1. O porquê

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Resmunguei baixo quando um dos livros escorregou das minhas mãos e tive que me agachar pra pegar de volta.

Foi quando, sem querer, vi algo que antes a portinha de metal me impossibilitava de visualizar.

Rafaela e Felipe encostados no armário, flertando, a três metros de distância de mim.

Teria sido uma cena aparentemente fofa no estilo  filme americano se o mesmo garoto que sorria bem "sedutor" para a popularzinha não fosse o mesmo que no dia anterior estava apalpando a bunda de uma garota do nono ano.

É claro, eu podia ir até lá e contar sobre aquilo pra namorada dele, mas ela estava encantada demais no sorriso do seu paquera pra acreditar em qualquer pessoa que lhe apontasse o fato do garoto ser um completo nojento. Aliás, tinha quase batido na última pessoa que havia se aprevido a contar que havia pego ele beijando outra garota.

Ver aquele tipo de cena só reforçava minha suspeita: tinha alguma coisa muito errada com aquele negócio que as pessoas popularmente chamavam de amor.

Quer dizer, as pessoas perdiam completamente a noção do ridículo! Como eram capazes de pensar que algo que as faziam cantar músicas de sofrimento amoroso, aceitar traições, sorrir feito idiotas e se iludirem, bonito?

Quanto mais eu analisava o comportamento amoroso dos outros adolescentes ao meu redor, mais percebia que, apesar de todas minhas paranoias e manias estranhas, talvez fosse uma das únicas sãs dali.

Tomava todas as medidas o possíveis pra me manter bem prevenida do vírus que afetava o cérebro e o raciocínio normal e sóbrio dos seres humanos. Antes isso aos sintomas quase sempre desastrosos e frustrantes de um suposto romance.

"Ah, mas como você sabe que os sintomas do amor são desastrosos e incompreensíveis?" — Alguém poderia pensar.

A resposta era bem simples: eu, assim como qualquer pessoa da minha idade, havia sido infectada uma vez por ele.

Pedro. Esse era o nome do responsável por me transmitir o vírus.

A gente era da mesma sala e ele se aproximou de mim aos poucos, bem "naturalmente". E eu, como quase qualquer garota que recebe esse tipo de atenção pela primeira vez na vida, ficava toda boba com as indiretinhas "alucinantes" dele, que iam desde "Seu sorriso brilha tanto que às vezes eu acho que a Nasa devia abrir uma investigação contra você, Tati. Mora uma constelação em cada um desses dentes" a coisas mais bobinhas, como sempre me dar alguma bala.

Isso aí. Pode rir. É muito bonito se divertir com a desgraça alheia.

Enfim, a lesada aqui caiu como um patinho na lagoa nas estratégias dele. Não demorou muito até eu descobrir que...

Ele queria "ficar".

Isso aí que você leu; aquele cocô humano queria me usar como um copinho descartável. Me experimentar e depois jogar fora.

Porém, eu, com meus simples 13 anos, não tive as conexões neurais suficientes pra constatar que o significado de "ficar" era esse, já que, como disse, estava infectada pelo vírus amor, inibidor profissional da racionalidade.

Passei meu melhor hidratante labial, fiz chapinha no cabelo, coloquei minha melhor roupa e fiquei com balas de menta na boca até o sinal do intervalo disparar.

Era a hora. Finalmente iria dar meu primeiro beijo!

Fomos à quadra da escola escondidos. A alguns metros, minhas amigas assistiam tudo fazendo caretas bobas enquanto ficavam de guarda para que ninguém nos descobrisse ali.

Parecia tudo perfeito, até que, antes mesmo que eu tivesse tempo de sentir algum "clima", ele, sem a menor cerimônia, me puxou pela cintura e meteu as mãos na minha bunda e aquela lingua nojenta na minha boca.

Pra piorar. Nossos dentes bateram e quase tive ânsia de vômito quando senti a saliva fria dele com gosto de refrigerante e fandangos.

Rindo, ele parou o beijo (se é que dava pra chamar aquela catástrofe de beijo).

— Aff, Tati! — Limpou os lábios na braço do moletom depois de cuspir no chão. — Qualé, eu pensei que você pelo menos soubesse beijar, garota!

Encolhi o corpo meio (bastante, na verdade) chocada.

— E-eu... nunca tinha beijado ninguém. — expliquei evitando seus olhos.

— Ô, Deus... — murmurou irritado. — Custava ter me contado?

Abaixei a cabeça me sentindo envergonhada como nunca na vida toda até aquele momento. Nem quando a Roseli, minha professora de Matemática do 6° ano, havia me humilhado na frente da sala toda por ter sido a única a zerar a prova, segundo ela, mais fácil do ano letivo, sofri tanto quanto naquele momento.

— Eu... não tinha pensado nisso antes... — disse num fiapo de voz.

— Bem, pelo menos não tinha bafo. —  Riu desdenhoso. — E... Posso dizer pro João e o Lucas que peguei mais uma da sala.

Boquiaberta e com os olhos prestes a marejarem, não pude conter minha indignação:

— O quê?

— Ai meu Deus... — falou de novo com aquela voz de entediado, como se eu fosse a coisa mais patética do mundo. — Tatiana, você, pelo amor de Deus, não achou de verdade que eu fosse, sei lá, apaixonado por você, né? Cê fica até aceitável quando alisa o cabelo, mas, no resto dos dias... Se eu fosse você, teria medo de uma hora ser levada pra um abrigo de sem-tetos.

Eu queria gritar, mas, naquele instante, a única coisa que fui capaz de fazer, além de chorar, foi correr.

O riso distraído da Mônica se perdeu quando passei por ela alheia a tudo ao meu redor.

— Tati! — Vê gritou.

Fechei a porta do banheiro com pressa. Apesar da imundice, larguei meu corpo ali mesmo, no chão, inclinei a cabeça na parede e simplesmente chorei como nunca tinha chorado até aquele dia.

Foi ali, sozinha, que prometi pra mim mesma que não deixaria ninguém me machucar nunca mais daquele jeito de novo.

Tranquei meu coração, joguei a chave na privada e dei descarga.

Se alguém quisesse entrar de novo ali algum dia, teria uma missão quase impossível:

Quebrar o cadeado.

O Cadeado (quase) Inquebrável [Conto]Dove le storie prendono vita. Scoprilo ora