sexo. Como eu disse, eu conquistei o sentido da vida. Mais uma escolha não escolhida.

Depois de algumas mensagens, começamos a conversar no KakaoTalk e em pouquíssimo tempo começamos a nos encontrar. Ele era muito reservado e eu gostava disso. Apesar de eu sempre ter sido falante e extrovertido, eu tinha muito problema para me relacionar intimamente com as pessoas. Uma espécie de auto defesa, depois de tantos fracassos sucessivamente.

Por isso saíamos para tomar sorvete, ir ao cinema e ao fliperama. E, claro, beijar. Muito. A gente se beijava tanto e era tão bom, que levarei para a eternidade a saudade de seus beijos.

Ser heterossexual é muito mais fácil. Invejo quem é. Além de ser a orientação sexual socialmente aceita, é fácil saber quem penetra e quem será penetrado, apesar de eu saber que nem sempre à quatro paredes as coisas funcionem de maneira tão redonda e organizada.

A vida é assim.

Um emaranhado de nós e basta que olhemos para essa corda enroscada e então decidirmos se iremos olhar para as pontas soltas, retas e organizadas, ou para o tumulto de emaranhados enrolados. Eu sempre olhei os nós, mas sempre achei que olhava as pontas.

Na comunidade LGBT+ as coisas funcionam de maneira diferente. Porque quando a gente se interessa por alguém do mesmo sexo, já temos a primeira dúvida: será que a outra pessoa também é LGBT+? Se afirmativo, vem a segunda dúvida: será que nosso posicionamento sexual é compatível?

É sempre uma nova descoberta e Jungkook foi a melhor delas.

Começo aqui nossa história...

Herança Imprudente VitalWhere stories live. Discover now