Memórias vivas

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Em outubro desde ano, 2083, completou três anos que estou viúvo. Jungkook me deixou em 18 de outubro de 2080. Aos 83 anos, um mês e 17 dias, o homem que mais amei, e ainda amo, fechou os olhos para sempre.

E hoje, aos quase 85 anos, tento me manter saudável para cumprir minha promessa de viver até o 100º ano de vida. E é maravilhoso poder contar um resumo de minha história de vida nessa 27ª edição do Congresso Interdisciplinar de Enfrentamento ao HIV. Ainda mais tendo a honrosa possibilidade de lançar meu livro autobiográfico: "Herança Imprudente Vital".

Trouxe a minha história não só apenas para emocionar, como eu vejo aqui de cima desse palanque as pessoas enxugando pequenas lágrimas, mas também para inspirar.

Quando descobri meu vírus, eu estava com 17 anos. No momento do diagnóstico, eu senti que morri, senti que nada mais na minha vida importava, porque eu tinha dentro de mim uma bomba relógio que poderia explodir a qualquer momento. Meu corpo era um campo minado.

Sessenta e oito anos se passaram desde que alguém me contou sobre o meu diagnóstico e eu ainda estou aqui. Eu, um portador do vírus do HIV, destinado a morte, condenado a finitude, estou aqui. E estou viúvo. Jungkook, um rapaz que eu conheci, sorodivergente, não está aqui agora.

Ele era imunologicamente saudável, e eu, debilitado. Nossas vidas tinham expectativas diferentes ao olhar do senso comum. Eu estava fadado a morrer e ele fadado a viver a minha falta. Mas não foi assim que a vida nos presenteou.

Agora sou eu quem vive os desfortúnios e prazeres da saudade lacerante. Hoje não é Jungkook que conta como é viver o luto de ter escolhido viver ao lado de alguém condenado socialmente à morte. Hoje, sou eu, Kim Taehyung, quem conta essa história.

Nesses muitos anos de enfrentamento contra o vírus, muitas drogas foram lançadas, muitos métodos, procedimentos e protocolos foram atualizados, mas a minha ideia e meu principal objetivo de hoje é contar quais foram os melhores remédios para minha saúde.

Primeiro, fé. Acreditar que eu podia seguir em frente com meus sonhos e projetos foi o que me fez superar o momento crítico do diagnóstico. E eu não digo fé em um sentido religioso, mas sim em um sentido holístico. Fé no sentido de crença de que as coisas podem melhorar, podem caminhar, podem sim seguir em frente.

Foi a fé de que eu não viraria estatística que me fez adentrar o ensino superior, me formar, trabalhar e adquirir independência e autonomia para morar sozinho e fazer planos.

Diversos estudos mostram o papel do humor no tratamento contra doenças crônicas, principalmente o HIV. Nesses estudos, a depressão é o transtorno de humor mais citado como grande inimigo da medicina e de toda a tecnologia de saúde. E a fé e a melhor maneira de tratar a depressão.

Quando buscamos tratamentos médicos, nutricionais e psicológicos mostramos que temos fé que podemos melhorar. E foi essa fé que não me deixou desistir.

Alguns dias são sombrios e escuros, nos enchem de desesperança e desespero. A vontade de desistir de tudo e morrer nos cobre com seu manto autodestrutivo. E esses dias são normais e necessários. E a partir deles que podemos refletir sobre nossas prioridades, rever nossos objetivos e traçar novos planos.

Mas para isso, é preciso o mínimo de fé, de crença de que as coisas não são permanentes, pois nada é para sempre. Nem dores, nem amores.

O segundo remédio, e mais potente, é o amor. E não, amor por si só não cura nada. Alguém te amar não vai acabar com as mazelas sociais. O amor é um sentimento de cuidado e proteção. E é por isso que o amor mais importante é sim o amor próprio.

Quando nos amamos, nos cuidamos. Quando nos amamos, nos respeitamos.

E é com esse cuidado e respeito que podemos nos abrir para possibilidades. E foi com esse amor que aos poucos fui nutrindo por mim, que eu fui cuidando de minha saúde e respeitando meus limites. Foi esse amor próprio que me permitiu ser sincero com Jungkook desde o início.

Foi esse amor próprio que me fez temer que ele pudesse sofrer os mesmos desesperos que eu e me fez negar qualquer intimidade que acima de tudo me desrespeitava. Transar com ele sem lhe contar de minha doença não era apenas um desrespeito ao direito dele de pensar sobre esse relacionamento, mas era sim uma falta de respeito aos meus ideais.

Ideais esses cunhados com muita dor e dificuldade, com muito autoconhecimento e amor. Esconder isso dele, era esconder isso de mim. E por isso não escondi. E foi esse amor por mim que o fez voltar e me presentear com o seu amor.

E aí entramos no segundo amor importante. O amor para com o outro. Receber o amor de alguém e poder retribuir é uma dádiva que eu espero que todos aqui possam um dia experimentar.

Jungkook me ensinou muito sobre mim. Lecionou matérias minhas para mim mesmo, sobre como eu sou chato quando estou com sono, ou como eu sou irritante quando a casa não está impecavelmente limpar. Ele me ensinou também o quanto eu sou generoso quando eu empatizo e o quanto sou altruísta também.

Ele me ajudou a superar medos, enfrentar obstáculos, lutar pelos meus projetos e abrir mão de sonhos não possíveis. Jungkook reforçou em mim a ideia de apenas o amor pode salvar e curar.

Estar aqui hoje é maravilhoso. Poder falar do quanto o homem que eu mais amei, que mais me amou e mais me ensinou, isso é mágico. Poder dizer publicamente que eu estive casado com um homem sorodivergente me traz um sentimento indizível e indescritível.

Poder, publicamente, afirmar que sim, eu fui casado com o juiz de direito, Jeon Jungkook, que lutou para que hoje eu pudesse contar nossa história, me enche de orgulho, alegria, fé e principalmente amor.

Vocês que me assistem agora, que ouvem a minha fala, extensa, e talvez cansativa, tem o privilégio de a partir deste momento assumir a responsabilidade de continuar a lutar pelo direito de pessoas como eu, afinal, já sou velho o bastante para continuar nessa luta de direito e ainda tenho que gastar o meu resto de força e coragem com uma promessa muito importante para mim.

Prometi a meu esposo que eu ficaria aqui por mais 17 anos, faltam 15.

Por isso, o dia de hoje é tão importante para mim. Hoje é o dia que eu passo a minha luta pessoal para todos os congressistas que estão por aqui. Hoje passo a minha coroa, e a de Jungkook também.

E para quem quiser levar minha história para sua casa, os exemplares estão sendo vendidos no saguão principal. E é assim, com esse merchandising, que eu encerro a minha fala.

Herança Imprudente VitalDonde viven las historias. Descúbrelo ahora