Coringa (16/10/2019)

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É por esse barril prestes a explodir que caminha Arthur Fleck, isolado em seus transtornos mentais frente a pessoas que, se não o repelem, não o compreendem, criando o cenário maior de uma sociedade cuja maior característica é não dar a mínima para pessoas como ele. Temos a psiquiatra resignada que pede desculpas por pouco fazer pelo paciente diante de um Estado que corta verbas para consultas e remédios. O colega de trabalho que o prejudica e depois mente para se safar. O apresentador de talk show que, colhendo pessoas consideradas "bizarras" para expor em seu programa, passa de ídolo a alvo do protagonista. Uma Gotham que condiciona monstros. Até que, ultrapassando os limites, o maior deles nasce.

O HOMEM NASCE BOM...

"Coringa" é um filme que dialoga muito bem com o pensamento do filósofo contratualista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A desigualdade, firmada essencialmente na propriedade (ricos x pobres), é o que condiciona o pesadelo que Gotham é: desde a deterioração de Penny Fleck, mãe de Arthur (e sua conturbada relação com os Wayne), passando pelas portas fechadas a Arthur realizar seu sonho de tornar-se comediante, até o talk show diário que coloca panos quentes na situação, sublimando as tensões ao convertê-las em ironia no seu bordão "That's life". Em muitos pontos do filme, a tensão social em ascensão após os assassinatos de Arthur no metrô me lembrou a ebulição da Revolução Francesa (e aqui temos um segundo filme do Batman remetendo a esse evento histórico, o outro sendo "The Dark Knight Rises" de Christopher Nolan, mas que o faz por uma perspectiva conservadora. Isso agora torna possível contrapor esses dois filmes – prato cheio para uma aula de Ciência Política). A alta sociedade assistindo a "Tempos Modernos" de Chaplin (outro filme de teor antissistema) num teatro, isolada do povo a protestar, lembra a alta nobreza vivendo no requinte de Versalhes enquanto a França seguia paupérrima. Thomas Wayne chamando o povo de palhaços é quase uma Maria Antonieta mandando a população comer brioches. A situação chega ao ápice da "Queda da Bastilha" na noite em que os Wayne são assassinados. E Arthur Fleck é, essencialmente, exemplo do homem natural que tem sua essência corrompida por essa sociedade doente – tornando-se líder de uma revolução para justamente derrubar esse estado de coisas.

No entanto, discordo que essa abordagem do roteiro possa ser considerada um incentivo à superação violenta desses conflitos, pois entendi o filme como um "cautionary tale" (conto preventivo) – o tipo de história que cria o cenário mais catastrófico possível para alertar: "cuidado: mudem, ou chegaremos a essa situação" (assim como certas fábulas o fazem). Os problemas expostos no filme, sim, são uma crítica às desigualdades e ao papel das elites e do Estado no processo, mas o roteiro não necessariamente compactua com a solução apresentada. O vilão ser entronado líder pelo povo mostra o quão as coisas podem piorar. E cabe a nós mudarmos para não gerarmos Coringas em nosso meio social – resultado da descrença dos indivíduos em melhorias econômicas, nas instituições estabelecidas e, pior, quando são alvo de ridicularização ou isolamento quando possuem distúrbios psíquicos e não encontram apoio para tratá-los.

Essa mensagem é inclusive explícita. "Coringa" é um filme de poucas sutilezas. No clímax, antes de atirar no apresentador do talk show, o personagem grita com todas as letras ser resultado de uma sociedade que trata pessoas com transtornos mentais como lixo. Aliás, essa fala, apesar de conter uma crítica verdadeira, até gera certa quebra de construção, tanto pelo Coringa, no início da entrevista, não afirmar-se como um líder de revolução, quanto por contrastar muito com o que conhecemos do personagem nos quadrinhos. O Coringa é caos puro, a maldade sem parâmetros ou regras, a tendência "caótico e mau" do D&D. Já o deste filme é um psicopata que adota uma causa, diferente de sua contraparte. Isso não desmerece a produção, porém entendo ser um dos motivos pelos quais fãs das HQs têm demonstrado dificuldade em relacionar esta versão à mais conhecida. E, se analisarmos friamente, o Coringa de Heath Ledger (que não é superado por este) também "adota uma causa" – e isso não faz dele pior para o contexto em que se insere.

GOLDFIELD - Nerdices e análisesWhere stories live. Discover now