GOLDFIELD - Nerdices e análises

Watchmen - Seriado (20/12/2019)

Watchmen da HBO mostra-se uma obra extremamente relevante não só por sua qualidade criativa, mas por conectar-se ao seu tempo – e isso nos leva ao segundo ponto...

A CARAPUÇA DO RORSCHACH SERVIU

Uma das maiores críticas à série – que também fez parte do público abandoná-la após o primeiro episódio – foi a Sétima Cavalaria. Grupo supremacista branco e ultraconservador que permeia o enredo, causou controvérsia entre os fãs devido a seus membros usarem como símbolo a máscara do personagem Rorschach, um dos vigilantes originais da HQ e que morreu ao final da mesma. Segundo as reclamações, Rorschach não era um supremacista branco, a série desvirtuou-o ao associá-lo ao grupo ou, pior, rotulou como racista quem gosta do personagem.

Aqui se pode apontar diversas questões, desde Rorschach ser, sim, de extrema direita na HQ, algo não só indicado por seu discurso e ações, mas pelo próprio Alan Moore, que em anotações conceituais apontou querer criar um personagem de direita que não fosse caricato (algo com o risco de acontecer, já que o autor é declaradamente de esquerda) – e daí termos a razão, por ser extremamente bem escrito, de pessoas simpatizarem com Rorschach, mas não necessariamente com seus ideais; ou até com eles também, ainda que não num nível consciente.

Algo similar ocorreu comigo há algum tempo, enquanto escrevia um original chamado "Os Guaranis", sobre vigilantes mascarados no Brasil, com ares muito similares a Watchmen. Um dos justiceiros era o "Sigma Dourado" (já incluí uma associação ao integralismo no nome e no símbolo ao uniforme), conhecido pelo discurso maniqueísta no combate ao crime, os diversos preconceitos imbuídos em suas atitudes e pelo uso da força letal. Minha alegoria foi muito mais explícita que o Rorschach de Moore, mas embora a intenção fosse também mostrar as atitudes do Sigma Dourado como questionáveis, ele se tornou um "queridinho" dos leitores, chegando ao nível de o tratarem e endossarem praticamente como protagonista. O fato de as cenas do Sigma serem escritas em "POV" (point-of-view, ou seja, com narrativa e descrições a partir do ponto de vista do personagem), de modo similar a como Rorschach narra diversos trechos da HQ (fornecendo, inclusive, algumas de suas falas mais memoráveis, como a do palhaço Pagliacci), gera identificação e carisma com os leitores, a ponto de se passar batido pelo conteúdo político do personagem por representar um senso comum enraizado em boa parte da população. Tenho certeza que, se os leitores de "Os Guaranis" soubessem de minhas ideias para o Sigma Dourado na continuação, quando ele criaria uma milícia fascista com outros mascarados e tomaria Anchieta como ditador (se não sabiam, sabem agora), alegariam que eu distorci o personagem assim como o seriado fez com Rorschach – sendo que esse viés, essa possibilidade de desenvolvimento de enredo, sempre esteve ali.

Outro ponto é que as nuances envolvendo a Sétima Cavalaria na série se tornam muito mais complexas após o primeiro episódio – e os fãs revoltados que a abandonaram permaneceram apenas com a "fachada" da organização assim como os cidadãos comuns do mundo da trama, numa involuntária, mas fenomenal, quebra de quarta parede. Ao longo dos capítulos, descobrimos que o grupo é manipulado pelo senador Keene Jr., que fomentou uma guerra entre ele e a polícia de Tulsa, levando os próprios oficiais desta a também se mascararem após um grande atentado realizado pelos supremacistas. Nesse contexto, em que o político e seus aliados, embora também racistas (a seita "Ciclope", espécie de derivado da Ku Klux Klan), utilizavam os "peixes pequenos" da Sétima Cavalaria aos seus próprios interesses (primeiro, Keene Jr. virar presidente dos EUA; depois, tornar-se o Dr. Manhattan), podemos certamente considerar que o uso da máscara do Rorschach tenha sido uma medida premeditada pelos idealizadores do conflito, levando à simpatia dos insatisfeitos com o governo Redford (voltarei nisso adiante) e teóricos da conspiração que sempre viram no vigilante o epicentro das acusações de manipulação contra o governo, devido à publicação de seu diário com a verdade sobre a lula gigante ao final da HQ.