5. Um talvez

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Já era terça-feira. O projeto do Dia dos Namorados ia ser no dia seguinte, e a tal festa do ficante da Vê naquela mesma noite. Além disso, coincidentemente era a segunda vez que ela faltava na mesma semana (o que significava que, é... Lá estávamos eu e o Daniel sentados no refeitório de novo conversando, mas dessa vez sem o tal trabalho sobre o amor aberto na mesa).

Os dois amigos dele também estavam com a gente e, apesar de particularmente preferir a companhia dele, eles não eram, tipo, "insuportáveis". Só me deixavam um pouco desconfortável às vezes por falarem de determinadas coisas meio... incômodas. 

— Ah, cara, mas aquele decote de renda da Flávia... — Bambuca resmungou num sorriso cheio de intenções reprováveis ao amigo do lado.

— Parça, tu tava de olho na Flávia mesmo com a Roberta na sala? — Piu-piu, que, assim como o comparsa, de santo não tinha nem a cara, questionou também indignado (apesar de por uma razão obviamente diferente da minha). — Na moral, tu precisa muito de ajuda, irmão.

O pior não era nem só o fato deles secarem mulheres. O problema maior mesmo era que a tal Flávia, além de nossa professora de Inglês, tinha idade pra ser mãe dele, e a Roberta era basicamente a coordenadora novata do colégio que, pasmem, tinha cabelo vermelho.

Então o que dava pra concluir é que o Bambuca tinha um sério complexo de Édipo mal-resolvido, enquanto o Piu-piu uma tendência quase patológica a sexualizar absolutamente qualquer mulher de fios rubros porque, segundo ele, ruivas eram "fogosas". Enfim: dois fortes candidatos à terapia.

O salva-vidas do grupo era o Dani, que sempre dava um jeito de mudar o assunto do papo, principalmente quando eu virava parte da cachorrada.

 — Aê, galera, parou! — Bateu algumas vezes com a palma da mão sobre a mesa pra ver se calava a boca dos sem-noção. — Ninguém nessa mesa tem interesse em saber dos desejos estranhos que vocês têm pelas funcionárias da escola!

Sorri discretamente em agradecimento a ele. Mais dois minutos ouvindo o Bambuca falar da regata da Flávia ou o Piu-Piu da bunda da Roberta e eu fugiria daquela mesa. Quer dizer, tinha coisa pior do que ficar ouvindo dois otakus fedidos falando de peitos e bundas alheias? Ah, tenha dó.

— Estraga prazer! — Tomado de revanchismo, Piu-piu tentou atirar nele o restinho do ki-suco em seu copo, mas Daniel escapou a tempo, terminando respingado por umas gotinhas rosas minúsculas e risonho pelo próprio bom reflexo.

— Na moral, José, — Dani riu passando as mãos pela roupa mais pela imaginação de estar se limpando do que por realmente ter algo ali pra ser limpado. E, é... Aquele cidadão "coincidentemente" também tinha nome de personagem bíblico. — Às vezes você me faz ter sérias dúvidas sobre seu "diploma" do fundamental.

Suas costas bateram no pilar convenientemente atrás dele assim como no dia anterior. Aliás, ele trombava tanto o corpo ali que eu podia jurar que um dia precisaria trazer bandagem pra escola. 

Mas é claro que, ao invés de reagir como um ser humano minimamente maduro para própria idade, Piu-piu apenas encarou o amigo de um jeito bem relaxado e ostentou um sorriso mole. 

— Ô, Dani... — insistiu arrastando a voz em deboche. — Às vezes a vida precisa de um tempero. A gente só tem 17 anos, irmão. Que mal tem falar de umas gatinhas?  — argumentou ainda carregado de leveza.

Então, quando o garoto de cabelos brancos como a lã ria, já se munindo para responder ao comentário bobo e despreocupado feito, Piu-piu aproveitou a brecha para mais uma declaração.

Mas, ao contrário da primeira, essa não teve nenhuma graça:

 — Papo reto, Daniel...  — Ajustou a postura dos ombros, se inclinando firme até o colega. — Cê nunca quis dar uns beijos nessa guria?

Foi nesse momento que a sensação dos meus músculos errigessendo voltou a 20 mil quilômetros por hora. Oi? Que pergunta estranhamente específica era aquela?

Ah, e quando eu achei que o Daniel fosse só rir e agir como se a pergunta fosse evidentemente sem cabimento, ADVINHA o que ele fez?

— A gente só troca ideia de vez em quando, Zé. — Piscou rápido e incomodado, desviando os olhos depois. — É diferente.

"É diferente". Que raios aquele sujeito queria dizer? Se ele não sentia nada, não era pra desviar da pergunta e agir como se, "ah, meio que eu gosto dela, mas não posso dizer". Era pra rir, sei lá, bem alto e agir como se a ideia de me querer fosse a pior das piadas do mundo. Não como se ele já tivesse mesmo considerado a hipótese.

— "É diferente..." — E, diferente de mim, Bambuca se animou quando percebeu o mesmo que eu. — Então quer dizer que você já quis mesmo dar uns pegas nela, Daniel?

Então ele finamente riu, mas um pouco tarde e desengonçado demais pra despistar minhas suspeitas.

— Cara, roda o disco logo. — suplicou sem conseguir barrar o sorriso de vergonha com o rosto quase rubro enquanto os dois amigos o olhavam numa malícia completamente ausente de misericórdia pela saia justa.

Gargalhei por dentro em estado fúria e arrependimento.

Não me julgue. Como eu poderia não ligar as peças? Era mais que claro que ele, assim como qualquer macho hétero, já tinha me visto como mais do que uma colega.

— Tá legal, acabou, galera. — Simulou uma tosse batendo de novo a mão na mesa algumas vezes, convencendo com muita dificuldades os dois a se conterem.

Eu juro, eu juro de verdade que tentei alimentar, mesmo que por segundos, uma certa esperança de estar errada. De talvez aquela cena não ser nada além de uma brincadeira combinada entre eles pra, sei lá, quem sabe me assustar, já que o Dani sabia que eu não gostava de romance e o dia seguinte no colégio, na TV e em quase todo canto seria dedicado a ele. Pra me fazer um Halloween adiantado, só que pior.

E você já deve imaginar... Não funcionou.

Mas, atenção: os motivos da minha tentativa desesperada de me agarrar à negação não deram errado pelas circunstâncias daquele episódio apontarem que, bem, o Daniel parecia mesmo já ter se interessado por mim.

Na verdade, se fossem só por aquelas circunstâncias, talvez a possibilidade de crer que ele realmente só me via como uma colega ainda sobrevivesse, mesmo depois de estraçalhada.

A questão foi que, depois daquela reação tremendamente suspeita e reveladora, o Jack Frost conseguiu aniquilar ainda mais minhas esperanças.

É... Pouco antes de voltarmos pra sala, quando eu tinha ido beber água, a vida decidiu me presentear com a confissão dele de camarote.

Apoiados no outro lado da curva da parede, onde não conseguiam me ver, eu finalmente ouvi aquelas malditas palavras:

— ... confia, vai ficar só entra a gente, brother. — Reconheci o sotaque carioca do Piu-piu. — Confessa: tu é ou não a fim da Tati?

Escutei novamente, talvez pela décima vez no dia, a risada do Daniel. Mas, ao invés de tensa, aquela fluiu como se ele finamente tirasse um monte de blocos dos ombros.

A respiração leve saiu e, bem depois dela... Aquela palavra:

— Talvez.

O Cadeado (quase) Inquebrável [Conto]Where stories live. Discover now